quarta-feira, 24 de julho de 2024

Echos aus einem düsteren Reich (1990) de Werner Herzog



por João Palhares

Jean-Bédel Bokassa nasceu a 22 de Fevereiro de 1921 em Bobangui, uma aldeia M’baka situada a oitenta quilómetros de Bangui, capital da República Centro-Africana, na altura parte da África Equatorial Francesa. Era um dos doze filhos de Marie Yokowo e Mindogon Mufasa. Mindogon era um dos chefes de Bobangui e foi espancado até à morte em M’Baiki, depois de se revoltar contra a companhia Forestière recusando-se a continuar a recrutar aldeães para trabalho forçado nas empreitadas dos franceses. Destroçada com a morte do marido, a mãe de Bokassa suicidou-se uma semana depois deixando o rapaz órfão aos seis anos. Perseguido, rodeado e comandado pela morte a cada passo do caminho, Bokassa combateu pelos franceses durante a Segunda Guerra Mundial, sendo imensamente condecorado, regressando à já livre República Centro-Africana durante os anos sessenta onde co-conspirou um golpe de estado com Alexandre Banza e depois o mandou fuzilar, auto-proclamando-se imperador nos anos setenta tomando como exemplo os conquistadores e déspotas da antiguidade e Napoleão. 

Michael Goldsmith nasceu no mesmo ano que Bokassa em Viena. Filho de pais ingleses, fez os estudos universitários em Londres e serviu como oficial de informações do exército britânico durante a Segunda Guerra. Em 1945, juntou-se à Associated Press, e apesar de trabalhar maioritariamente a partir de Geneva e de Paris, viajou imenso em trabalho para cobrir os tumultos que resultaram das independências de países como o Congo, a Argélia e o Iémen, a construção do muro de Berlim, a guerra do Vietname, a guerra no Médio Oriente em 1973 ou a guerra civil afegã. Quando estava a cobrir a coroação de Bokassa, que se realizou no estádio de Bangui a 4 de Dezembro de 1977, foi detido depois de enviar o artigo por fax, acusado de ser um espião francês, espancado pelo próprio Bokassa, dois dos seus filhos e um grupo de homens ao seu serviço, e finalmente aprisionado durante um mês na Prisão Central de Ngaragba. 

Ecos de um Império Sombrio muito dificilmente será um documentário. Inaugura-se e encerra-se com sequências encenadas que desenvolvem com imenso risco uma possível poética do pesadelo. E apesar de isso ter sido tentado bastantes vezes durante a produção do filme, Bokassa não foi interpelado directamente e surge apenas em imagens de arquivo, sendo mencionado por todos os intervenientes (que conversam directamente com Goldsmith, outra das vítimas do imperador), assombrando tudo e todos. Vai-se tornando evidente, a pouco e pouco, que a opulência dessa belíssima coroação que vemos com o segundo Trio para Piano de Schubert como música de fundo foi sustentada por centenas e centenas de atrocidades, que iam das prisões, das torturas e das execuções de rivais políticos à morte de crianças e até ao canibalismo. À medida que os testemunhos se acumulam e somos confrontados de forma crescente com as histórias de sobrevivência de filhos, esposas, antigos presidentes, jornalistas, advogados e cozinheiros, tendo-se já chegado ao cúmulo do insólito com o episódio em que Goldsmith aponta a um grupo de filhos de Bokassa o local em que o pai deles o espancou, falando-se já do mistério da alma africana que se revela nas alturas mais inesperadas, vê-se o jardim zoológico privado do imperador. Aí podíamos esperar tudo menos aquilo que acabamos por ver. Mencionam-se os crocodilos e os leões que levavam a cabo algumas das execuções ordenadas por Bokassa, mas não os vemos, há apenas jaulas abandonadas e ruínas do que outrora fora o seu esplendor. Goldsmith fica curioso com um chimpanzé e o responsável pelo zoo leva-o até lá. Pede um cigarro ao jornalista, mas nem o sabe acender. Mas dá-o ao chimpanzé. Sem palavras que o digam abertamente, apenas uma reacção de incredulidade e insuportabilidade, é essa imagem que passa a significar o horror desse império de sangue. Fazer com que um animal tenha os nossos vícios, transformar a natureza numa câmara de tortura para seres humanos e animais, usar a amoralidade dos inocentes para justificar a imoralidade, a máquina do mal de Bokassa condensada num único gesto de um homem que esteve ao seu serviço e deve ter feito isso mil vezes sem pensar quando seguia ordens e via ou condenava o próximo homem à morte.



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