quarta-feira, 10 de maio de 2017

Dead Man (1995) de Jim Jarmusch



por João Palhares

Pergunta-se no princípio deste filme que tanto vai crescendo e melhorando de revisão em revisão, lá para o fim dessa viagem de comboio em que paisagem e passageiros se vão despindo até à aridez absoluta, “porque é que a paisagem se move, mas o barco está parado?” É o fogueiro interpretado por Crispin Glover quem o pergunta, dando de resto mais que bons conselhos ao William Blake de Johnny Depp que não quer acreditar que vai “encontrar a sua cova” ou que está a ir “em direcção ao inferno” quando decide deixar a sua Cleveland natal e mudar-se para a cidade de Machine. As vistas de árvores, desertos e montanhas recortadas pelas persianas das janelas do comboio (num scope temporário e a lembrar os recortes na imagem do tempo do cinema mudo, para juntar também à parecença de Depp com Buster Keaton neste princípio de filme - notada por Louis Skorecki em artigo para o Libération) também se movem quando a câmara está imóvel, como lembrou Robin Wood em From Vietnam to Reagan... and Beyond, e, intercaladas com as imagens dos passageiros que vão desfilando pela vista de Bill, ajudam-nos a perceber perfeitamente a transição gradual da região civilizada deste homem de Cleveland para a região selvagem onde está o seu novo emprego, dos acenos e dos sorrisos cordiais do início à rebaldaria dos caçadores de búfalos já mais perto de Machine.

Dead Man é de Jim Jarmusch, poeta punk dos anos setenta, aprendiz de Nicholas Ray e Samuel Fuller, rato de bibliotecas e cinematecas. Desviou fundos da bolsa de estudos para fazer o primeiro filme, tem cabelo branco desde os quinze anos. Realizou Stranger than Paradise, Down by Law, Night on Earth, Ghost Dog: The Way of the Samurai, Broken Flowers e Only Lovers Left Alive, entre outros filmes. Espreitou o CBGB, viveu  muito a sério a cena nova-iorquina dos anos setenta. Estudou com Spike Lee, Sara Driver e Tom DiCillio. Faz parte da sociedade secreta The Sons of Lee Marvin, aberta só para sósias do actor e da qual fazem parte Tom Waits, Iggy Pop, Neil Young e Nick Cave. Conheceu Jean-Luc Godard em Itália, e como não lhe conseguiu dirigir palavra, o franco-suíço tomou a iniciativa e falaram de gelados (“I scream, you scream, we all scream for ice cream”, não é o que gritam os prisioneiros de Down by Law?), retirando ele da conversa que os melhores são os da Île de la Cité em Paris, no meio do Sena. Jarmusch contou a história num simpósio internacional do Lisbon & Estoril Film Festival (agora Lisbon & Sintra Film Festival) para o qual nem sabia que ia, como substituto de última hora. O mesmo simpósio em que Paulo Branco (produtor tão amaldiçoado e vilipendiado mas que pelo menos luta pelo que acredita, como um pirata contra a Coroa inglesa) se passou com as banalidades que dizia Jonathan Rosenbaum e deixou sair palavras apaixonadas e alternadas entre o francês, o português e o inglês (dependendo do nível de irritação) sobre o cineasta franco-suíço. Coisas bonitas de se verem e de se ouvirem.

As personagens dos filmes de Jim Jarmusch não são donas dos seus destinos. Como as de Tarantino, sabem imenso de cultura popular. E tanto podem recitar de cor o Código Samurai, como os poemas de Robert Frost e Walt Whitman em italiano, debitar versos de Flavor Flav dos Public Enemy (“Live lyrics from the bank of reality / I kick da fliest dope maneuver technicality / To a dope track, you wanna hike git out ya backpack”) ou William Blake: “Some are born to sweet delight, some are born to endless night”. Por tudo o que lhes aconteça, nunca se admiram ou surpreendem, nunca lhes salta a tampa. Nunca têm histórias ou antecedentes banais, sejam um assassino contratado em dívida para com um mafioso italiano-americano e que usa pombos-correio para saber qual é a próxima missão, um motorista de táxi que se excita com abóboras, ovelhas e fala dos seus pecados como se fossem a coisa mais bela do mundo, levando um padre ao ataque cardíaco, ou um Índio que é sequestrado por ingleses, tem uma educação ocidental e é repudiado pelos seus, que o baptizam com o nome de “He Who Talks Loud Saying Nothing” (falando na cultura popular: o nome vem duma canção de James Brown, Talkin’ Loud and Sayin’ Nothing). 

Também William Blake tem um destino e uma viagem bem insólitos. Sem perceber muito bem porquê, vê-se envolvido numa cadeia de acontecimentos a que não consegue pôr termo, como se fosse o barco e a paisagem nunca parasse de se mover. De momentos caricatos em momentos caricatos, como o episódio dos travestis e dos sodomitas, em que Blake é salvo por Ninguém (oportunidade para duas piadas com o nome do índio: quando lhe perguntam com quem é que ele está, Blake diz, “com Ninguém”; quando Big George está para disparar na direcção de Blake, aquele diz-lhe, “Bom, parece que Ninguém vai ficar contigo” e o índio corta-lhe a garganta), a história de Cole Wilson contada por Twill a Johnny Pickett, trágica até ao irrisório, ou o episódio dos dois xerifes, Lee e Marvin (Lee Marvin, anyone?); cada um mais ridículo e impensável que o outro, enquanto aumenta a ressonância e o volume da guitarra de Neil Young, até rebentar, quando Blake se arrasta pela aldeia das canoas e a imagem lhe emula os sentidos, numa sequência arrebatadora. Quando Ninguém o põe na embarcação e o empurra para a última morada dos espíritos, a pergunta do fogueiro materializa-se e Blake olha para o céu como se tivesse as respostas para todas as suas perguntas. 

Voltando às posturas keatonianas, aos recortes na imagem e ao cinema mudo, foi num barco em Veneza, cem anos antes de Dead Man, que os irmãos Lumière "descobriram" o travelling, revelando-nos essa paisagem que se passou a mover à frente dos nossos olhos enquanto estamos imóveis e em silêncio.

Porque é que a paisagem se move, mas nós estamos parados?

Sem comentários:

Enviar um comentário