quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Black Gold (1947) de Phil Karlson



por José Oliveira

Black Gold, o filme que hoje iremos vez, inaugura um ciclo programado em conjunto com o historiador e programador Andy Rector, idealmente concebido para se realizar em zonas rurais e preferencialmente ao ar livre. Filmes rurais americanos, assim chamamos aos quatro filmes do ciclo, realizados no período clássico do cinema por dois realizadores injustiçados porque ultra-talentosos: Phil Karlson e Budd Boetticher. 

Andy Rector define o ciclo assim, referindo-se somente a Karlson: «Ao fazer filmes no escalão económico mais baixo dos estúdios de Hollywood dos anos 30 e 40, com a Monogram Pictures e depois com a Allied Artists, Phil Karlson redescobre os chamados Great American Outdoor Film, numa certa linhagem com D.W. Griffith, Allan Dwan, Francis Ford e William S. Hart, filmando em locais reais e com um público rural em mente...» 

Para começar, fixemo-nos nesta jóia preciosa de 1947, que só precisa de ser mais vista para ser considerada um dos grandes filmes da história do cinema americano. 

A história: Charley Eagle, um nativo americano, adota um rapaz chinês logo depois dos brancos matarem o seu pai. Chegados ao rancho de Charley e da sua mulher, formam uma família. Pai e filho criam um cavalo, que se volve um grande cavalo de corrida, e a princípio são enganados pelos brancos. É então descoberto petróleo nas terras de Charley. Ele vende-as, fica aleijado num acidente industrial, fica rico e odeia ser rico. O rapaz chinês torna-se jóquei para que possam correr independentes. A partir daí, buscam uma redenção superior. 

Andy deixa-nos muitas dicas que permitem iluminar este filme tão simples e cristalino, abrindo ao mesmo tempo para toda uma complexidade e riqueza inomináveis: 
 
  • Trata-se de uma obra do chamado período progressista de Karlson, que inclui outros títulos complicados de ver, como The Big Cat ou Louisiana; o aspecto multicultural é sublime e em acordo com a vida; toda a história que acompanhamos é baseada no famoso cavalo de corridas dos anos 1920, chamado Black Gold e criado por Rosa M. Hoots, um membro da nação Osage, essa mesma que se tornou multimilionária depois da descoberta de petróleo nas suas terras, e que é a mesma nação (com a mesma história central do petróleo) do último filme de Martin Scorsese, Assassinos Da Lua Das Flores; Anthony Quinn, que por causa do petróleo fica aleijado, tem uma atuação lenta, com um falar estranho, «afetando um inglês estranho»; e Katherine DeMille, que faz de esposa deste, filha adotada de Cecil B. DeMille, entrega-nos uma atuação contida, como se estivesse a carregar a dor de uma vida, neste filme de órfãos errantes; e num período e num contexto em que os cineastas aceitavam muitos trabalho por dinheiro, indiferentes, Black Gold foi para Karlson um dos seus filmes mais pessoais, tendo filmado pelas diversas estações do ano, com interrupções para fazer outros seis filmes!, captando assim a mudança da paisagem e da natureza. E termina com um detalhe grandioso e fulcral: «um dos únicos filmes com crédito para um "Consultor Índio Americano": Nippo T. Strongheart.» 


Estamos perante um conto de bons sentimentos, onde se aprende muitas coisas, nomeadamente coisas práticas, e também a ver as coisas e os acontecimentos de diferentes perspetivas, de um ponto de vista outro que não o moldado pela cultura nefasta, apressada e argentária. Entre infinitas maravilhas, destaco: 

  • Charley Eagle, um ser selvagem, um puro índio, equiparável aos possantes cavalos e às forças intraváveis e intratáveis da natureza, desculpa-se assim à sua esposa, Sarah Eagle, por muitas vezes abandonar o lar comum: «as paredes encolhem e sinto necessidade das estrelas e do vento da noite.» 
  • Um ser puro que viu a família dizimada e que mesmo assim esqueceu a raiva, expurgou-a do seu coração; e que acredita que o seu país, os Estados Unidos da América, é grande e que nele podem viver brancos, índios, chineses... 
  • O mundo idílico no rancho que nos é apresentado logo após o índio Charley conhecer o chinês Davey, que também acabou de perder o pai e logo toda a família nuclear: os dois agacham-se para beber água puríssima de um charco luminoso, a esposa adivinha o regresso do marido muito tempo depois dele ter partido e tem a comida ao lume, os dois adultos percebem que adotaram um filho, e a mulher, na anuição final e uterina, confirma a decisão ao universo. 
  • Seguidamente o Pai ensina o Filho a perseguir o rasto dos animais e a reconhecê-los, faz- lhe saber da diferença entre formigas de montanha e formigas do pátio da escola, retirando uma moral primeira, mostra-lhe como funciona o exato relógio do sol, e transmite-lhe a importância fundadora das plantas; ensina-o ainda que o medo deve ser sempre olhado de frente. 
  • E, no seguimento disto, mostra-lhe um grande e esquecido segredo: a terra onde incontáveis índios foram dizimados e enterrados, fazendo-lhe ver que não há que sentir tristeza, num espaço que é tão sagrado como uma igreja, uma catedral. 
  • Charley é um inocente, um selvagem inocente, como Nicholas Ray percebeu ao ver este filme, chamando-o depois para a sua “obra homónima” (The Savage Innocents), alguém que consegue transformar o mal e a sua potência nefasta em bem, como no caso da ameaça do petróleo ou das falcatruas dos apostadores de cavalos, que facilmente o enganam. 
  • O caso da escola, da educação, e os procedimentos: a professora é tão boa, tão tolerante, tão disponível, que vai buscar Davey a casa, convence-o da necessidade da educação, do convívio e da fraternidade; tão boa que ama o magnata do petróleo que vai furar a quinta idílica de Charley, e que tal como o amado acredita que o dinheiro pode ser bom para essa família; e assim Phil Karlson, o realizador, não julga ninguém. 
  • Nesse encontro em casa está presente um juiz tão severo como compreensivo, muito parecido com esse interpretado por Spencer Tracy em Young America de Frank Borzage; e em Black Gold conheceremos imensos seres Borzageanos; juiz esse que esquece burocracias e constitui uma família que já o era e será para sempre, percebendo a total harmonia entre eles e o mundo harmónico em que se encontra. 
  • Inevitavelmente, o mal: o petróleo que suja as plantas selvagens e livres e as janelas do lar, e que só se torna aceitável para Charley por que lhe permitirá comprar outro cavalo, um puro- sangue, que permitirá perpetuar a têmpera de Black Hope. 
  • A nascença do potro redentor que permitirá a Charley vencer a “corrida das corridas”, não para contentamento seu, mas para redimir todos os nativos; e, nessa cena transcendente, com a morte de Hope, nasce e renasce outra esperança, Black Gold, e novamente o mal é transformado em bem. 
  • Cena que rima com a morte de Charley, no vislumbre e no sentimento da continuidade de todas as coisas, de uma inevitabilidade natural que tem de ser vista positivamente, em sereno estado de graça: outra morte sacra, enleada por cânticos além-túmulo, de todos os índios que passaram por aquela terra e dos que possivelmente passarão; morte vivida entre estrelas e ventos da noite. 
  • O efeito dos nomes dos cavalos em consonância com os acontecimentos, e em relação ao poder e ao mundo do dinheiro causado pelo petróleo: a esperança que é negra (Black Hope) e o ouro que é negro (Black Gold), e como tudo isso se interlaça, cruza, liga, religa, desfaz e refaz com os sucedidos e o significativo. Novamente, o nome a perdoar ao adjetivo, a qualidade a desculpar o facto, a reversibilidade que se gera conforme o olhar. Uma pedagogia da dialética.
  • A comicidade da grande festa em que Charley, a mulher e o filho são reis. A cumplicidade com a empregada indígena, os cinquenta anos que um homem tem de esperar para se habituar a sapatos de luxo, a vergonha e a dignidade tanto dos donos da casa como dos outrora rivais. 
  • A corrida final, em que de uma só vez se redime as muitas mortes dos protagonistas, dos seus povos, das diferentes raças, crenças, credos, unificando-se tudo na nação dos sentimentos elevados; e onde outra pessoa extraordinariamente boa, o treinador dos cavalos e amigo primário de Charley, diz ao miúdo que quando o animal estiver a ficar com medo, só tem de falar com ele, ternamente, com confiança. 
  • «Quero agradecer a todos os que estão aqui... ...e àquele que aqui não está.», é o discurso da esposa depois da vitória. Um mundo perfeito.



sábado, 2 de novembro de 2024

369ª sessão: dia 5 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


Phil Karlson e o seu filme rural esta semana no cineclube 
 
Em Novembro, o Lucky Star – Cineclube de Braga associa-se ao Cineclube Gardunha para trazer ao auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva um ciclo pensado pelo crítico e programador de cinema norte-americano Andy Rector. Com dois filmes de Phil Karlson e dois de Budd Boetticher, o novo ciclo intitula-se “Rural American Films - Filmes rurais americanos do período clássico”. 
 
Andy Rector descreve os filmes deste ciclo não como westerns, “mas filmes rurais, destinados a um público rural, filmes que re-descobriram as imagens em movimento dos “Grandes Exteriores Americanos" do início do cinema (numa certa linhagem com Griffith, Dwan, Walsh, Francis Ford, William S. Hart), sob a insígnia e os recursos duros do filme pequeno, o filme de série B nos cartazes.” 
 
Interpretado por Anthony Quinn, num dos seus primeiros papéis principais, e realizado por Phil Karlson em 1947, Black Gold será o primeiro filme do ciclo, a exibir na próxima terça-feira às 21h30. Também protagonizado por Katherine DeMille, filha adoptiva de Cecil B. DeMille, o filme foi rodado em exteriores ao longo de um ano para capturar a terra e as cores das estações com fidelidade. 
 
Sobre o filme e a produtora Monogram, Phil Karlson disse que “tive uma oportunidade para fazer lá um dos primeiros filmes, penso eu, em que se fazia uma afirmação social no ecrã. Eu nunca tinha conhecido este tipo e fui falar com ele. Nesses dias ele não era uma estrela, estava a interpretar papéis de índios, e era o Anthony Quinn. Então fui ter com o Tony Quinn e convenci-o a ele e à mulher a participar em Black Gold.” 
 
“Eu fiz uma afirmação tão forte que todas as nações índias a apanharam,” continuava Karlson. “Eles perceberam aquilo que estávamos ali a dizer. O indivíduo comum que ia ver uma longa-metragem naqueles dias ia para ver entretenimento. Nós não fazíamos afirmações, fazíamos polícias e ladrões e heróis e vilões. Mas olhar para algo e ver a verdade, para variar, era qualquer coisa de pouco habitual nesses dias.” 

Rector diz que Black Gold é “um dos poucos filmes com um crédito a um "consultor índio americano": Nippo T. Strongheart. Rodado em Cinecolor, um processo de cinema a cores mais barato que envelheceu de forma mais nobre que o Technicolor dominante, e não apenas por resistir ao desvanecimento.” 
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. Durante o mês de Novembro a entrada é livre para todo o público.

Até Terça-Feira!

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Em Novembro, no Lucky Star:




Juunt Pastaza Entsari (2022) de Inês Teixeira Alves



por António Cruz Mendes

Quando Inês T. Alves chegou à aldeia de Suwa, nas margens do rio Pastaza, ainda não sabia que ia realizar um filme. Não conhecia aquela comunidade. Aliás, era a primeira vez que visitava a Amazónia. Decidiu visitá-la porque, di-lo numa entrevista a Paulo Portugal, publicada no site Esquerda.net, “tinha vontade de estar só a viver e a aprender”. E assim foi durante o primeiro mês da sua estadia na aldeia Achuar, que se encontrava muito isolada, mas aberta a contactos com o exterior. Aí chegada, Inês, que já conhecia a sua professora primária, não teve dificuldade em relacionar-se com os seus habitantes e, sobretudo, com as suas crianças. 

Já havia feito um mestrado em cinema documental na University of Arts, em Londres, realizado algumas curtas-metragens, e trazia consigo uma câmara de filmar com um microfone incorporado. A dada altura, começou a registar imagens de tudo o que via. Impressionou-a sobretudo a autonomia dos mais novos, a liberdade com que viviam e a facilidade com que se relacionavam com a natureza. E foi das imagens que documentavam o seu quotidiano que acabou por nascer este filme. 

É claro que sabemos que os adultos estão na aldeia, mas eles surgem somente numa das últimas cenas do filme, talvez apenas para comprovar a sua presença. Todo o protagonismo cabe às crianças. Vemo-las livres, divertidas e amigas, a recolher frutos na floresta, a pescar, a cozinhar, a tomar banho no rio, a inventar os seus próprios brinquedos e jogos. 

Algumas das suas brincadeiras não serão muito diferentes das dos miúdos “ocidentais” e, desde logo, com eles, partilham do seu interesse pelos smartphones. Contudo, a electricidade e a internet chegaram há pouco tempo à aldeia e uma das questões que o filme pode levantar é a de saber que impacto poderá isso vir a ter no seu futuro. Por um lado, as novas tecnologias abrem-lhes outras possibilidades de contactar com um mundo exterior; por outro, todos sabemos que o telemóvel também pode ser um instrumento alienante. Para já, e segundo a realizadora, que voltou a visitar essa aldeia cinco anos depois de realizar Águas do Pastaza, e apesar de se conhecerem projectos de abertura de estradas de molde a facilitar o comércio dos madeireiros e da haver homens da aldeia a trabalhar fora do seu território, não parece que o seu quotidiano se tenha alterado substancialmente. 

Sabemos pelas imagens gravadas de uma conversa de Inês T. Alves com o público de uma projecção de Águas do Pastaza programada pelo Cineclube Vilafranquense, que, numa comunidade onde ainda não havia televisão, Inês T. Alves exibiu alguns filmes que trouxe consigo (documentários, filmes do Charlot e filmes de animação) e que isso despertou grande curiosidade e interesse, nomeadamente entre as crianças, que começaram logo, elas próprias, a gravar imagens com os seus smartphones. Inês permitiu-lhes mesmo experimentar a sua própria câmara, o que, mais tarde, passou a evitar por recomendação dos adultos, com medo de que as crianças a estragassem. 

A beleza da selva amazónica, do rio, das próprias crianças, transmite-nos uma ideia de harmonia, de paz e serenidade. Mas, não nos dará este filme uma visão algo idealizada da vida destas crianças? Nunca há, na sua vida, conflitos, zangas, momentos de tristeza, doenças, dor? Inês T. Alves, na entrevista já aqui referida, admite a hipótese duma visão algo romântica, utópica. Por outro lado, diz nunca ter sido seu objectivo fazer um documentário etnográfico. O filme nasceu do seu “breve encontro” com a vida dos miúdos que filmou e, de certa forma, também da maneira como elas reagiram ao facto de se verem filmadas: algumas das cenas de Águas de Pastaza foram sugeridas pelas próprias crianças que as protagonizaram. É, portanto, de todo merecida a galeria de retratos, dos seus rostos sorridentes, por vezes um pouco envergonhados, outras vezes inquisidores, com que termina o filme. 

A realizadora assume, tanto quanto possível, uma posição de observadora, deixando aos espectadores o cuidado de interpretarem o resultado das filmagens. No entanto, a citação de Agostinho da Silva que nos surge logo no início do filme (“As qualidades infantis deveriam conservar-se até à morte, como qualidades distintamente humanas – as da imaginação, em vez do saber, do jogo, em vez do trabalho, da totalidade, em vez da separação”) oferece-nos uma pista para uma possível leitura: Há características que geralmente se associam às crianças, mas que fazem parte da nossa essência como seres humanos. Algo que nas sociedades contemporâneas se poderá estar a perder, mas que importa saber resgatar.