quarta-feira, 31 de julho de 2024

Glocken aus der Tiefe - Glaube und Aberglaube in Rußland (1993) de Werner Herzog



por Jessica Sérgio Ferreiro

A dissolução da União Soviética e a subsequente instabilidade vivida na Rússia colocou em xeque a ideologia defendida pela União Soviética, baseada no materialismo histórico, pelo qual o devir civilizacional se cumpriria pela modernização tecnológica e pela colectivização dos meios de produção, intento que uniria nações neste projeto comum. Esta premonição teleológica, preconizada pelo racionalismo científico não se coadunava com a religião e a crendice que eram consideradas contra-produtivas e contrárias ao sentido ou destino, tido como único, da história humana e que a União Soviética idealizava. 

Contrariamente ao postulado, Herzog, na procura constante de imagens do mundo, ou de diferentes mundos, que fujam do brutalismo dos blocos de cimento impessoais da civilização moderna, como reitera no documentário de Wim Wenders, Tokyo-ga de 1985, mostra-nos uma Rússia supersticiosa e sedenta por uma transcendência religiosa. 

Nesta procura pelo exótico, proporcionada pela imensidão da massa terrestre e diversidade cultural que compõem a Rússia, Herzog encontra, nas zonas mais recônditas (e ainda no rescaldo da dissolução da União Soviética), pessoas e comunidades que aderem a performances de devoção ao sagrado. Na busca pelo sublime, por um sentido para a existência além do mundo material, Herzog traz para a cena pessoas que, unidas pela crença, encontram nas práticas místicas, xamânicas e religiosas, o apaziguamento necessário para as suas inquietações mundanas. 

No primeiro acto, entra em cena um homem, pertencente aos povos autóctones da Sibéria, que perfomatiza um cântico difónico e gutural para comunicar com os espíritos, o qual vemos, depois, a realizar uma cerimónia/bênção xamânica em casa de uma família. De seguida, é-nos apresentado outro género de Xamã: Vissarion – “O Redendor” (The Redeemer), reencarnação de Deus na terra, que tem a aparência de um ícone vivo e universal, que qualquer pessoa reconheceria como a personificação de Jesus Cristo. Vissarion está em todo o lado, abençoa uma devota na floresta e, logo depois, de frente para a câmara e de costas para o lago, enquadrado num plano médio, professa um sermão coerente sobre as desigualdades no Mundo e a opressão que uns exercem sobre os outros. Vissarion também realiza visitas para reconfortar aqueles que precisam, atenuando aflições com as palavras do Senhor. O profeta voltará a entrar em cena, na parte final do filme, para abençoar os espectadores com o seu derradeiro discurso. 

Ainda na primeira parte, são mostrados diversos pastores, curandeiros e líderes espirituais a realizar “transmissões cósmicas”, baptismos e outros tipos de expurgações dos males que acossam a alma. A narração de Werner, que nos traduz o que é dito pelas curiosas personagens, dá uma ênfase dramática extra ao conteúdo, por exemplo, aquando do exorcismo a um grupo de mulheres, ouve-se relatar o seguinte: “I sorcerer of Russia, command you open your hearts like the gates of Hell”, enquanto assistimos e ouvimos os gritos de desespero de uma das participantes. 

No entreacto, somos confrontados com a estória de um ex-operador de projecção de cinema que se dedica a arte de tocar os sinos. Os planos médios e aproximados permitem-nos observar de mais perto cada gesto e movimento do músico, enquanto ouvimos as intrincadas melodias que nos transportam às profundezas de um mundo antigo. A graciosidade da música ilude-nos por instantes, o relato do artista denuncia os modos de um mundo violento, assim como as mágoas, a solidão e a melancolia que dele resultam, encontrando, contudo, na prática artística, a fé e alegria necessária para dar sentido à sua condição humana. 

Na segunda parte são-nos contadas as estórias em torno da cidade perdida de Kitezh, a qual se encontraria submersa, no fundo do lago Svetloyar, segundo reza a lenda ortodoxa, a par com a estória da catedral soterrada debaixo de uma montanha, cheia de crianças com velas na mão. Relato, o qual, se faz acompanhar por imagens de peregrinos a cumprir promessa de joelhos pelos trilhos da floresta verdejante até alcançarem o lago. Já na parte final do filme, vemos outros peregrinos, no inverno, a rastejarem, deitados de barriga para baixo, contra o gelo do lago cristalizado, como que à procura de um vislumbre da cidade afundada por Deus. Porém, sabe-se que esta última cena foi simulada a pedido do realizador. No final do filme, vemos o mesmo lago cheio de pessoas, umas a pescarem, outras a patinarem sobre o gelo, emergindo, deste modo, à superfície o mundo que até agora nos tinha sido escondido pelo realizador. 

Ao longo do filme, somos confrontados com o nosso cepticismo, sensação que nos chega através da dobragem feita por Herzog, levando-nos a questionar, por vezes, o que está realmente a ser dito, mas, também, quando, ironicamente, nos é traduzido que Vissarion alerta, os seus crentes, sobre possíveis impostores, disfarçados de profetas. O formato do filme, também, exacerba este pressentimento, por nos remeter para o documentário televisivo ou jornalístico que pregoa a neutralidade e assume para si mesmo o status de comunicador da verdade, mas que, geralmente, se sustém num par de factos recolhidos que carecem de um contexto. Assim, Herzog consegue confundir o espectador, mesclando real e ficção, cepticismo e empatia. Porém, é através de elementos ficcionais que verdades “mais verdadeiras” emergem, ou seja, que melhor se representa o real e a complexidade humana, favorecendo a identificação e a introspeção por parte dos espectadores. 

Em Badaladas das Profundezas a submissão dos sujeitos a um qualquer poder misterioso confere ao humano a qualidade de humano, assumindo-se o seu aspecto frágil e sensível, a sua condição vulnerável num Mundo imenso e repleto de mistérios. É assim que Werner Herzog nos ensina que lendas e mitos, rituais religiosos e práticas místicas são, de facto, tão história quanto a História. É a componente poética que caracteriza o seu cinema de verdade-extática – o que é mostrado trespassa a verdade factual, transcende-a para se encontrar com o âmago da experiência humana, deixando, contudo, espaço para o espectador tirar as suas ilações.



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