sábado, 6 de maio de 2017

59ª sessão: dia 9 de Maio (Terça-Feira), às 21h30


Depois dos heróis do tamanho de arranha-céus de John Ford e dos anti-heróis dos anos cinquenta, sessenta e setenta, que faziam o que era preciso para sobreviver numa terra que lhes era hostil, chega Dead Man de Jim Jarmusch, a nossa próxima sessão, em que um contabilista com nome de poeta é completamente assoberbado pelas circunstâncias que o rodeiam. A odisseia de William Blake, de que também faz parte o colosso Robert Mitchum, no seu último papel, é portanto uma deambulação por um mar de incertezas, regado aos acordes de guitarra eléctrica de Neil Young que cortam as melodias acústicas que se tentam fazer ouvir enquanto desfilam prostitutas, parricidas, canibais e sodomitas pelos bosques do Arizona e do Oregon. E William Blake olha para tudo isto, impotente, à espera de redenção. 

Nemo Librizzi, creditado como "Hangin'-out Guy" no filme que vamos ver na Terça-Feira e que tanto aprendeu na rodagem, vai partilhar connosco as suas histórias e lições no plateau de Dead Man. Nova-iorquino de gema, viveu os anos oitenta e noventa na América como ninguém, de visitas à Factory de Warhol ao nascimento do hip-hop, passando pelas experiências no mundo dos graffitis, cuja génese percebeu depois remontar ao antigo Egipto. Testemunha ocular e muito activa da década que nos tem ocupado, é mais um relato  essencial depois do de Sam the Kid.

Jarmusch, que em 1996 falou de si e do seu filme a Thomas Colbath e Steven Blush da Seconds Magazine, disse que "neste caso, usei o Western como ponto de partida e afastei-me bastante de quaisquer convenções que os Westerns têm. Ao nível mais básico, Bill Blake, a personagem de Johnny Depp, é um personagem passivo. Não consigo pensar noutro Western em que esse seja o caso. Acontecem-lhe coisas contra as suas próprias predisposições. Não é o nosso Western típico, de todo. Eu não gosto assim muito do Western como género, gosto dos Westerns periféricos como os Westerns de Monte Hellman dos anos sessenta e setenta. Gosto do Sergio Leone e gosto de Westerns que - como disse Peckinpah, ”O Western é uma moldura em que se podem comentar os dias de hoje.” Gosto mais desse tipo de Westerns do que das coisas clássicas tipo-John Ford. Eu gosto de Howard Hawks, já agora... O Robert Wise fez um Western bem interessante, o Blood on the Moon. Há Westerns que são filmes clássicos da velha escola de Hollywood, mas geralmente eu gosto dos mais inconvencionais (nota: "off-beat" no original).

Louis Skorecki escreveu para o Libération em 2001 que "Jim Jarmusch é um dos poucos cineastas americanos tardios a encarnar a juventude da América. Eterno teenager, rocker de cabelo grisalho, cineasta ferozmente independente, o último amor de Pascale Ogier tem tudo para agradar. Tudo para nos agradar, em todo o caso. Sem compromissos, sem coke, sem «scorsesices» inúteis, sem gordura. Um dos melhores amigos de Robert Frank, a saber. Um dos poucos cineastas do mundo que pode dizer «O Robert, tive-o ao telefone, vai bem.» Sete anos, já, Dead Man tem sete anos. O que é que se pode dizer? Duas coisas, mais não. Uma coisa que já sabíamos: é uma história de iniciação, a descrição minuciosa de um rito de passagem. Passagem para onde? Não se sabe, não é tão importante como isso. O importante, é a passagem. O ponto de chegada, o país de chegada, ver-se-á depois. Ver-se-á à chegada. Se se chegar, claro. Está tudo na aprendizagem da estrada, no percurso do caminho. Um Índio admirável (Gary Farmer) ensina aqui a um idiota vulgar como passar para o outro lado. O idiota és tu, sou eu, é Johnny Depp. Imperturbalidade keatoniana, chapéu keatoniano, burlesco irrepreensível. Burlesco, só há isso.

"Aprende-se outra coisa a ver Dead Man. 1994/1995. É a juventude da América. Isso, é mais difícil de explicar. Trata-se do actor, do lugar do actor num filme, do seu lugar simbólico. O actor chama-se Robert Mitchum, está morto. A única coisa verdadeira importante a saber sobre ele, é isso: está morto. Antes de estar morto, era actor em maus filmes. Ele não ligava aos filmes, o importante para ele era fazer bem o seu trabalho. Ele fazia bem o seu trabalho, mesmo nos filmecos de Robert Parrish. Bons filmes, fez menos de dez. Pursued (Walsh), Out of the Past (Tourneur), Lusty Men (Ray), A Sombra do Caçador (Laughton). Também não é mau com Preminger (Angel Face, Rio sem Regresso), Huston (Heaven Knows Mr. Allison) ou Minnelli (Undercurrent, Home From the Hill). Cá está, é mais ou menos tudo. Mitchum era o actor favorito de Jarmusch, o seu preferido. Adorava-o mais que a James Dean, quero dizer. Ele é mau em Dead Man, não está lá, já não está lá. Morto, já está morto. Jarmusch apanhou-o mesmo antes da sua morte. Não a tornou melhor, nem sequer o tentou. Honestidade, a isso chama-se honestidade. Filmou, só a filmou. No instante seguinte, ele estava morto."

Robin Wood, numa versão revista e ampliada de um dos seus livros, a que chamou Hollywood: From Vietname to Reagan... and Beyond, deteve-se nos filmes de Jim Jarmusch e Dead Man, escrevendo sobre este que "(...) Em certos aspectos, os primeiros filmes de Jarmusch lembram fragmentos remanescentes do movimento hippie, analisado de forma tão inteligente por Arthur Penn em Alice’s Restaurant, admirável mas infrutífero, minada a força do movimento pelo seu isolamento, desgastado por pressões internas e externas, de modo a já não existir o mínimo sentido de comunidade ou pertença que lhe tinha dado quaisquer forças precárias que tivesse. A posição tem continuidade em Dead Man, mas torna-se subitamente mais potente, transformando-se o desprezo pela cultura dominante numa raiva sombria e geladamente controlada. Está entre os filmes Americanos mais impressionantes dos últimos dez anos, um trabalho de uma originalidade e integridade surpreendentes. Quanto a evocar qualquer filme anterior talvez seja Les Carabiniers de Godard: há um humor sombrio penetrante parecido do qual é totalmente impossível rir, e (como no notável filme de Godard) evoca e presta homenagem ao cinema mudo pela dureza da sua fotografia a preto-e-branco, pela viagem estilística pelo tempo que corresponde ao itinerário em sentido contrário na direcção do passado Americano. 

"O filme também se assemelha a Les Carabiniers pela sua fusão estilística de opostos aparentes, realismo e estilização extrema. Hoje em dia, o uso de fotografia a preto-e-branco é já uma forma de estilização (quando era a norma era visto como “realista”). Em Dead Man o seu efeito distanciador é intensificado pelo enquadramento preciso de imagens icónicas, pela montagem calma e ponderada (sendo o estilo da montagem já uma afronta à Hollywood contemporânea). No entanto, tal como ao ver Les Carabiniers temos a sensação de que isto é mesmo o que a guerra é (o seu tédio, a sua arbitrariedade, a sua degradação, bem como a sua violência e o seu horror), também aqui sentimos (sem ter lá estado) que estamos a ver o Velho Oeste como foi mesmo, bruto, degradado, sórdido, e degenerado antes que se pudesse sequer tornar civilizado. Pode-se reflectir, à medida que se emerge, que o idealismo de um Ford e o heroísmo estóico de um Hawks, provavelmente também lá estavam, em manchas ocasionais, mas os estilos "naturais" desses realizadores (os padrões de rodagem/montagem aos quais Hollywood nos habituou) parecem um engano ao lado do que Jarmusch nos mostra com o seu esquematismo e a sua estilização. A estratégia é maravilhosamente estabelecida na sequência de abertura do filme, a viagem de comboio de William Blake em direcção à região selvagem, assente numa série alternada de planos: grandes planos médios de Blake, ficando cada vez mais preocupado, inseguro, e alienado; planos estáticos da sucessão de homens que se sentam à sua frente (do cidadão respeitável e bem vestido ao caçador grosseiro), os planos “em movimento” (mas é o comboio que se move, não a câmara) de paisagens que se tornam progressivamente mais selvagens, culminando nos wigwams de uma tribo Índia."

Até Terça!

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