quinta-feira, 23 de outubro de 2025

KORA (2024) de Cláudia Varejão + Onde as Ondas Quebram (2024) de Inara Chayamiti



por Jessica Sérgio Ferreiro

Em Transições, última temática lançada pelo festival Encontros da Imagem, apresentamos quatro filmes distribuídos por duas sessões, cada uma composta por uma curta-metragem e uma longa-metragem. A primeira sessão é composta pela curta-metragem KORA de Claúdia Varejão e pelo filme Onde as Ondas Quebram de Inara Chayamiti. Ambos os filmes recorrem a técnicas mistas, combinando fotografia, o arquivo e a imagem contemporânea.

KORA acompanha a presença de mulheres refugiadas que encontraram em Portugal um novo lugar para viver. Cada uma carrega consigo a marca do passado, inscrita no corpo e nas fotografias dos que ficaram para trás, mas, também, no novo retrato seu que conjuga passado e presente num lugar onde tentam reconstruir as suas vidas e encontrar o sentimento de casa.

O filme articula, com delicadeza poética, o íntimo e o político através dos testemunhos de mulheres oriundas da Ucrânia, Afeganistão, Sudão, Rússia e Síria, forçadas por diferentes formas de violência (guerra, discriminação, perseguição à limitação das liberdades individuais e ameaça à integridade física, etc.) a deixar as suas casas, terras e famílias. A partir dessas memórias, constrói-se um olhar que é simultaneamente pessoal e coletivo, revelando o processo de reconstrução do presente a partir da perda e da distância.

Como lembra Georges Didi-Huberman, em A Imagem Sobrevivente[1] (2013), as imagens são “sobreviventes”: guardam as marcas do tempo e são portadoras de memórias. Carregam vestígios do passado, como “sobrevivências” que atravessam o espaço e o tempo e se manifestam quando convocadas. As imagens são impregnadas de memória e possuem uma força simbólica que transcende a sua materialidade e sobrevivem à morte.

No filme Onde as Ondas Quebram, o mar é metáfora dos caminhos navegados que compõem as nossas vidas, bem como dos movimentos migratórios que estão na base da História Humana. Inara Chayamiti através do espólio fotográfico da família, do arquivo e do registo documental, revisita a história dos seus antepassados, de par com a História da comunidade japonesa no Brasil, expondo as dinâmicas coloniais, as políticas migratórias e a exploração dos migrantes, incessantemente desumanizados e tidos como meros “braços”, corpos onde se inscreve a violência estrutural de um sistema arquissecular que tem como fim o aproveitamento económico.

O filme confronta a memória da imigração, muitas vezes “branqueada” nas narrativas de integração, com as tensões da pertença e da identidade (relacional com base na demarcação e hierarquização da diferença), revelando as formas subtis e não-subtis de exclusão e assimilação que atravessam gerações. Assim, através da “imagem sobrevivente” e do testemunho, as memórias familiares tornam-se também memória colectiva das vidas marcadas pela travessia migratória, pela passagem do tempo e pelos caminhos percorridos onde se procura e, porventura, se constrói a casa.

Em suma, a narrativa articula temas como a emigração, o racismo, a xenofobia e a pertença, mas recusando a “exotização” da diferença e a fixidez e homogeneidade (impossível) que se atribui à identidade. Inara Chayamiti filma com proximidade, devolve dignidade e voz a quem habita o espaço, ou a “ponte”, entre dois mundos, demarcados pelas rotas que separam os vários países e suas pretensas identidades. A realizadora é também fruto dessa idas e voltas: “Nipo-brasileira”, encontrou em Braga o lugar que hoje chama de lar. Assim, esta sessão recorda-nos que são as pessoas que compõem os lugares, não como proprietárias, mas como presença viva que os habita e transforma. Os espaços existem através delas e nelas se tornam casa. 

  

[1] Didi-Huberman, G. (2013). A imagem sobrevivente: História da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg (V. Ribeiro, Trad.). Contraponto Editora. (Obra original publicada em 2002)

 

 Folha de Sala 

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