sábado, 6 de janeiro de 2018

Limelight (1952) de Charles Chaplin



por José Oliveira

«Se não fosse a gravidade cairíamos nas estrelas» 

Frase dita por Calvero à bailarina cortada da montagem final.

Não sendo possível mostrar cronologicamente todas as longas-metragens de Charles Chaplin, Limelight é uma perfeita escolha para introduzir ao universo Chaplin quem ainda não foi propriamente introduzido, perfazendo uma obra total. Está lá a velhice mas também a juventude, as festas e as grandes ressacas, o teatro, o cinema, a música, a arte de canto de cisne do mudo e a construção sonora sublimada, a vertente intelectual do autor e o vagabundo da rua, as variedades e a crença no invisível, em pulgas invisíveis, por exemplo; a vingança e a justiça; a violência e a ternura conforme; o pioneiro e o inventor sem precedentes que não deixa de ser generoso para com o próximo, seja a bailarina ou Buster Keaton. 

De 1952 e o seu antepenúltimo filme, este é sobretudo a obra de um palhaço velho e de uma bailarina suícida que se elevarão mutuamente às estrelas; obra e movimentos sinfónicos, estelares e crepusculares, sublimes enrolados com graves que na morte descobrem, redescobrem ou arrancam daí a vida. Estando salva provisoriamente a bailarina do gás do sono eterno, Calvero, o palhaço dos palhaços que é Chaplin, fala-lhe das estrelas que rodam nos seus eixos, do sol que se consome para nos aquecer, gigantescos pulsares e demandas só porque sim, prestando homenagens à potência ilimitada do ser-humano e ao génio do seu tão admirado Albert Einstein – a razão e a emoção, a ciência e o caos, princípios centrais desta arte e desta moral, para se resumir tudo, os dois polos e os restantes cometas, no desejo, que tudo comanda. 

O palhaço velho e a bailarina suicida, o primeiro que já não tem público e a segunda que não o quer ter. Limelight é, como diz Sérgio Alpendre no vídeo de apresentação deste filme à nossa plateia, um corpo que a decadência pretende consumir a cada instante, a cada fulgor, pois o grande espectáculo, as plateias e as palmas brilhantes das idades de ouro da alta arte ou da simples comédia, só aparecem quando um velho de outrora adormece e a sua paixão ainda respira e voa; quando se acorda, tudo fica nas cinzas do passado. Só que... é também uma grande ode ao poderio da juventude e à sede futurista, à humildade e ao saber passar o testemunho, tal como diz a epigrafe inicial - “O encanto das luzes da ribalta, que a velhice deve abandonar quando a juventude entra em cena.”. 

E Chaplin, e Calvero, vão passar o tempo e os gestos todos a entregar uma herança e a salvar uma alma e um corpo magníficos. Para depois essa aura do poderio e do colosso da juventude devolver tudo de volta, inclusive o palco final da eternidade com que o filme milagrosamente fecha. Não vale a pena viver, diz a bailarina no começo; triste comediante, dizem para o palhaço pobre quando este desanima como todos nesta vida. E o que é fabuloso e assim inédito em termos narrativos e poéticos é que Chaplin vai passar o filme a construí-lo, a encená-lo, contando mesmo à bailarina como será a sua vida, a vida de nós todos, transcendendo assim tudo, inclusive o cinema - «Quando chegar ao sucesso, ele aparecerá... e dirá que a viu em alguma festa...»; e a bailarina passará o mesmo caudal de tempo a dizer que o ama, complemento e a outra ponta do arco da existência; o amor para lá de todas as barreiras físicas que ela reconhece sem o saber. 

Existência, e verdade. No final, só a verdade. Tudo o que resta é a verdade. «O tempo é um autor fantástico. Escreve sempre o final perfeito». Isto é o que começa a dizer Calvero, e Chaplin, quando por caminhos ínvos, justiça ou vingança doce, necessária, pressente a chamada do outro lado e começa a ter público, convocando o maior dos cineastas e inventores do mudo caído em desgraça – Buster Keaton. Número que tem de ser arrancado a ferros, contra tudo e contra todos, intervindo agentes, publicitários, o monstro do público abstracto e o individualismo certo. Mas a reunião, canto de cisne ressuscitado e passo para a frente incomensurável como uma chegada à lua são conseguidos e logo Keaton diz que não quer ouvir falar em velhos tempos. Diz ainda, como disse um dia o fotógrafo Paulo Nozolino, que detesta eventos, sendo óbvio que prefere a verdade, seja qual for, a das rugas ou o contrário. Absolutamente modernos, os palhaços velhos e alcoólicos entram em cena e só fazem palhaçadas, estando todo o filme nesse bloco: do mudo passa-se para o sonoro, do poder absolutizante da imagem para o poder concreto do som, da morte e da matéria sem margem para dúvidas para uma luz que é o espírito inapagável, a persistência de quem se sabe certo e acredita, e a vingança, que em Limelight tem o mesmo significado do que o amor. 

O palco final e o milagre. O palco dos palcos e a vida das vidas. A beleza de duas vidas: uma que se cumpriu em desígnios e sendas justas e assim maravilhosas e a graça sem palavras dessa bailarina que é a beleza total. A morte e a vida fundem-se e são uma e a mesma coisa. Com Keaton, o sobrevivente, como testemunha. O Palco a unir todas as voltas e pontas, física, metafísica e as orações pedidas ao longo do filme - Se não fosse a gravidade cairíamos nas estrelas. A gravidade que comporta a vida e a morte. Limelight é o mais pacificado e grave dos filmes existenciais.

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