quarta-feira, 10 de maio de 2023

Fitzcarraldo (1982) de Werner Herzog



por Alexandra Barros

Durante a década de 1890, no auge da Febre da Borracha, um dos seus grandes exploradores, Carlos Fermín Fitzcarrald, pôs em execução um projecto ambicioso: transportar um navio a vapor através de uma montanha peruana, para explorar os recursos de uma zona de difícil acesso. Baseado nessa figura e nessa história, este filme, onde Herzog regressa à selva amazónica quase uma década depois de aí filmar Aguirre, a cólera de Deus, configura um impressionante retrato do próprio Herzog. Contra tudo e contra todos, para filmar “com verdade”[1], o realizador insistiu em transportar um barco de 300 toneladas através de uma montanha, justapondo ao desígnio da personagem principal a sua própria quimera. As imagens dessa aventura foram classificadas pelo próprio como uma “grande metáfora”, mas quando questionado sobre o quê, respondeu que ainda não sabia. Contudo, mesmo que não saibamos ou desejemos decifrá- las, as imagens do navio a escalar a montanha dificilmente deixarão alguém indiferente. Assombradoras e poéticas, são imagens inesquecíveis. 

As metáforas visuais são o meio através do qual Herzog procura chegar a verdades mais profundas do que as alcançadas através da observação ou vivência do real. “Há estratos mais profundos de verdade no cinema, e existe uma verdade que é poética e extática. É misteriosa, elusiva e só pode ser atingida através da fabricação, imaginação e estilização.”[2] “Não se trata de uma mentira, mas de uma espécie de verdade intensificada”.[3] Na demanda dessas verdades poéticas, privilegia imagens que despertam sensações e sentimentos em detrimento das que contêm significados explícitos. Para construir as suas metáforas visuais, procura imagens nunca vistas em lugares de difícil acesso ou inóspitos (selva amazónica, Antártida, a cratera de um vulcão em erupção, ...), faz encenações ficcionadas de eventos e histórias recorrendo a métodos peculiares ou mesmo controversos (por exemplo, durante a rodagem de Coração de Gelo (1976), os actores trabalharam sob hipnose), recontextualiza imagens de arquivo de forma a apontarem a novos sentidos. Nos seus filmes, a fim de criar os almejados momentos de revelação e de êxtase não recua perante colossais obstáculos, mesmo que envolvam colocar-se e à sua equipa em sofrimento extremo ou perigo de vida, tal como sucedeu na rodagem de Fitzcarraldo e de Aguirre

Embora os dois filmes tenham muitos pontos em comum, Fitzcarraldo é, para mim, mais extraordinário e mais herzoguiano. Como Aguirre, é a história de um fracasso, mas ao contrário desse filme também é triunfal. Partilha com Aguirre, o misterioso, a tensão e a angústia, mas dá mais lugar ao cómico e ao belo. Em Aguirre há uma força nas imagens relacionada com a sua verdade intrínseca, mas em Fitzcarraldo a obra é indistinguível da criação da obra. Na paleta de ambos os filmes estão “cores” recorrentes na filmografia de Herzog: idealismo, paixão, loucura, beleza, caos, horror, fé, superstição, irracionalidade, absurdo. Tal como Aguirre, foi filmado em territórios longínquos, selvagens e inacessíveis ao homem comum, e tal como nesse filme, as “personagens” principais são: por um lado, uma natureza violenta e indomável, com paisagens misteriosas e que escondem perigos; por outro lado, um anti-herói visionário, descomedido e descontrolado, que não olha a meios para subjugar essa natureza. No coração de Fitzcarraldo está um sonhador excêntrico, com uma obsessão - construir uma Casa da Ópera na selva amazónica e aí levar o lendário tenor italiano Enrico Caruso. Por esse sonho é arrastado para uma missão impossível. O poder do filme, porém, está para além da narrativa, está na sua metanarrativa. Para contar a história de Fitzcarraldo, Herzog entra no universo da história: embrenha-se na selva, contrata uma tribo de índios, puxa um navio a vapor montanha acima, navega nos rápidos turbulentos de um rio incontrolável, persevera face a adversidades e perigos, arrasta para sacrifícios extremos os “seus” homens e os índios. A história filmada acaba por se confundir com a história de filmar essa história e Klaus Kinski representa simultaneamente Fitzcarraldo e Herzog. Com uma fronteira diluída entre realidade e ficção, o filme é um dos mais icónicos casos de arte que imita a vida e vida que imita a arte. Herzog chamou-lhe “o meu melhor documentário”.[4] 
 
Fitzcarraldo, que no primeiro contacto com os índios pretende fazer passar-se por uma das figuras mitológicas indígenas, acaba por ser imolado para aplacar outras figuras desse cosmo. A sua missão fracassa, a de Herzog triunfa. Apesar do muito que correu mal, o realizador consegue finalizar o filme permanecendo fiel à sua visão. Mas será realmente assim? Fitzcarraldo um "falhado" e Herzog um “triunfador”? A rodagem do filme levou Herzog a situações tão extremas que ele declarou, no final: “Eu não devia fazer mais filmes. Devia ir para um asilo de lunáticos”. Herzog parece assumir uma derrota mais derradeira que a de Fitzcarraldo, que aceitado o fracasso, recupera a joie de vivre. A tensão e violência brutais da escalada do navio e da sua descida pelos rápidos, e a fúria e decepção dos homens levados ao limite para nada alcançarem, dão lugar a um final jubiloso. A vida, com os seus dolorosos desencantos, pode revelar-se sobretudo absurda e trágica, mas Fitzcarraldo encanta-se ainda com a música, com o amor, com a partilha com a comunidade daquilo que o faz feliz. Saído do coração das trevas, Fitzcarraldo/Herzog abraça o mundo. “Acordo e estou apaixonado pelo mundo”, afirmou Herzog em entrevista a Grazia Paganelli[5]. A mim, apaixona-me a paixão pelas coisas do mundo de Herzog. Nesta época de cinismo, o romantismo é o novo punk.

[1] Fitzcarraldo é provavelmente o mais extremo e icónico caso de Herzog levar à prática a sua convicção de que para bem contar uma experiência, deverá primeiro vivê-la.
[2] “Herzog on Herzog: Conversations with Paul Cronin”, Werner Herzog.
[3] Entrevista de David Gordon Smith a Werner Herzog, Spiegel International, 12/2/2010.
[4] Les Blank acompanhou a rodagem de Fitzcarraldo e fez sobre ele um dos mais notáveis documentários sobre a realização de filmes, Burden of Dreams (1982), tão amado e exaltado por críticos e público como o próprio objecto sobre o qual se debruça.
[5] “Sinais de Vida, Werner Herzog e o Cinema”, Grazia Paganelli, 2009.



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