quarta-feira, 6 de abril de 2016

Em Abril, no Lucky Star



Apresentação de Vontade Indómita, por José Neves

The Fountainhead (1949) de King Vidor



por José Oliveira

The Fountainhead, realizado em 1949 por King Vidor a partir do romance homónimo de Ayn Rand, ainda hoje é objecto de inúmeras leituras e motivos, resultando as conclusões numa irresolução que parece tão certa como os múltiplos destinos e pulsões dos diversos protagonistas do filme. Se o próprio romance em questão é considerado por um lado um apogeu do romantismo - mesmo que tardio e então terminal – por outro não há como escapar ao objectivismo a que a autora também se entregou. Mas entra-se de rompante no som e na imagem e logo a vertigem que Vidor mete em centro de ebulição parece reenviar para um princípio e um fim que se completam no grande anel temporal, síntese cósmica que só fala da solidão do homem na chegada e na partida, avançando e desbravando sobre o que o rodeia e o que o desafia. 

Muitos viram na tomada de posição de Rand uma defesa e uma idealização do grande arquitecto americano Frank Lloyd Wright, que como Howard Roark – o arquitecto interpretado por Gary Cooper – se manteve fiel a si próprio até ao fim, unindo natureza, espírito e corpo num todo nascente de uma personalidade e de uma demanda sem freios. Outros falaram de vingança de Vidor sobre David O. Selznick, o intempestivo produtor que pouco tempo antes lhe "destruíra" um dos seus projectos mais acarinhados, Duel in the Sun – neste caso Howard Roark seria metáfora do próprio cineasta em busca da sua visão total no ecrã. Mas ainda alguns defenderam e defendem que se tratou de ridicularizar o McCarthysmo e o seu senador, expondo à saciedade o genocídio de silenciar à nascença qualquer tipo de génio e desvio à norma. 

Tudo isso poderá estar certo, tudo isso poderá ser extremamente redutor. A evidência é que do mais panteísta dos cineastas que Hollywood alguma vez conheceu só jorra do desejo mais puramente humano, travando a razão e a contradição uma batalha épica sem memória e assim absolutamente sagrada, onde no interior de tanta sombra, treva e luz, apenas centelhas e vislumbres de claridade brilham para fazerem sentido no absoluto plano final da fusão física e metafísica além vida e além morte, conhecido e desconhecido, o céu com a terra, fora do tempo marcado e dos espaços vectorizantes – a entrega a si próprio, a chegada aos outros, a diversidade: poderá ser esta a luz do bem por que Vidor e Roark lutam em cada acção e em cada plano, arriscando a incompreensão e a existência defronte do medo e do totalitarismo. 

Daí que a prodigiosa construção fílmica – os volumes, os descentramentos, os reflexos ou a pressão em relação com carne, sangue e mente – enlace constantemente e difusamente com a feroz dimensão erótica que toma posse desses fantasmas que se auscultam e clamam por massa palpável; na teia inescapável das relações, tanto o arquitecto revolucionário como o magnata da imprensa que dá de comer às manadas, tanto o pomposo crítico de arte como a mulher que procura a beleza e a perfeição no lixo e na castração social, se encontram no ponto crucial – a ambição e a fome desmedida – para se separarem e se estilhaçarem na temperatura interna, do sangue ou da alma – o segredo. 

Cena fulcral e aglutinadora é quando Dominique Francon se espanta pelo edifício de Roark sem saber do seu autor. Aí, essa mulher que preferia destruir deuses e ancestralidades a vergar-se à escravidão do amor, sente antes de perceber, ama antes de ver, põe a essência à frente do corpo e do rosto, o fundo e o elementar no lugar da fama e dos louros. Ver para crer, foi a doutrina de São Tomé, mas essa mulher que já sabia do homem de toda a coragem e de toda a confiança sem o dizer a si mesma, olhou e viu o que sempre quis encontrar através do espírito e da personalidade de um ser sem a imposição do físico, e acreditou. Rimando no encontro de Roark com o dito crítico enfatuado - única personagem integralmente abjecta - onde a fidelidade e a comunhão surgem sublimadas nesse "But I don't think of you" que coloca os valores e as prioridades na marcha certa do progresso. Neste joguete limite de santos e de monstros que Vidor escancara instante a instante esses dois encontros surgem como o positivo e o negativo de todas as coisas, perfazendo a moral plena, unindo os antes e os depois. 

Howard Roark ou Frank Lloyd Wright, Vidor ou Selznik, o comum ou a excepção, todos e qualquer um se hão-de encontrar um dia na cegueira da ânsia e da febre primária e animalesca para se separarem no fundo e no coração. A água e o paraíso da manhã inaugural, o fogo da consumição e dos infernos estupefactos, a ciência e o metal moderno, novas formas para novas visões. De tudo isso e do irresolúvel é feito The Fountainhead, estando tão certo o discurso final de Cooper como o estava quando trabalhou com o fantasista calejado de nome Frank Capra. Sejam bem-vindos ao vórtice circular e exacto das questões intemporais. E à força sublime que pode despertar dos homens e das paixões sem limites legislados, à imagem e semelhança da natureza indomável e sem explicação. Fica a estremecer o plano final – rampa convulsa e estelar da resolução. O nome de Deus simples e inaudito. Bem-aventurados os que ousam o passo seguinte. Direcção, interior.

quinta-feira, 31 de março de 2016

8ª sessão: dia 5 de Abril (Terça-Feira), às 21h30


Obra total e intempestiva, The Fountainhead, realizado em 1949 por King Vidor, é a nossa proposta para a próxima terça-feira, dia 5 de Abril. 

Sobre ele, Mário Jorge Torres escreveu: 

"Metafísica e erotismo, arquitectura e cinema unem-se numa das mais demenciais representações da fúria do desejo: Vontade Indómita / The Fountainhead, de King Vidor. Usando um dos actores mais transparentes de Hollywood, Gary Cooper, subverte o seu poder estelar e coloca-o no centro de uma ficção quase sado-masoquista. No cimo do seu arranha-céus, Cooper não é tanto a imagem do arquitecto que submeteu a cidade mas a manifestação sublime da vontade do homem. Quando na sequência final de The Fountainhead / Vontade Indómita assistimos à ascensão de Patricia Neal num tosco elevador de uma obra, para se juntar a Gary Cooper, visto em fabuloso contrapicado, lá em cima, no topo do mundo, já estamos preparados para quase todos os delírios."

Para apresentar o filme, o Arquitecto José Neves (admirador de Vidor) preparou-nos um vídeo. É aparecer e trazer um amigo.

Deixamos ainda algumas palavras do grande João Bénard da Costa:

"Já tinha mesmo esquecido o livro, quando, uns 15 anos depois, me achei na Cinemateca de Paris, em retrospectiva a Vidor, a ver o filme que, em 1949, King Vidor tinha extraído do best-seller de Mrs. Rand. Como me tinham avisado, não havia na obra as «páginas de doutrina estética» em que a escritora se espraiara. Não havia muitas e diversas mulheres, mas só uma. Não havia finais pungentes, havia happy-end. Mas havia uma paixão «without dignity and without regrets» e havia, numa das mais poderosas imagéticas de que me consigo lembrar, a recapitulação da estrutura do cosmos na estrutura de um corpo (o corpo de Gary Cooper, que na tela interpretou Howard Roark) e a da estrutura do espírito na da obra. E havia a recapitulação da função criadora nos pólos antagónicos e complementares dessa criação. Do mais panteísta dos cineastas, o mais panteísta dos filmes. Grande é a minha paixão por King Vidor (gigante que atravessou toda a história do cinema de 1919 - Better Times - a 1959 - Solomon and Sheba), de todos os cineastas o mais operático e o mais plástico. 

(...) Mas, quanto mais o tempo passa e quanto mais revejo The Fountainhead, mais me convenço que é essa a obra-prima de Vidor, no essencial de tudo o resto. 

(...) Ver The Fountainhead a partir do seu jogo de luzes e sombras, da utilização da profundidade de campo e da distorção dos enquadramentos, é um nunca acabar de surpresas formais que tornam este filme, do ponto de vista plástico, (e King Vidor foi também um dos grandes «pintores» americanos) numa das mais complexas e elaboradas obras alguma vez saídas dos estúdios de Hollywood. 

(...) E nessa entrega - aos pés do fálus - The Fountainhead, o mais dionisíaco dos filmes, atinge o cerne do próprio mito da apoliniedade."

Até Terça!

terça-feira, 29 de março de 2016

Apresentação de Amor Selvagem, por Chris Fujiwara




Canyon Passage (1946) de Jacques Tourneur



por João Palhares

My thoughts rarely travel in a straight line 

Brian Donlevy, no filme 

Robert Siodmak, realizador do bem cínico e explosivo Phantom Lady da semana passada, e num acaso que dá o mote para a sessão desta semana e a liga à dessa semana, esteve para realizar Canyon Passage, como de resto também esteve Stuart Heisler, provando que os realizadores em Hollywood bastantes vezes não tomavam parte na génese dos projectos nem sequer tinham palavra em relação aos guiões dos seus filmes. Jacques Tourneur confessou ter dito sempre que sim a cada projecto que lhe punham à frente e Fritz Lang também disse que, em Hollywood, se não se quisesse acabar a carreira mais cedo era boa ideia nunca dizer que não. Sabendo isto, alguns realizadores retaliavam filmando o menos possível, o suficiente apenas para uma única montagem, evitando filmar esses planos “pelo sim pelo não” que depois acabavam por ser usados por produtores para construir um filme totalmente diferente nas suas costas. Uma questão prática, como assumiu o próprio Tourneur, quando disse a Simon Mizhari, para a Présence du Cinéma, que “o próprio som é muito importante, e eu não gosto de misturar os sons. Sigo sempre de muito perto a sincronização e a montagem sonora dos meus filmes. Às vezes tomo grandes liberdades. Se alguém está prestes a falar, se levanta e começa a andar, eu corto o som todo e não ouvimos o barulho dos passos. Se um vilão entra numa casa e precisa de subir uma escada, eu sei que, depois de eu sair, os técnicos vão guardar os sons todos, a escada, a porta, os passos. É por isso que faço a minha própria mistura de som no plateau. Assim que o actor acaba de falar ou de abrir a porta, eu corto o som e há um completo silêncio enquanto ele sobe e atravessa a sala. Assim sei muito bem que logo que o filme esteja terminado e eu já lá não estiver, os técnicos não vão fazer asneiras na mistura.” E isto pode-se ver, por exemplo, numa cena em que Honey Bragg, a personagem interpretada por Ward Bond chega e só percebemos que alguém chega pela reacção de Hi (Hoagy Carmichael). E que é Bragg, só quando Ward Bond entra em campo. 

Claro que também se pode ver e também se pode perceber isso tudo pela maneira como Tourneur filma, como constrói os planos e como pensa as cenas. Através de movimentos de câmara como o que começa acompanhando Lucy Overmire (Susan Hayward) quando esta descobre que Logan (Dana Andrews) vai casar com Caroline (Patricia Roc), parando primeiro perto de Vane (Victor Cutler), que sente o mesmo que ela em relação ao casamento, enquadrando-os aos dois em ciúme colectivo, e que termina enquadrando Andy Devine (Ben Dance) a sussurrar ao ouvido de Caroline. Antes desse plano terminar, Lucy ainda tem tempo para esconder os ciúmes e dar os parabéns aos noivos, o que demonstra o poder de síntese de Tourneur e imprime às cenas esses traços de surpresa e de novidade constantes, com pormenores que à terceira revisão ainda despontam e que descobrimos pela primeira vez. Canyon Passage, como os grandes Tourneurs, é muito difícil de apreender à primeira vista, pode-se acompanhar a história e sair muitíssimo satisfeito mas as ênfases e pontuações que ele dá a certas coisas ou a calma quase resignada com que pinta a revolta e a agitação interior de certas personagens são coisas bem mais misteriosas e que persistem já em forma de fascínio insondável muito depois de se ter visto o filme e superando esse paradoxo e essa estranheza iniciais. E foi esse fascínio, sem dúvida, que levou Louis Skorecki a escrever em Contre la Nouvelle Cinéphilie que “o cinema de Tourneur é mesmo o cinema do invisível, mas de um invisível que se lê e que se desenha sobre o próprio tecido da tela: os traços estão lá, as impressões, e as sombras, e basta, no seu pequeno fora de campo apaixonado e pessoal, saber não cobrir os olhos; basta saber não cobrir os olhos diante da persistência do real, das manchas do real que são as marcas efectivas na tela de uma experiência única do invisível; basta ver o filme, dá medo, isso está lá, vê-se.“ Ou Jacques Lourcelles, em Note sur Jacques Tourneur, que “os filmes de Tourneur são aqueles em que, do princípio ao fim, temos mais a impressão de ver as personagens envelhecer – vingança do Tempo sem dúvida, expulso artificialmente da mentalidade dos protagonistas. Compromisso também, renúncia, em relação àquilo que queríamos ter sido, querido fazer, em relação às pessoas que queríamos ter encontrado, aos sítios em que queríamos ter vivido; renúncia, sobretudo, em relação a tudo aquilo que queríamos ter aprendido e descoberto. (O herói de Tourneur, tentemos dizê-lo sem literatura, é um herói rodeado de fantasmas e de mistérios insolúveis, de mistérios que ele renuncia pouco a pouco em resolver.) Compromisso definitivo, e nada mais, com os nossos esforços, os nossos sofrimentos.” 

Outra cena, que além de demonstrar o trabalho minucioso e exaustivo de Jacques Tourneur esconde também mistérios profundos, é a que mostra o atormentado George (Brian Donlevy) a seguir o pobre McIver com o olhar e tomar a decisão de o matar. Em que se vê e se sente tudo pelos olhos de Donlevy e pelos enquadramentos bem expressivos de Tourneur nessa noite escura. E é George a personagem mais atormentada deste filme, indeciso em tudo e indeciso ao ponto de deixar as suas decisões nas mãos das moedas que atira ao ar, confuso em relações e com sonhos e aspirações que acabam por o destruir. Mas, para complicar isto bastante (como é já complicada a perseguição e a fissura da comunidade com a personagem de Ward Bond, a relação de Lucy e Logan e a de Caroline com os Dance) não são sonhos despropositados ou pouco razoáveis, despedaçam-se apenas pelas circunstâncias e pelo que as amontoadas e sucessivas decepções, choques e privações fazem à sua alma frágil. Não parece ser mentira que Logan, George e Bragg (e Lucy também, porque não?) são personagens muito parecidos e que querem todos a mesma coisa: uma saída. Qualquer coisa além do ar fresco do Oregon, duma casa nesses campos e das festas em comunidade. Talvez não soubessem bem o quê e talvez quisessem passar a vida inteira à procura e em constante mudança e constantes viagens. 

De resto, só posso elogiar as cenas que salientam a beleza do Oregon e ilustram os esforços dos primeiros americanos em fundar comunidades e explorar a terra, a personagem de Hoagy Carmichael que nos ajuda a perceber as coisas, servindo mesmo como testemunha e observador atento das acções das outras personagens, um pouco como a personagem de Bob Dylan em Pat Garrett & Billy the Kid de Sam Peckinpah (e aqui lembro que Peckinpah foi assistente de Tourneur em Wichita) e toda a cena final, da perseguição à conversa entre as ruínas e as cinzas que celebra a persistência e a tenacidade humanas e onde todas as tramas e toda a história do filme confluem apenas para garantir e prometer que, acabadas essas, outras virão.

quinta-feira, 24 de março de 2016

7ª sessão: dia 29 de Março (Terça-Feira), às 21h30


Technicolor. Oregon e os seus verdes e amarelos, montanhas e planícies. O fogo avermelhado das paixões e o frio acinzentado da ganância. Dana Andrews, Susan Hayward e o monumento Ward Bond. Canções à desgarrada e melodias solitárias. Todo um mundo em progressão pelo milagre original do Cinema. 

Muito do grande Western e dos seus espaços míticos, mas também um nítido interesse pelas actividades humanas e pelas suas evoluções que levou o crítico Miguel Marías a comparar Canyon Passage aos filmes didácticos de Roberto Rossellini. 

«Muitos, muitos se esforçaram por aceder a um "realismo poético". A Tourneur - neste filme único - isso foi dado de graça. Bastou-lhe saber que todo o real é poesia e toda a poesia é real», escreveu João Bénard da Costa sobre Stars in My Crown. Mas será que não se poderá dizer o mesmo das vivas cores de Canyon Passage

Chris Fujiwara, autor dos livros Jacques Tourneur: The Cinema of Nightfall, The World and Its Double: The Life and Work of Otto Preminger e Jerry Lewis, editor geral do livro Defining Moments in Movies, editor da revista online Undercurrent, crítico do "Boston Phoenix" (entre outros) e ex-director artístico do Festival Internacional de Edimburgo, gravou um vídeo para nós.

No prefácio do livro de Fujiwara sobre Tourneur, Martin Scorsese escreveu o seguinte sobre Canyon Passage, "Take Canyon Passage, an example of the short-lived but very interesting sub-genre of the “noir western” and a picture that’s very special to me. It’s one of the most mysterious and exquisite examples of the western genre ever made. When you think of “westerns” you immediately picture the plains or the desert, vast spaces that stretch on and on for miles. But this film, Tourneur’s first in color, is set in a small town in the mountains of Oregon, and it is lush, green, muted, and rainy (one of the first scenes in the movie shows the cramped main street of Portland turned into a muddy bog by a downpour). Even the open spaces in this movie are just small mountain clearings. If you study Canyon Passage carefully you’ll see that Tourneur constantly composes diagonally into small spaces, showing people walking up or down inclines, and it gives you the feeling that this is a real settler’s town. One of the first shots in the movie is of Hoagy Carmichael singing a song as he slowly rides his donkey up the steep little main drag of the town—it’s repeated in the end (it’s in this movie that Carmichael also sings “Ole Buttermilk Sky,” a song that instantly transports me back to my childhood whenever I hear it). And it embodies the muted, understated beauty of the entire film.

There are some beautiful set pieces in Canyon Passage like the Indian attack and the barnraising, but the overall tone is so carefully controlled that every small variation or nuance has an impact. That’s what makes Tourneur’s films so unsettling, this strange undercurrent that runs through every scene but that somehow enhances the dramatic impact of the whole film."

Em 2010, Pedro Costa e Chris Fujiwara conversaram sobre Tourneur em Tóquio. Conversa que se pode ler aqui

Apareçam e passem a palavra.