por Miguel Faria Ferreira
Convém de vez em quando voltar a atacar o óbvio porque muitas vezes o esquecemos, ainda que isso seja redundante. O óbvio ficou lá atrás, tanto nos significados das palavras como das imagens. Esqueceu-se a câmara atenta e calma, que saiba pousar e retirar ideias das faces e das pausas, e perdeu-se a noção de que sem o que é primário não se pode avançar para o que vem depois. Com a consequência de que já poucos têm raízes – as plantas, plantadas um pouco ao lado, onde não têm espaço para crescer para baixo, morrem pouco depois, sem estruturas que as sustentem. Para falar destas coisas graves, já poucos têm coragem e quem a tem normalmente é velho e a sabedoria para o fazer vem dessa velhice, arrependimento de coisas de trás e lembrança tardia de que o trabalho é outra coisa, mas não o que vem sendo feito. Por isso é sempre um prazer ver um jovem a falar de problemas de sempre, tão de sempre que já ninguém tem a bravura de os desbravar. Aqueles que virem o filme e tenham a reacção de que não apresenta nada de especial acertaram: não apresenta vários mundos, os objectos valem a relação de memória que com eles as pessoas foram estabelecendo e todos os sentimentos residem em olhares, ora cheios ora vazios, em abraços, ora cheios ora vazios, em tristezas do pensamento e em procura de fazer penitência. Eu, por minha vez, acho que a especialidade reside em sentir coisas. Tive a oportunidade de escrever sobre um filme que considero especial.
E porque comecei com a ideia de tornar ao óbvio, quero primeiro perceber o que é uma lembrança. Paremos para pensar: uma lembrança refere-se sempre a algo que aconteceu e que já sabemos. Com ela, recordamos. A mente faz um retorno a alguma coisa que estava turva mas que existia. Só aí já há um processo que é um dos grandes mistérios da cabeça humana. Quando é que esta lembrança pode ser tardia? O tardio refere-se à impossibilidade, que muitas vezes se refere à morte. É o recordar de algum dever que provavelmente já não vamos conseguir cumprir, ou porque vamos morrer ou porque devemos a alguém que vai morrer. É uma lembrança que pesa, que nos faz desejar ter começado a correr mais cedo, e que nos deixa a mil à hora e muito mais zelosos na racionalização dos custos de oportunidade da nossa vida. Talvez só com uma lembrança tardia possamos realmente começar a pensar. E aí está: Lembrança Tardia, um filme de Tiago Costa. Peço desculpa pela longa introdução.
O filme de Costa começa com muitos bloqueios, feito de olhares que já não conhecem e de silêncios longos e incomodativos. Talvez tivesse sido esta a recepção do Filho Pródigo se, na hora exacta, à porta estivesse o Irmão e não o Pai. O abraço inicial é uma ficção de ternura, abre o filme de modo repentino, cai-nos como se dali fosse brotar uma relação da qual não sabemos ainda nada. É numa primeira conversa que percebemos que não, que já pouco existe naquele toque e que agarrar alguém e amar alguém não é sinónimo de ter perdoado, da aptidão para começar de novo. Como custa, já não nos ser familiar a nossa família.
E assim um homem voltou a casa, para ver a família, em visita rápida e com objectivos que não esconde, e tem ele mesmo dificuldade em entrar, em responder às questões, em estar confortável num sofá que também é seu. Ainda fala a mesma língua, mas há um temor do que possa acontecer que não lhe permite o à vontade, que chega a ser reverencial quando mais tarde aparece, finalmente, a figura do pai em contra-picado. Há traumas e situações que não estão esquecidas,

feridas abertas, percebidas no discurso do irmão mais velho, uma espécie de devoto da família, que não abandonou o posto, mas que por vezes se ressente dessa decisão conformista.
A câmara de Costa está à altura, quer estar junto das personagens e fazer opções quanto a elas, evita esconder, mostra que mesmo o constrangimento é para estar visível e que nos filmes não se revela tudo num primeiro momento. A primeira cena desvela pouco. Dois irmãos que fizeram escolhas na vida completamente distintas e que já não sabemos se cabem juntos na mesma casa.
Se este filme lembra outros, no tratamento da imagem, dos tons, na construção dos planos, lembra-os também na figura da mulher (cabelo ruivo, olhos azul-esverdeados), mas por uma espécie de afinidade que o realizador não procura esconder mas que de forma alguma lhe condiciona o cinema. Então não pode olhar-se para a mulher, a princípio, se não como uma figura imponente, que aparece noutra divisão da casa e que escuta. O olhar dela receia sentimentos que se possam desenvolver ali, do outro lado, na conversa, que lhe possam destruir planos com os quais ela não quer destruir nada mas em que a destruição é facto necessário. No início, ouvimos perguntar por uma mulher acompanhante e o irmão mais novo escapa à pergunta. Pode ser esta. É uma observadora e movimenta-se pela casa como uma estranha, estrangeira, com as cores do filme a darem-lhe uma aura de gradiva, mulher que anda.
Alheia aos traumas de família, começa a senti-los de fora, na sua viagem pela casa, e começa a saber as coisas, ao mesmo tempo que nós começamos a saber qualquer coisa. Os velhos e as memórias prendem-nos aos lugares por elos invisíveis e de uma força extraordinária que não podemos explicar. Como havemos nós de lidar com isso nos momentos em que procuramos tornar- nos um com alguém, um outro que tem os seus próprios elos, e juntá-los aos nossos em amor? Pôr um pé dentro de uma casa à qual já pertencemos é sempre um risco.
A revelação já se espera: a decisão é de ir embora, de mesmo com tudo isto quebrar os nós e dar passos numa outra direcção, para longe das antigas instituições e das coisas nossas que não compreendemos. Estamos prontos para ver se isto será coerente com o pouco que vimos no filme da mulher e do seu encontro com uma velha matriarca que já pouco agarra à vida. Do outro lado, entre irmãos, vai-se levantando o véu em relação a mágoas antigas, pecados que foram ataques contra a família, e que estão prestes a ser repetidos. Há um filme antigo em que um sonho é parte central, prenúncio de uma vida triste, mas aqui é-o ainda de forma mais dura: estão todos mortos e a mulher está no centro, inatingível.
Barreira estabelecida entre dois amantes, um coração que ainda não está preso às coisas da própria vida mas às antigas por resolver, a lembrança tardia de coisas que não se querem lembrar, um relógio e um quadro junto da velha mulher que não permitem que nos esqueçamos da passagem imparável do tempo, um colar que se dá em juras e que se tira em símbolo de verdadeiro amor, o do respeito pelo que o outro tem a fazer para que obtenha a sua realização mais profunda, uma mão que avança para outra mão e que nos traz o fim.
Sabedoria assumida é a da construção das cenas, a da organização do espaço, onde poisam as molduras e com que pose as pessoas se encostam às paredes-mestras da casa. A mais impressionante é a outra: a forma séria como o realizador assume posições acerca dos assuntos mais desesperantes da vida, numa atitude de cinema que devia ser a normal mas que neste momento de batalha é a verdadeiramente corajosa. Não é o espectador que vai escolher, com o botão do seu comando, o seu final alternativo preferido. As coisas foram ditas, os símbolos estão lá para serem interpretados, as emoções que flutuam são concentradas pouco a pouco, com o passar dos minutos, graças à significação das dores das pessoas que habitam aquela casa como se estivessem pregadas àquele chão, mas também de quem não a habita por mais do que um bocado. Não quis revelar tudo até porque me foi pedido para não revelar tudo. É um filme de pactos e de compromissos a longo prazo. Raro. Não sei se já o tinha dito acima. É raro.
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