por José Oliveira
The Fountainhead, realizado em 1949 por King Vidor a partir do romance homónimo de Ayn
Rand, ainda hoje é objecto de inúmeras leituras e motivos, resultando as conclusões numa
irresolução que parece tão certa como os múltiplos destinos e pulsões dos diversos protagonistas do
filme. Se o próprio romance em questão é considerado por um lado um apogeu do romantismo -
mesmo que tardio e então terminal – por outro não há como escapar ao objectivismo a que a autora
também se entregou. Mas entra-se de rompante no som e na imagem e logo a vertigem que Vidor
mete em centro de ebulição parece reenviar para um princípio e um fim que se completam no
grande anel temporal, síntese cósmica que só fala da solidão do homem na chegada e na partida,
avançando e desbravando sobre o que o rodeia e o que o desafia.
Muitos viram na tomada de posição de Rand uma defesa e uma idealização do grande arquitecto
americano Frank Lloyd Wright, que como Howard Roark – o arquitecto interpretado por Gary
Cooper – se manteve fiel a si próprio até ao fim, unindo natureza, espírito e corpo num todo
nascente de uma personalidade e de uma demanda sem freios. Outros falaram de vingança de Vidor
sobre David O. Selznick, o intempestivo produtor que pouco tempo antes lhe "destruíra" um dos
seus projectos mais acarinhados, Duel in the Sun – neste caso Howard Roark seria metáfora do
próprio cineasta em busca da sua visão total no ecrã. Mas ainda alguns defenderam e defendem que
se tratou de ridicularizar o McCarthysmo e o seu senador, expondo à saciedade o genocídio de
silenciar à nascença qualquer tipo de génio e desvio à norma.
Tudo isso poderá estar certo, tudo isso poderá ser extremamente redutor. A evidência é que do mais
panteísta dos cineastas que Hollywood alguma vez conheceu só jorra do desejo mais puramente
humano, travando a razão e a contradição uma batalha épica sem memória e assim absolutamente
sagrada, onde no interior de tanta sombra, treva e luz, apenas centelhas e vislumbres de claridade
brilham para fazerem sentido no absoluto plano final da fusão física e metafísica além vida e além
morte, conhecido e desconhecido, o céu com a terra, fora do tempo marcado e dos espaços
vectorizantes – a entrega a si próprio, a chegada aos outros, a diversidade: poderá ser esta a luz do
bem por que Vidor e Roark lutam em cada acção e em cada plano, arriscando a incompreensão e a
existência defronte do medo e do totalitarismo.
Daí que a prodigiosa construção fílmica – os volumes, os descentramentos, os reflexos ou a pressão
em relação com carne, sangue e mente – enlace constantemente e difusamente com a feroz
dimensão erótica que toma posse desses fantasmas que se auscultam e clamam por massa palpável;
na teia inescapável das relações, tanto o arquitecto revolucionário como o magnata da imprensa que
dá de comer às manadas, tanto o pomposo crítico de arte como a mulher que procura a beleza e a
perfeição no lixo e na castração social, se encontram no ponto crucial – a ambição e a fome
desmedida – para se separarem e se estilhaçarem na temperatura interna, do sangue ou da alma – o
segredo.
Cena fulcral e aglutinadora é quando Dominique Francon se espanta pelo edifício de Roark sem
saber do seu autor. Aí, essa mulher que preferia destruir deuses e ancestralidades a vergar-se à
escravidão do amor, sente antes de perceber, ama antes de ver, põe a essência à frente do corpo e do
rosto, o fundo e o elementar no lugar da fama e dos louros. Ver para crer, foi a doutrina de São
Tomé, mas essa mulher que já sabia do homem de toda a coragem e de toda a confiança sem o dizer
a si mesma, olhou e viu o que sempre quis encontrar através do espírito e da personalidade de um
ser sem a imposição do físico, e acreditou. Rimando no encontro de Roark com o dito crítico
enfatuado - única personagem integralmente abjecta - onde a fidelidade e a comunhão surgem
sublimadas nesse "But I don't think of you" que coloca os valores e as prioridades na marcha certa
do progresso. Neste joguete limite de santos e de monstros que Vidor escancara instante a instante
esses dois encontros surgem como o positivo e o negativo de todas as coisas, perfazendo a moral
plena, unindo os antes e os depois.
Howard Roark ou Frank Lloyd Wright, Vidor ou Selznik, o comum ou a excepção, todos e qualquer
um se hão-de encontrar um dia na cegueira da ânsia e da febre primária e animalesca para se
separarem no fundo e no coração. A água e o paraíso da manhã inaugural, o fogo da consumição e
dos infernos estupefactos, a ciência e o metal moderno, novas formas para novas visões. De tudo
isso e do irresolúvel é feito The Fountainhead, estando tão certo o discurso final de Cooper como
o estava quando trabalhou com o fantasista calejado de nome Frank Capra. Sejam bem-vindos ao
vórtice circular e exacto das questões intemporais. E à força sublime que pode despertar dos
homens e das paixões sem limites legislados, à imagem e semelhança da natureza indomável e sem
explicação. Fica a estremecer o plano final – rampa convulsa e estelar da resolução. O nome de
Deus simples e inaudito. Bem-aventurados os que ousam o passo seguinte. Direcção, interior.
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