por António Cruz Mendes
Quando Inês T. Alves chegou à aldeia de Suwa, nas margens do rio Pastaza, ainda não sabia que ia realizar um filme. Não conhecia aquela comunidade. Aliás, era a primeira vez que visitava a Amazónia. Decidiu visitá-la porque, di-lo numa entrevista a Paulo Portugal, publicada no site Esquerda.net, “tinha vontade de estar só a viver e a aprender”. E assim foi
durante o primeiro mês da sua estadia na aldeia Achuar, que se encontrava muito isolada, mas aberta a contactos com o exterior. Aí chegada, Inês, que já conhecia a sua professora primária, não teve dificuldade em relacionar-se com os seus habitantes e, sobretudo, com as suas crianças.
Já havia feito um mestrado em cinema documental na University of Arts, em Londres, realizado algumas curtas-metragens, e trazia consigo uma câmara de filmar com um microfone incorporado. A dada altura, começou a registar imagens de tudo o que via. Impressionou-a sobretudo a autonomia dos mais novos, a liberdade com que viviam e a facilidade com que se relacionavam com a natureza. E foi das imagens que documentavam o seu quotidiano que acabou por nascer este filme.
É claro que sabemos que os adultos estão na aldeia, mas eles surgem somente numa das últimas cenas do filme, talvez apenas para comprovar a sua presença. Todo o protagonismo cabe às crianças. Vemo-las livres, divertidas e amigas, a recolher frutos na floresta, a pescar, a cozinhar, a tomar banho no rio, a inventar os seus próprios brinquedos e jogos.
Algumas das suas brincadeiras não serão muito diferentes das dos miúdos “ocidentais” e, desde logo, com eles, partilham do seu interesse pelos smartphones. Contudo, a electricidade e a internet chegaram há pouco tempo à aldeia e uma das questões que o filme pode levantar é a de saber que impacto poderá isso vir a ter no seu futuro. Por um lado, as novas tecnologias abrem-lhes outras possibilidades de contactar com um mundo exterior; por outro, todos sabemos que o
telemóvel também pode ser um instrumento alienante. Para já, e segundo a realizadora, que voltou a visitar essa aldeia cinco anos depois de realizar Águas do Pastaza, e apesar de se conhecerem
projectos de abertura de estradas de molde a facilitar o comércio dos madeireiros e da haver homens da aldeia a trabalhar fora do seu território, não parece que o seu quotidiano se tenha alterado substancialmente.
Sabemos pelas imagens gravadas de uma conversa de Inês T. Alves com o público de uma projecção de Águas do Pastaza programada pelo Cineclube Vilafranquense, que, numa comunidade onde ainda não havia televisão, Inês T. Alves exibiu alguns filmes que trouxe consigo (documentários, filmes do Charlot e filmes de animação) e que isso despertou grande curiosidade e interesse, nomeadamente entre as crianças, que começaram logo, elas próprias, a gravar imagens com os seus smartphones. Inês permitiu-lhes mesmo experimentar a sua própria câmara, o que, mais tarde, passou a evitar por recomendação dos adultos, com medo de que as crianças a estragassem.
A beleza da selva amazónica, do rio, das próprias crianças, transmite-nos uma ideia de harmonia, de paz e serenidade. Mas, não nos dará este filme uma visão algo idealizada da vida destas crianças? Nunca há, na sua vida, conflitos, zangas, momentos de tristeza, doenças, dor? Inês T. Alves, na entrevista já aqui referida, admite a hipótese duma visão algo romântica, utópica. Por outro lado, diz nunca ter sido seu objectivo fazer um documentário etnográfico. O filme nasceu do seu “breve encontro” com a vida dos miúdos que filmou e, de certa forma, também da maneira como elas reagiram ao facto de se verem filmadas: algumas das cenas de Águas de Pastaza foram sugeridas pelas próprias crianças que as protagonizaram. É, portanto, de todo merecida a galeria de retratos, dos seus rostos sorridentes, por vezes um pouco envergonhados, outras vezes inquisidores, com que termina o filme.
A realizadora assume, tanto quanto possível, uma posição de observadora, deixando aos espectadores o cuidado de interpretarem o resultado das filmagens. No entanto, a citação de Agostinho da Silva que nos surge logo no início do filme (“As qualidades infantis deveriam conservar-se até à morte, como qualidades distintamente humanas – as da imaginação, em vez do saber, do jogo, em vez do trabalho, da totalidade, em vez da separação”) oferece-nos uma pista para uma possível leitura: Há características que geralmente se associam às crianças, mas que fazem parte da nossa essência como seres humanos. Algo que nas sociedades contemporâneas se poderá estar a perder, mas que importa saber resgatar.
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