quarta-feira, 12 de março de 2025

Anjos Caídos (1995) de Wong Kar-Wai


por Estela Cosme

O néon está em todo lado na Hong Kong de Anjos Caídos. As cores vivas da atmosfera poluem o ecrã de forma incessante. São muito poucos os sítios em que o verde, o amarelo ou o vermelho nos fogem do olhar, de tal forma que nem notamos que todas as cenas ocorrem durante a noite, como se tudo acontecesse numa madrugada contínua. Mas as cores só se destacam graças ao contraste com o preto das sombras, pois é nos lugares sombrios que as personagens de Wong Kar-Wai se cruzam.

A dualidade das cores só intensifica os dilemas das personagens que encontramos: o assassino que pensa em reformar-se, a sua parceira apaixonada, o criminoso mudo que vende gelados, a sua amante tagarela, a prostituta que se atrai pelo assassino. A câmara mostra-nos close-ups de todas estas personagens em busca de conexão humana nesta cidade noturna, à procura de uma ligação que finalmente enriqueça as suas vidas. Todas elas procuram alguém que fale a sua linguagem ("Speak my language", repete a canção a tocar na jukebox).

Há um sentimento de urgência em todas estas personagens que deambulam pela noite, à procura de uma mudança que ainda não lhes é evidente. O filme foi lançado em 1995 e Hong Kong estaria a preparar-se para a sua transferência territorial para a China em 1997. Isto evidencia personagens marcadas por um presente incerto com ânsias de uma época na qual só o contacto humano pode trazer algum alívio.

 Estamos em plenos anos 90 do último século, onde os objetos materiais são uma tentativa para trazer algum conforto no dia a dia, com tecnologia que agora nos evoca uma grande nostalgia: uma jukebox de CDS, telefones com corda fixados à parede, uma carrinha de vender gelados, uma mini TV, uma câmara de filmar, até secadores de cabelo para as permanentes de outros tempos. Mas tudo são distrações para o que as personagens procuram. Até mesmo para o criminoso que apenas pode relembrar o seu pai, através do vidro de uma televisão, o sabor dos seus cozinhados perdidos à memória.

Este filme foi criado a partir de ideias já pensadas por Kar-Wai para Chungking Express (1994). Aliás, o realizador defendeu que ambos os filmes deveriam ser vistos como um só. No entanto, a realidade de ambos os filmes é bem diferente. Enquanto em Chungking Express a personagem com o número 225 é um polícia, em Anjos Caídos é um criminoso (as personagens são ambas interpretadas pelo mesmo ator, Takeshi Kaneshiro, e são marcadas por infortúnios relacionados com ananás). No filme de 1994, as relações são marcadas pela luz do dia, mas acabam durante a noite. Em Anjos Caídos, elas fazem-se e desfazem-se sob as lâmpadas noturnas. A sensação de otimismo é bem mais forte em "Chungking" e em "Anjos" parece bem mais fatalista, embora em ambos não haja garantias que as relações funcionem. Mesmo assim, as procuras de ligações interpessoais dominam as preocupações das personagens. Infelizmente, elas acabam por ser todas temporárias.

A criação de laços no meio urbano é uma preocupação da nossa contemporaneidade e Wong Kar-Wai apresenta-o de forma visual e emocionalmente potente, sem véus que tapem as frustrações e solidões que as acompanham. Mas também mostra que há momentos em que são possíveis e que podem existir, nem que seja momentaneamente. Na última cena, finalmente, vemos um tom azulado que anuncia o raiar do dia. O zumbido do néon desaparece e apercebemo-nos que nem todas as conexões são duradouras, mas todas elas são eletrizantes.

 

 Folha de Sala

Sem comentários:

Enviar um comentário