sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Sambizanga (1972) de Sarah Maldoror



por Estela Cosme 

Sarah Maldoror é uma realizadora com uma história pessoal que marcou afincadamente a sua filmografia. Nascida em Gers, na França, como Sarah Ducados, adotou mais tarde um nome artístico com base nos Cantos de Maldoror do conde de Lautréamont. O seu pai era um homem negro de Guadeloupe, nas Antilhas Francesas, onde alguns dos seus filmes foram rodados, nomeadamente Un homme une Terre e Regards de mémoire, filmes exibidos na sessão da passada terça-feira do Lucky Star. Neles o tema do anticolonialismo está bem presente, e é através da voz do poeta Aimé Césaire que Maldoror demonstra a identidade negra em conflito com o domínio francês. Para além das suas raízes caribenhas, Maldoror foi casada com Mário Pinto de Andrade, escritor e sociólogo angolano e um dos membros fundadores do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). 

Foi juntamente com Andrade e com Maurice Pons que Maldoror adaptou a obra do escritor angolano José Luandino Vieira A Vida Verdadeira de Domingos Xavier para o guião do seu filme Sambizanga, considerado a sua obra-prima. Foi a primeira longa-metragem produzida, quer em Angola quer na África Lusófona, e foi também a primeira longa-metragem africana realizada por uma mulher.1 A sua importância cultural é apenas igualada pela sua proeza cinematográfica, onde a luta contra o colonialismo está bem demarcada. Aliás, o filme foi rodado no Congo e não em Angola, onde certamente o regime colonial teria impedido a sua produção. O filme só seria exibido em Angola e em Portugal após o 25 de Abril de 1974. A sua produção contou ainda com a participação ativa do MPLA, como Maldoror explicou em 2008: "O MPLA pôs toda a estrutura à minha disposição. Explicámos aos militantes que este filme era importante, porque ia incidir sobre Angola. Expliquei-lhes o que era o cinema e o que queria do filme. Todos participaram sem hesitar." 

Sambizanga é o nome de um dos distritos do norte da cidade de Luanda, onde fica a prisão da PIDE na qual Domingos Xavier acaba por ficar preso. Um tratorista com interesses no movimento revolucionário angolano, Domingos é levado um dia por agentes da autoridade que o removem de forma violenta de sua casa num musseque. A assanha impiedosa não impede que a sua mulher Maria parta à sua procura, com o seu filho às costas, determinada a encontrar o seu marido, que acredita ser inocente. O caminho é longo e árduo mas Maria é destemida, e quando sabe que Domingos foi levado para Luanda, Maria parte para a capital, cheia de mágoa e de garra, e com a ajuda da comunidade consegue visitar várias prisões da cidade e questionar sobre o seu paradeiro. É bem recebida em todas menos em Sambizanga, onde Domingos é cruelmente humilhado e torturado quando se nega a dar informação sobre o movimento revolucionário aos seus captores. A tragédia é inevitável e a viagem de Maria acaba em desgosto, uma mulher inconsolável com a morte do marido. Ele, por seu lado, torna-se um herói na causa da libertação angolana. 

O cruel destino de Domingos é desumano e é captado de forma feroz por Maldoror, que certifica que o público não fica indiferente aos horrores do colonialismo português, levado a cabo não só pela brutalidade branca de figuras como o português Pereira, mas também pelos homens negros que servem o regime colonial. No entanto, Maldoror também enfatiza a solidariedade que surge entre os revolucionários quando se sabe que Domingos é preso mas não se conhece a sua identidade, levando vários dos seus camaradas a grandes esforços para encontrá-lo. 

Embora seja Domingos quem sofra mais diretamente pelo regime colonial, é Maria que é o rosto do filme e, como consequência, o rosto da libertação angolana. Maria é uma mulher arrasada pelas ações das autoridades e que mesmo assim junta a coragem para sair do seu porto seguro para bater nas portas dos estabelecimentos mais temidos pela sociedade. Mesmo quando os seus gritos são mais fortes do que o choro do filho que leva às costas, Maria não se cansa de procurar o seu marido e de protestar a barbárie a que é sujeito. Maria é uma manifestação andante de uma sociedade cativa que começa a revolucionar-se contra o seu colonizador. Maldoror refletiu sobre a questão na mesma entrevista: "O filme mostra que as mulheres também participaram da luta. Mulheres com filhos nos braços, que lhes tinham que explicar porque é que o pai partiu, quais os riscos e a própria realidade."[2] Em retrospectiva, Maria simboliza a força e determinação que levou à independência das colónias e à reformulação de Angola como país livre. 

O caminho de Maria é árduo e ingrato dado o seu final, mas não por isso menos poético ou valente. É um caminho motivado pelo amor, justo e nobre, tal como ilustrado no poema de Agostinho Neto, que é cantado enquanto assistimos ao percurso de Maria:

Caminho do mato 
caminho da gente 
gente cansada 
ó ó ó-oh 

Caminho do mato 
caminho do soba 
soba grande 
ó ó ó-oh 

Caminho do mato 
caminho de Lemba 
Lemba formosa 
ó ó ó-oh 

Caminho do mato 
caminho do amor 
amor do soba 
ó ó ó- oh 

Caminho do mato 
caminho do amor 
do amor de Lemba 
ó ó ó-oh 

Caminho do mato 
caminho das flores 
flores do amor."[3]

[3] "Caminho do Mato" de Agostinho Neto: https://agostinhoneto.org/poesias/caminho-do-mato-2/



quarta-feira, 2 de outubro de 2024

360ª sessão: dia 3 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Longa-metragem de Sarah Maldoror para ver na BLCS

Durante o mês de Outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe catorze filmes em parceria com os Encontros da Imagem, com sessões às terças e quintas-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. O ciclo adopta um termo cunhado pelo poeta e ensaísta Édouard Glissant, intitulando-se “Cinema Todo-Mundo — colonialismo e a memória do futuro”. 

Sambizanga, de Sarah Maldoror, baseado no romance do autor angolano José Luandino Vieira, A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, será exibido na quinta-feira dia 3 de Outubro, em cópia restaurada e gentilmente cedida pela Cineteca di Bologna.

Sarah Maldoror nasceu em Gers, na França, em 1929. Apesar de nascer com o apelido de "Ducados", escolheu o nome de "Maldoror" como nome artístico, a partir dos Cantos de Maldoror do conde de Lautréamont.

Foi co-fundadora da companhia de teatro Les Griots, em Paris, onde encenou peças de Jean-Paul Sartre e Aimé Césaire. Estudou no Studio Gorki nos anos sessenta sob a orientação de Mark Donskoi, onde conheceu Ousmane Sembène, realizando a sua primeira curta-metragem, Monangambê, em 1969, baseada como Sambizanga numa obra do escritor José Luandino Vieira.

Sambizanga é a sua primeira longa-metragem de ficção. Nela acompanhamos uma mulher, com o seu bebé às costas, na sua longa caminhada dos musseques até aos arredores da cidade de Luanda, em busca do seu marido desaparecido. As paisagens tipicamente africanas, cheias de cor e sons luminosos, que Maria atravessa são contrapostas com a violência infligida pela PIDE sobre aqueles que lutam pela liberdade.
 
"O MPLA pôs toda a estrutura à minha disposição," disse Maldoror sobre o seu filme em entrevista a Pedro Cardoso para o Novo Jornal de Angola em 2008. "Explicámos aos militantes que este filme era importante, porque ia incidir sobre Angola. Expliquei-lhes o que era o cinema e o que queria do filme. Todos participaram sem hesitar."

"O filme mostra que as mulheres também participaram da luta," disse a cineasta na mesma entrevista. "Mulheres com filhos nos braços, que lhes tinham que explicar porque é que o pai partiu, quais os riscos e a própria realidade."

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, durante este ciclo às terças e quintas às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Quinta!

terça-feira, 1 de outubro de 2024

Aimé Césaire, un homme une terre (1976) + Regards de mémoire (2003) de Sarah Maldoror



por Duarte Carvalho

Após a visualização destas duas curtas, existe a sensação de que estamos a ser introduzidos a uma nova cultura, num resort transatlântico em dia de passeio, por um brilhante guia, Aimé Césaire. 

A civilização que nos é apresentada é das ilhas Antilhas, marcada por séculos de escravatura e exploração de pessoas e terras. Passamos pelas marcas da história visíveis no território, algumas antigas, outras pequenos memoriais mais recentes do que se passou. Ao longo da explicação é-nos introduzido o conceito de Negritude, a ligação partilhada entre os descendentes dos escravizados, espalhados por todo o mundo mas principalmente nas ilhas Antilhas, nos Estados Unidos e em África. O nosso guia acredita que esta ligação ajuda a evolução económica, cultural e evolutiva, e segundo ele, permite à árvore, finalmente, encontrar os nutrientes para que consiga crescer, florir e deixar a sua dependência e não sendo suficiente ganhar, por fim, força própria. 

Começamos numa jornada que parte como a dos escravos, pela porta do não retorno, fazendo lembrar as portas de Auschwitz; passamos pelo equivalente do palácio de Versailles, Citadelle Laferrière, onde nos é contada a história “trágica como Shakespeare” do primeiro rei do Haiti; e terminamos a primeira curta numa ruína de uma fábrica colonial, a Bibliothèque Schœlcher, e num memorial às vítimas da escravatura, onde é entrevistado Césaire. Esta visita mostra o caminho de reconstrução, reconhecimento e evolução que terá de ser percorrido pela população de Martinique. A segunda curta mostra o dia-a-dia desta ilha, o mercado, a arte local, as casas e uma construção em desenvolvimento. 

Para além destes sítios são introduzidos alguns dos heróis da Negritude mais proeminentemente das Antilhas: Toussaint Louverture, governador do Haiti, descrito por Césaire como uma fusão de Napoleão com Spartacus. Louverture é conhecido pelas suas vitórias e sucesso em combate e por liderar a primeira e maior revolução de escravos sendo um símbolo de heroísmo para as colónias e um terror para os colonizadores nas Américas. Outro herói, Henri Christophe, o primeiro rei do Haiti e concretizador da formação do estado após revolução começada por Toussaint, marcado pela sua influência para o bem e para o mal dos monarcas europeus. E por fim, Patrice Lumumba, que na era de Kennedy e Martin Luther King partilha muitas das suas características, até na morte. 

Césaire, como um guia de turistas, usa a língua francesa dos visitantes, mas também usa hábitos de expressão, comunicação visual, narrativa e expressiva, produz peças de teatro, poesia, citando como referências escritores francófonos e usando pontos de referência da história europeia, da qual parece ser um grande conhecedor. A certa altura evoca como comum às duas culturas o surrealismo, do qual admite ser admirador acreditando ser a ponte entre as duas culturas. Nas entrevistas aqui presentes parece estar numa constante busca do seu lugar, recusa-se a ser francês para não querer dar poder ou legitimidade à ainda abusadora e ex-esclavagista europa, e ao mesmo tempo sente-se demasiado rebelde para a sua ilha de Martinique, que aparenta ter aceitado a situação em que se encontra. 

Césaire, admitindo o peso da natureza que o rodeia, acredita que membros desta grande família africana, separada forçosamente, reencontrar-se-á na expansão das suas raízes. A jornada dos povos das Antilhas é antítese da jornada europeia, ao invés da expansão, há nos descendentes de escravos uma busca e descoberta do interior - tal como os antigos edifícios coloniais inevitavelmente foram engolidos pela natureza, também as semelhanças entre os homens prevalecerão sobre as suas diferenças.