quinta-feira, 20 de junho de 2024

Perdido na Praia (2022) de João Campos



por Alexandra Barros

Not all those who wander are lost.”[1] 

J.R.R. Tolkien 

A praia de João Campos não é a praia dos postais outrora enviados por quem ia a banhos, nem a das fotografias publicadas no Instagram exibindo férias perfeitas, com areia dourada, céu azul, sol radiante, mar sereno e esmeralda, tudo em cores saturadas e um grande sorriso em primeiro plano. 

A imagem inicial do filme, com um caótico amontoado de brinquedos de praia amarelos, cor-de-laranja, azuis, verdes e vermelhos, ladeados por dois pára-ventos, remete para os infindáveis dias de verão da infância, numa dessas praias dos bilhetes-postais ilustrados. Mas logo somos transportados para os sépias, cinzas e prateados de uma beira-mar encortinada por denso nevoeiro. Ao longe, há figuras humanas, negras, fundidas na paisagem. Não é certo se o nevoeiro as engole ou se, a partir dele, se consubstanciam. Imagens memoráveis, pela beleza intrínseca das fotografias e pelas viagens demoradas da câmara pelas imagens fixas, a evocar o extraordinário Chris Marker de La Jetée. O tempo parece parado e estes vultos aparentam estar para sempre encerrados numa bruma tão espessa que impede os movimentos. 

Afinal vão agora ganhando vida e cor à medida que o nevoeiro se dissipa. E eis que, por um breve instante, o bilhete-postal é fidedigno. Porém, de imediato perde o acerto, porque lhe faltam: as sombras dançantes das paredes desfraldadas das barracas, violentamente sacudidas pelo vento; as partículas luzidias de quartzo, atiradas pelo ar; as rajadas impressas na areia. 

O olhar acurado de João Campos recolhe: as estrelas que também há nas pequenas poças de água[2] da baixa-mar; feixes de luz solar que, furando o manto de nuvens, depositam constelações na superfície tranquila do mar enoitecido; o rasto cintilante das ondas que regressam ao oceano, na praia negra e dourada do lusco-fusco; céus vibrantes e céus soturnos, onde se acumulam pinceladas de nuvens ora luzentes ora pardas, aqui trágicas, ali graciosas, agora delicadas, e agora sinistras, umas macias, outras engelhadas. 

Detalhes aparentemente banais das rochas, ou desenhos nelas criados (ao longo dos anos) pela acção conjunta do mar e do vento, do sal e do sol, das algas, dos moluscos e dos líquenes, são transformados em imagens onde convivem engenhosamente o documental e o abstracto, por vezes evocando a pintura de Anselm Kiefer. 

Um poema de Sophia dá a partida ao périplo de João Campos por estas micro-paisagens. Outros se seguirão, acompanhados pelos sons do mar, do vento, de música que oscila entre o melancólico e o inquietante, reforçando a sensação de estarmos num lugar simultaneamente comum e inexplorado, familiar e misterioso. Partindo das suas memórias de infância, João Campos montou um admirável poema visual dedicado à praia, onde, mais do que se perder, (se) encontrou.

[1] Nem todos os que vagueiam estão perdidos. 
[2] “Nas pequenas poças de água também há estrelas.”, Sophia de Mello Breyner Andresen.



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