quarta-feira, 13 de abril de 2016

David and Bathsheba (1951) de Henry King



por João Palhares

“Como hei-de dizer o 23º salmo?” perguntou Peck. 
“Di-lo com sinceridade”, respondeu King. 

diálogo contado por Walter Coppedge, em Henry King's America 

Não é fácil escrever sobre o David and Bathsheba do muito grande Henry King, pioneiro absoluto e que talhou uma obra imensa (mais de cem filmes, entre Who Pays? de 1915 e Tender is the Night de 1962), na qual iluminou e amparou com céus eternos os seus heróis sacrílegos. As palavras faltam quando se acaba de ver The White Sister ou Ramona, In Old Chicago ou Jesse James, Captain from Castile ou essa Song of Bernadette de que nunca mais esquecemos a doce melodia nem a doce Jennifer Jones, que no filme interpreta a menina Soubirous, em quem poucos quiseram acreditar mas de quem nós nunca duvidamos, nem por um segundo. Perdidos e imersos nos olhos dela e nas luzes milagrosas de King e de Arthur Charles Miller, somos capazes de jurar a pés juntos que apareceu quem diz ser a Imaculada Concepção e que, citando Georges Bernanos e o seu Journal d’un curé de campagne, “tout est grâce”

Foi por se ter esquecido de tudo isto que David, escolhido e ungido do Senhor, perdeu parte de si e aquilo a que assistimos em David and Bathsheba é a reconquista e a redescoberta muito árduas do que está escondido bem no fundo e bem no interior do rei de Israel e só Deus viu. Por isso essas duas sequências capitais e poderosíssimas deste filme causam o efeito que causam, deixando-se levar pelos ventos e pelas trovoadas divinas num sem fim de tumultos cósmicos e sagradas introspecções. A primeira no alto do monte Guilboa, uma das muitas “colinas da saudade” na obra de Henry King, quando amanhece e David sobe até ao cume para recitar a Elegia de seu nome e que está no primeiro capítulo do segundo livro de Samuel da Bíblia Sagrada. Vejam-se os maravilhosos movimentos de câmara dessa cena, revelando e expressando de maneira perfeita a pulsão que não é deste mundo e que faz arrastar o rei ao velho campo de batalha onde caíram o primeiro rei de Israel e o seu filho, Jónatas, melhor dos amigos de David. 

É quando diz e depois repete a frase “How the mighty have fallen” (embora se perceba já pela cena do arremesso de pedras com o pequeno pastor), que começa a ruína de David. E é por vermos apenas uma sombra do David de antanho (como o vulto em contra-luz que sobe o monte Guilboa), por ouvirmos apenas as histórias da sua grandeza e o vermos falhar em quase tudo, dum simples arremesso à harmonia familiar, que o flashback final (a segunda sequência capital deste filme) é de uma potência milagrosa e avassaladora. Nele vemos, finalmente, o David escolhido de  Deus, aquele de quem “o espírito do Senhor se apoderou” e vemos, sobretudo, um homem a transformar-se por ganhar de volta a sua alma e o respeito por si próprio. Que o pecado de David não é apaixonar-se por Betsabé (belíssima Susan Hayward, que já vimos em Canyon Passage e voltaremos a ver para a semana em The Lusty Men, de Nicholas Ray) mas esquecer-se desse jovem pastor que guiava e protegia as ovelhas e cantava e orava ao Senhor com a lira nos braços. O sonhador que com a guerra e o poder se esqueceu como se sonha. 

Mas isto não se via se não nos mostrassem, era um mero relato dos acontecimentos, como esta folha. O que Henry King faz é tornar isto palpável desde o momento em que David se lembra do que aconteceu ao soldado que amparou a Arca da Aliança com os braços e sai de rompante para a Sala do Trono, onde desafia o profeta Nathan (Raymond Massey, que vimos a semana passada no demencial The Fountainhead de King Vidor) e o povo de Israel, e daí como um relâmpago para o tabernáculo onde se deixou a Arca. Começando com esses planos rápidos e turbulentos em que David atravessa a cidade pelo meio da multidão, seguido por Nathan e pelo povo, até às esquinas sombrias e à saída da cidade, e progressivamente reduzir a velocidade dos movimentos de câmara, dos movimentos das personagens e baixar os sons dos acusadores até à imobilidade e ao silêncio duma oração. E daí seguir os mais pequenos gestos do rei até se prostrar à graça de Deus e o milagre acontecer, pela chuva redentora do Senhor. 

É por nos fazer acreditar nisso que o filme é uma obra-prima, e não por no-lo contar. Por nos levar consigo numa espiral de sensações contraditórias e indefiníveis e que talvez tenham par apenas nos arrepios que se sentem ao ouvir a Segunda Sinfonia de Gustav Mahler (chamada Ressurreição), ao ler o Siddhartha de Herman Hesse ou ao ver a Cattura di Cristo nell’ Orto de Caravaggio. E não é preciso acreditar em Deus para se sentir isso.

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