quarta-feira, 26 de outubro de 2016

The Last Detail (1973) de Hal Ashby



por José Oliveira

Mesmo no contexto do cinema americano dos anos setenta The Last Detail é um petardo austero, vagabundeante, triste e bonito, que pulsa a cada cena, mantendo o seu insólito organismo intacto. Nesta história simples de dois marinheiros que devem levar um terceiro para pagar pelos seus erros de ontem, começa numa condenação, esquece as responsabilidades e o amanhã, para acabar no tipo de desolação que pode ser a machadada final ou uma libertação. Tragédia aguda ou fuga da engrenagem perra da sociedade e das regras, eis a questão complexa que ficará a ecoar. Tecido silenciosamente por um dos mais inclassificáveis realizadores desse período – Harold and Maude, Shampoo ou Coming Home são entre si diferentes como o dia e a noite e completamente nos antípodas do filme que vamos ver – atravessa de vários modos a América, em diferentes temperaturas e entrando nos interiores como raramente se tinha entrado. Jack Nicholson, no auge da sua subtileza, faz par com o estóico Otis Young para acompanhar o perdido Randy Quaid, guiados por uma escrita delicada e contundente do vivido Robert Towne e envoltos na visceral luz de Michael Chapman. Entre o céu e o inferno, aproveitando o aqui e o agora e forçando um pouco de justiça. The Last Detail é um filme belo por isso mesmo e muito mais. 

Belo ainda pela sua progressão lenta e na respiração livre de efeitos programados e habituais da grande indústria. Démarche irrepetível, para a vida. Um road movie a penantes, comboios pegajosos e carreiras feias. Que tristeza toda esta higienização dos transportes do aqui… Uns segundos de acção e já se sabe do que a casa vai gastar, a missão a cumprir, do que o filme vai tratar ou destratar. Estamos numa base da marinha em Norfolk, Virginia, Estados Unidos da América. Um menino de recados procura dois marujos, Buddusky e Mulhall, encontra-os, mas esses crescidos fazendo-se durões ainda pensam ignorar o mestre de armas e a sua imperial ordem. Nada disso: ainda o filme vai na primeira bobine e eles já sabem que terão de levar o marujo Meadows até Portsmouth, no New Hampshire, como prisioneiro. Menos de uma bobine e os três já estão largados aos cães. 

Tudo abriu logo após o genérico com um seco rufar de tambores e as únicas melodias que o irão trilhar e ritmar serão marchas e entoações militares. Vamos ter então um percurso e obra seca, pequena, drenada, essencial. Assim como as sequinhas panorâmicas iniciais pelo átrio, corredores, quartos e gabinete. Para ir já de comparações em riste, secura e filigrana Bressoniana. Ou já que tudo permanece muito americano, tangentes traçadas com navalhas de De Toth ou Siegel. Que se é um filme de estrada o vai ser de modo assaz confinado mesmo que pela aridez da basta paisagem enunciada e prometida. Presos e predispostos de Boston a Nova Iorque e terras de entremeio, mesmo que com semblantes de mauzões. 

(Aparte: Que a navalha herdada pelo tipo de Utah que manobra as rédeas continue a cortar tão afiadamente embora com requintes ou atenções mais dilatadas e mesmo penosas posteriormente à saída da base, tanto representa a diferença entre o cinema americano clássico e aquele em que Ashby trabalhou, como a diferença de mundos, de ar do tempo, pessoas nele e a sociedade que o ata, com certeza bem diferente daquela em que James Stewart andou e respirou. Uma malaise e uma brandura patológica que faz com que as durações estejam necessariamente possuídas de uma dor arrastada. Dores de um certo tempo que não o campo-contra-campo e a os gizares sucintos de outras eras, uma caminhada ao estertor que insufla. Impossibilidade clássica. Nojo televisivo. Continuemos.) 

Fazer isso numa semana e com tudo pago, certos tipos chamariam a tal um doce e o marujo espertalhão Buddusky não vai pensar noutra coisa. Ele que tal como o comparsa Mule não percebe por que raios condenaram um tipo à expulsão e prisão por ter tentado roubar a caixa das esmolas de uma boa samaritana. Anda mal de saúde a justiça por aquelas bandas e as conexões perigosas são coisa universal e fatais para quem nelas se embrulha. Quem assim vai à forca é então Meadows, que é alguém que ou também precisa mesmo de um psiquiatra, como um dos “carrascos” sugere, ou é um burlesco tipo Buster Keaton, ou pura e simplesmente um inocente que se tramou por aquilo que os inocentes sempre se tramam, verdade e solidão. O contrário do bad ass Buddusky, que gosta de fazer mal por fazer, mijar em cima de pessoas, beber à fartazana e enganar a lei que o domina. Mais próximo do indeciso Mule, que tanto gosta da anarquia e diversão que alastra, para no instante seguinte se aprumar, fazer continência e lembrar que ao invés de o trio estar em despedidas de solteiro, antes acompanha um prisioneiro e há que dar valor à seriedade. 

Se The Last Detail tem o horizonte de uma linha ela vai ser torta, chão para descobertas, re-descobertas, oferendas e transformações por mínimas que sejam. Degraus à redenção. Tudo aglutinado por lentos fondus que ainda o escanzela mais, o disseca, como numa operação cadavérica. Mas a empresa é íntima e faz-se íntima, em tantos momentos Ashby pousa a câmara, sai do plateau, manda sair a equipa técnica para uma pausa, e ficam ali só os três marujinhos a ver como podem melhorar a vida de um menino. No fundo, cada um a tentar melhorar a sua vida. Buddusky quer que ele se divirta, apesar do companheiro de incumbência dizer que essa não é a natureza de tal criatura, que não tenha medo de exigir o queijo derretido no hamburguer, que beba até ao estado de vigília e de levitação. Enfim, que assobie às miúdas, que faça amor pela primeira vez, que faça tudo o que os da sua idade têm direito. E que se mantenha fiel a Deus e se zangue com quem o bajular. Buddusky é bruto mas também pode ser justo e verdadeiramente compincha. Também aprende com Meadows e fica a perceber a razão do puto respeitar sempre quem está a fazer o que tem que fazer. Os dois mas principalmente Buddusky querem que ele lute, se faça rijo, homem, cínico talvez, mas não vai ser por isso que a tímida e eterna criança-matulona se vai zangar com eles, antes pelo contrário, e momento de elevada comoção em surdina, os considera como os dois melhores amigos. Assim do pé para a mão, a tal da solidão a trabalhar no invisível carreiro, tal como a formiguinha. E os tambores continuam a rufar.

E Meadows vai queimando etapas à medida que o percurso e o tempo ardem, conhecendo novos continentes e constelações, vai confirmar dentro de si que ali não há carrascos e que se o querem preso, ele vai preso, mesmo contra normais explosões animalescas que de si brotam esporadicamente. Vai despejando litros de cevada alcoolizada, fumando como se não houvesse amanhã, finalmente assobiando meninas. Vai patinar no gelo com graça etérea. Esfumaçar droga. Engatar para ele e para os outros. Entrar na casa de putas. Copular e encantar-se com uma ninfa deslocada. Outro exercício profitable em que no termo do espaço e do tempo passível para algo acontecer, alguma coisa que seja coisa, tal sucedeu e o puto ensanguentado que vai cumprir os oito anos de prisa ou os seis se os ganhar por bom comportamento, já sabe o que o sexo oposto ao seu pode proporcionar, já se sabe fazer respeitar, andar ao cacete com os fuzileiros como acontecia nos filmes de John Ford ou do John Milius e hoje não acontece mais. Caminhada proveitosa e exemplo sem respostas, coração aberto. Triste encanto e desencanto final quiçá como nas redomas, suores e tremores de Thomas Wolfe e Nicholas Ray.

América coberta a luz sufocada, vacilante, algures glauca, apagada. E mais uma vez o cineasta no seu oficinato ama o grão película como ama o som que extravasa a origem, o que jamais é puro exercício fetichista, Ashby é taberneiro e também delicado demais para essas coisas, antes percebe que a imagem como o som não podem ser somente urdidas pelo lixo do meio envolvente que apanham, muito menos pelo profissionalismo nivelador, estando assim atento ao choque e consequências de naturezas antagónicas que no cinema acontece entre a máquina de filmar metálica e fria com a ardente natura. O resultado faiscante disso. A violência do embate. As ondas atordoantes. A harmonia, união ou impossibilidade por denso acordo. Mas tudo pacificado e em certo sentido calmo, tudo em implosão, o que mexe é o organismo interior e nunca o recorte. Zero virtuosismo. Maquinaria, forças da natureza imperiais, o trémulo humano. Há coisas e princípios sobre os quais não podemos fazer batota, questões absolutas, para que algo faça sentido. Algo que seja ainda. 

E a tal máquina vai deixar de estar à primitiva altura de Hawks. Só por uma vez, nesse quadro picado em que o trio cai por terra e não tem muita vontade de se levantar. Tudo se vai apagar em brancos prados sem viva alma, representação de um vazio de vida, procura do que vem, desilusão inescapável para quem foi com muita sede ao cântaro. Passado o calor da dissidência, acontece numa escadaria despida esse doloroso campo/contracampo do último adeus, já em picados e contrapicados, os dois livres em baixo e o condenado na sua passadeira da fama lá nos altos, instante infindável e gelado como a morte. De Frederick Wiseman, o grande documentarista americano, ao fantasista Vincente Minnelli, passando pela sede sem regras de John Cassavetes, todos, em algum momento, mudaram de forma drástica a velocidade e o lugar do olhar, pressentido e percebendo que é o peso do presente a enformar o cinema e jamais o oposto. O tempo que envelhece depressa, o derradeiro Antonio Tabucchi, epígrafe Pessoana ou a corrente deste filme em que o tempo é tudo porque aflige e urge? Apesar de ter passado, passou-se por ele bem. Passou-se. Siga a marinha.

Sem comentários:

Enviar um comentário