quarta-feira, 25 de abril de 2018

Les Demoiselles de Rochefort (1967) de Jacques Demy



por João Palhares

Já avisavam as legendas iniciais do belíssimo La Belle et la Bête do grande Jean Cocteau que “a infância acredita no que lhe contamos e nunca o põe em dúvida. Acredita que uma rosa que se colha possa atrair dramas numa família. Acredita que as mãos de um monstro humano começam a arder quando ele mata e que esse monstro tem vergonha quando uma rapariga vai viver para sua casa. Acredita em milhares de outras coisas bem ingénuas. 

“É um bocado dessa ingenuidade que vos peço e, para nos trazer sorte a todos, que me deixem dizer-vos três palavras mágicas, verdadeiro “abre-te Sésamo” da infância: 

“Era uma vez...” 

“Era uma vez”: palavras a que associamos fadas e monstros, bruxas ou reis acabados e desiludidos, animais a fazerem as vezes de seres humanos e seres humanos condenados por maldições e feitiços a passar grande parte da vida como animais; sapos, ursos e lobos, príncipes, madrastas e princesas, mas também forças do destino, sonhos mirabolantes e quiméricos que se concretizam contra todas as expectativas, coincidências benéficas ou fatídicas, morais aprendidas a custo de tudo, beleza escondida no mais horrível dos semblantes, o contrário também; amores frustrados ou consumados no céu, encontros felizes e milagrosos que contrariam a vastidão opressiva do mundo, desencontros tristes que a provam. Não era preciso ter feito Peau d’âne ou The Pied Piper, variações e deambulações sobre os contos de Perrault, dos irmãos Grimm e do folclore da vila de Hamelin, para aproximarmos Jacques Demy do mundo do “era uma vez”, para isso ainda basta ver Lola, A Baía dos Anjos, Os Chapéus de Chuva de Cherburgo, Um Quarto na Cidade e o maravilhoso filme que hoje nos ocupa, As Donzelas de Rochefort

E se isto tudo faz sentido como aviso à circulação pelo mundo de Demy, como também fará sentido escrever sobre a grande aproximação e a grande influência do musical americano na sua obra, os filmes de Demy subvertem estas associações por estarem também ancorados na realidade, intersectando a fantasia com a vida vivida e com as limitações das circunstâncias e dos ambientes frequentados pelas personagens – choque que resulta no essencial dos seus dilemas (em Lola, Anouk Aimée tem de sustentar o filho, trabalhar num cabaret e viver na cidade de Nantes por sonhar o regresso do homem que a abandonou e que ainda ama; na Baía dos Anjos, Jeanne Moreau vê constantemente frustradas as suas apostas na roleta, que nunca está à altura das suas expectativas e dos seus planos; as guerras da Argélia e do Vietname põem-se no caminho dos sonhos que se sonham nos Chapéus de Chuva e de Model Shop) e no essencial dos problemas formais que se apresentam a Demy (Beethoven e Bach a chocarem com o jazz de Michel Legrand na banda-sonora de Lola, as oscilações súbitas entre a riqueza e a pobreza extremas na Baía dos Anjos, o desafio de levar as partituras e as coreografias desenhadas a régua e esquadro nos estúdios dos musicais americanos para as ruas frequentadas de uma cidade, por mais pequena que seja, nas Donzelas de Rochefort). 

Podemos associar os marinheiros de Demy às paisagens de Anchors Aweigh (George Sidney, 1945) ou On the Town (Stanley Donen e Gene Kelly, 1949), musicais com o mesmo Gene Kelly que visita as Donzelas, mas a infância do realizador foi passada na cidade de Nantes, grande centro portuário que assistia à chegada e à partida de centenas e centenas de navios, deixando os seus tripulantes livres, na chamada "licença", para se encontrarem e desencontrarem com a vida e com o amor. Durante a ocupação nazi, Demy resistia ao flagelo da guerra refugiando-se na imaginação, na fantasia e no cinema (ver Jacquot de Nantes de Agnès Varda, companheira de sempre de Demy, e de quem veremos um filme no mês de Maio), o que acabará por se inscrever com uma fluidez e uma urgência desarmantes nos destinos das suas personagens - que acompanha em filmes diferentes ao longo das suas vidas (a Lola de Anouk Aimée voltará a aparecer em Model Shop, onde também são mencionados o Frankie de Alan Scott e a Jacqueline Demaistre de Jeanne Moreau, Roland Cassard de Marc Michel voltará a aparecer nos Chapéus de Chuva de Cherburgo, etc). Além disso, e como conta Jean-Pierre Berthome*, nativo de Nantes que assistiu à rodagem de Lola e mais tarde conheceu bem Demy, há também um carinho especial pelos monumentos da sua infância (como a Passage Pommeraye, centro comercial oitocentista que aparece em vários filmes do realizador, ou as pontes transportadoras projectadas por Ferdinand Arnodin, das quais só resta a de Rochefort). 

Os filmes de Jacques Demy situam-se sempre em locais transitórios e temporários, portos privilegiados de passagem com as suas pontes, as suas estações, os seus casinos e os seus centros comerciais, povoados de personagens às vezes com tanta pressa de viver que podem perder uma, duas ou várias oportunidades e deixar pessoas fugir sem trocar uma palavra ou um olhar. Demy capta esses movimentos e não deixa passar em claro a fragilidade de toda e qualquer coincidência. Amantes e prometidos no mesmo espaço sem nunca se verem, separados por parcos segundos, por multidões que tudo fecham ou por edifícios que trocam as voltas aos planos que se fazem. A eterna luta entre o livre-arbítrio e o destino sintetizada num plano geral do interior de um café em que duas pessoas se podiam encontrar, mas não se encontram. É com Catherine Deneuve e Jacques Perrin, tem música de Michel Legrand e acontece nas Donzelas de Rochefort, sinfonia e poema aos acasos do mundo, ao movimento e aos seres que aspiram a ganhar o dia por encontrar outros e se perderem juntos no turbilhão da vida, em Franscope e a cores. 

E, como sempre, ficam por contar e descrever com justiça o cuidado e o talento que são precisos para tornar visível tudo sobre o que se escreveu até este ponto, da entrada pela ponte transportadora que é dos maiores elogios à dança ao sabor do vento captados pelo cinema, às divisões dos dois pares que cantam sobre “marins marrants” quando cabe apenas a um encarar-se e discutir cantando, câmara e movimento a cortar no plano, e que antevêem a construção em duetos que vai dominar o resto do filme, passando pela própria construção das músicas e das letras (escritas por Demy em verso alexandrino), feitas para se entremearem umas nas outras para se poder cantar acrescentando sempre um ponto. Francesas e americanos, mães apaixonadas e jovens de coração partido, melodias e passeios, solos instrumentais e dançantes, monólogos e diálogos cantados, toques de pé e de ombro no éter que se cruzam e se confundem para nos mostrar que é nessas Sextas, Sábados e Domingos de festa que nos temos que bater pela vida e pelos nossos próprios encontros, tentando finalmente levar de vencida o destino para seguir o nosso próprio caminho, triunfantes. 

“Era uma vez...”

* in “Jacques Demy and Nantes: The Roots of Enchantment”, The Criterion Collection [online], disponível em: https://www.criterion.com/current/posts/3239-jacques-demy-and-nantes-the-roots-of-enchantment

sábado, 21 de abril de 2018

91ª sessão: dia 24 de Abril (Terça-Feira), às 21h30


Na véspera de feriado da próxima Terça-Feira, nas salas de cinema do Braga Shopping, entraremos no mundo tão encantado como desencantado de Jacques Demy, autor do filme em que se atraca numa cidade costeira onde toda a gente canta e seus males espanta, onde um café serve de plataforma para todos os encontros e desencontros, para o que há de fortuito e de trágico na nossa vida. As Donzelas de Rochefort é a nossa próxima sessão, na companhia de Demy, Catherine Deneuve, Françoise Dorléac, Michel Piccoli e Gene Kelly, movidos à música de Michel Legrand.

Em entrevista a Gérard Grugeau, para a revista 24 images, em 1989, Demy disse que "os meus filmes são muito diferentes das comédias musicais americanas. É mesmo uma questão  de cultura. Tive uma discussão com Gene Kelly na altura das  Donzelas de Rochefort. Gene ficou impressionado com Os Chapéus de Chuva de Cherbourg. «Nós nunca podíamos ter feito isso nos USA», disse-me ele. Foi o espírito francês  que seduziu os americanos neste filme. Nunca é preciso tentar imitar quem quer que seja. Temos que ser nós próprios. Tentar ser honesto e contar uma história dentro da nossa própria cultura. Eu, nos meus filmes, conto a história do meu país, o que se passa. Falo das pessoas  que lá moram, o que são, o que fazem. Veja-se a livraria em Trois places pour le 26. Eu disse a mim próprio: «Era divertido ter uma livraria gerida por duas mulheres». Na altura da repérage, entro nesta livraria que existe mesmo em Marselha e... eram duas mulheres que a geriam. Tinha ultrapassado a realidade. Fiquei estupefacto. «Que maravilha», disse a mim mesmo. Num universo que tem sempre um ar sofisticado e fabricado, eu tento permanecer verdadeiro. Seja a loja de guarda-chuvas em Cherbourg, o casino de La baie des anges ou a livraria do meu último filme, eu tento sempre apanhar o lado verdadeiro das coisas... O que é muito diferente nos «musicais» americanos dos anos 50."

Luís Miguel Oliveira, para o Público, escreveu que "Jacques Demy não é um nome tão consensual nem tão intocável como outros da sua geração, e que há uma certa dificuldade em encaixar, integrar, a confluência entre um cinema que é, pela prática, bastante moderno e bastante consciente do momento histórico em que é feito, mas que parece ter os olhos postos numa ideia de espectáculo mais popular, mais vetusta, menos sofisticada. Se há indícios disso em Os Chapéus de Chuva de Cherburgo, a forma absolutamente "inteira" como Demy concebe as suas personagens e as suas tragédias pessoais disfarçam-no muito bem. Mas em As Donzelas de Rochefort essa procura duma "ingenuidade" quase kitsch está muito mais estampada. 

"Se o Inverno de Cherburgo estava carregado de pathos, o sol de Rochefort (outra cidade portuária, o cenário preferido do cineasta sempre à procura da Nantes da sua infância) é uma grande feira popular; se os papéis de parede de Cherburgo rimavam, ou contrapunham, os estados de alma das personagens, aqui é a cidade inteira (as cores das fachadas, das janelas) que faz rima (e quase nunca contraponto) com as indumentárias e a alegria das personagens; se as personagens de Cherburgo estavam, sem saber, a correr para um embate com o destino, as de Rochefort têm plena consciência do destino e absoluta confiança de que ele acabará por arranjar as coisas (como a personagem do muito louro e muito jovem Jacques Perrin, sempre com um optimismo de sorriso aberto que tem tanto de tocante como de ligeiramente enervante); e se as personagens de Cherburgo viviam como que manietadas dentro das canções (não havia danças, a coreografia era a inerente à mise en scène, e portanto "bailados" só em sentido figurado e muito slow motion) as de Rochefort libertam-se a todo o momento, em explosões de movimento "em dançado" que têm tudo a ver com a tradição do musical americano propriamente dito (e do musical americano chegam a Rochefort um símbolo maior, Gene Kelly, e uma starlet, George Chakiris, de fama breve por via do West Side Story). 

"É um filme de alegria, tanto quanto o de Cherburgo é um filme de tristeza – e talvez tenhamos mais dificuldades para lidar com a alegria nos filmes do que com a tristeza nos filmes. Em todo o caso, há ecos e premonições, ecos e premonições dentro do filme (como sempre em Demy e ainda para mais neste, espécie de "teoria geral do Destino segundo Jacques Demy"), ecos e premonições de outros filmes do realizador, então já feitos ou ainda por fazer – Michel Piccoli encerrado na sua loja de instrumentos musicais antecipa o mesmo, e muito mais trágico, Piccoli, encerrado na sua loja de televisores em Um Quarto na Cidade. Mas esse é outro filme, de facto, e bem distante – aqui, em Rochefort, é o tempo da alegria e o tempo de um destino que se acredita trabalhar a favor da felicidade. Com o filme de Cherburgo, fica uma espécie de díptico. Ou melhor, de 45 rotações. Ao espectador decidir o lado A e o lado B."

Em L'Exercice a été profitable, Monsieur, colectânea de textos inéditos publicada pela P.O.L., Serge Daney detém-se sobre Les Demoiselles, concluíndo que "a melancolia é instantânea como uma sombra. As coisas tornam-se melancólicas imediatamente, graças à música e à música do diálogo. É a boa disposição com que as personagens falham em tudo (além do essencial, talvez) que é terrível e comovente ao mesmo tempo. Não falhamos nas coisas por não as vermos mas por encontrarmos uma forma demasiado rápida de as esvaziar de todo o conteúdo, de circular à volta delas, de dançar. Darrieux descobre quem é o sádico e diz: "E ele a fazer-se de esquisito enquanto cortava o bolo!" 

"O essencial era o amor mas ele continuava a perder as suas cores. A beleza do 'último minuto', já neste filme, porque todos os finais felizes são voluntarismo puro. Mas depois (Peau d'âne, etc.), range cada vez mais. E o voluntarismo é precisamente o tema de Um Quarto na Cidade

"A força absoluta de Demy é referir tudo de volta a um ponto de vista perfeito: o da mãe. A mãe que nunca cresceu, que é frívola, que se esqueceu de deixar de ser uma rapariga. O mundo é ordenado a partir desta tarefa cega."

Até Terça!

quarta-feira, 18 de abril de 2018

Hiroshima mon amour (1959) de Alain Resnais



por José Oliveira

O mote para a Nouvelle Vague – movimento cinematográfico francês dos finais da década de 50 encetado ferozmente por um grupo de críticos vindos na maior parte da revista Cahiers du Cinéma, de outras publicações hoje injustamente esquecidas (Arts-Lettres-Spectacles, por exemplo, tem pedras preciosas) e do cineclubismo marginal (Cinéma Mac Mahon), fartos do artificialismo barato e do prestigio de um certo cinema de qualidade e inspirados por verdadeiros autores, daí a criação da “política dos autores” a defender com as garras afiadas e com toda a justiça e injustiça das paixões demenciais figuras e individualistas como Jean Renoir, Orson Welles, Alfred Hitchcock... mas também artesãos da sombra à maneira de Joseph H. Lewis ou Sam Fuller - foi dado por Jean-Luc Godard com o libertador O Acossado, por François Truffaut com o nostálgico Os Quatrocentos Golpes e com o mais lírico, o mais desesperadamente belo, poético e um dos filmes mais urgentemente românticos e aterradores alguma vez realizados: Hiroshima, meu Amor de Alan Resnais, o filme desta noite. 

Toda a memória do mundo chamou-se uma curta-metragem de Alain Resnais mais de vinte anos depois de ter começado a confrontar a crueza da película cinematográfica com a crueldade dos homens, e todo o essencial se resumirá a isso até ao final da sua obra, inclusive nos mosaicos e nas polifonias finais que tão festivas nos surgem por vezes. Les statues meurent aussi, de 1953 e realizado a meias com o outro grande poeta da devastação e da terra queimada que o século tecnológico escancarou (sim, ler com estas imagens Ruy Belo e T. S. Eliot); Noite e Nevoeiro e a impossibilidade do romanesco ligada a máquina e a encenação na concatenação dos Apocalipses; todo o resvalar do sincronismo entre imagem e som, Homem e o seu meio, o presente mais do que puro e o passado em acção nos essenciais Muriel ou o tempo de um regresso ou Providence. O estatuário, a carne, o solo terrestre, o espaço desconhecido aqui e para lá das estrelas visíveis, a contaminação da física e do concreto; e tudo o que fizemos, cada um e a raça, do nascimento ao túmulo e depois. 

Em Hiroshima um homem e uma mulher perdem-se de amores, ela é actriz, está lá a rodar um filme e partirá para o seu país no dia seguinte, ele habita em Hiroshima e no dia seguinte nunca mais a verá. Ela vive em Paris uma vida que não quer viver, ela conta ao amante o seu passado até aí aprisionado e insondável como forma de eternizar um amor condenado, ele não quer continuar a sua rotina de Pai de família, ele quer largar tudo e ficar com a mulher. A rondar tudo isso, como um pó de séculos que cobre e devasta um chão, as bombas atómicas, as guerras frias, as doenças mais escabrosas e as pestes mais negras, as quedas de pele e de cabelo nas doenças do ar e já a química cobarde das novas guerras anunciadas via Twitter; o risco e uma electricidade no ar que funde com o fim dos tempos tal como as visões mais alucinatórias nos fizeram espreitar até hoje, de George Orwell aos profetas Bíblicos. 

A Mulher é “Nevers”, o Homem é simplesmente “Hiroshima”, e o filme fica como o canto mais profundo, mais sensível, o mais louco e terminal amor que o movimento libertário francês nos ofereceu no seu período dourado...sobretudo porque o escavamento temporal, narrativo, enfim, a sua total liberdade e totalidade dos temas e das formas surge revestida, investida de uma sensação de Apocalipse nascente da proeminente impossibilidade de um amor; impossibilidade concretizada pelo nosso avanço de inteligência e de poder maquiavélicos. 

Os sentimentos, os gestos, os olhares, os corpos estão tão suspensos e assombrados pelo fantasma da noite e do nevoeiro derradeiros como do consequente regresso a uma normalidade desprezível que significa a paz podre que hoje vemos no mundo de Trump e de Putin. E o facto deste amor acontecer em Hiroshima contamina o filme com uma gravidade simbólica e prática de uma violência insuportável e intolerável. Pois tudo abarca, engole, vomita, aceita e abjecta: actualidades de telejornal descarnadas pela duração e frontalidade... profundezas da terra... criação poética... bichos da madeira e das tripas... o primeiro dia do mundo captado pelo cinematógrafo impossível... os corpos cadentes de Emmanuelle Riva e de Eiji Okada em transição e em fade à podridão das carnes, dos ossos e das vísceras dos campos de concentração ou do pó da bomba capital; em transição e em fade ao mais horroroso dos espaços off que o cinema e a sugestão ousaram: a indiferença perante tudo o que vemos no contracampo suado da entrega e do sexo. 

E depois, claro: como nos filmes de Godard, como nos filmes de Truffaut, como nos filmes mais representativos da Nouvelle Vague que neste filme excedemos e resumimos no nosso ciclo, onde poderemos incluir Chabrol, Rivette ou Rohmer, entre outros, sente-se que o que se está a ver e a sentir é não identificável, não lugar sendo na terra nossa, híbrido acabado... com a inocência das primeiras vezes e o terror apurado em laboratório de ponta. Em Hiroshima, meu Amor os actores e quem o olha queima-se pela consciência, no inegociável. 

A beleza assustadora das coisas que não duram...a mais bela cena de amor alguma vez filmada que é ao mesmo tempo a mais feia, a mais arrepiante voz-off, coro de todos aqueles mortos... um final enigmático que só o deixará de ser quando aparecer a paz sonhada... Hiroshima, meu Amor é o mais belo poema Nouvellevaguiano...e é um dos mais apaixonantes objectos artísticos, uma das experiências mais transformadoras alguma vez executadas: por ele vamos sentir a brisa de todo o romantismo procurado pela arte e pela emoção qualquer que seja, livre de conceitos e preconceitos, com o terror da espécie humana e dos actos a corroerem cada plano, cada som, cada teoria do mais astucioso analista, infinitamente para lá da jouissance frívola que muitos associam à NV. 

Aqui estão todos os possíveis ciclos de Chris Marker, de Stan Brakhage, Stanley Kubrick, Norman McLaren, e mais uns quantos que aplicaram a mais potente das lupas tanto ao microscópico e às moléculas invisíveis como à explosão do dia final; percorreram essa distância, cegaram-se nesse espectro, ensurdeceram-se no silêncio mais furioso e calaram-se no estrondo total. Todos os trompetes e saxofones e carnificina do Charlie Parker que arrancou o Bebop ao inferno do ar do tempo ameaçado, o Dizzy Gillespie de pilhas ultra-duracel ou o Miles Davis da fusion incompreendida, que forjaram uma nova arte e uma nova sensação a partir da queimada prometida pelos cogumelos da nossa evolução. Marguerite Duras e uma sede dos poros dos cinco actores deste filme e de todas as existências somadas. Todos estes seres foram casualidades doentes de uma mesma era. 

Mas o mais ambíguo, e naturalmente contraditório, tem a ver com a invenção e reconstrução a partir dos escombros operada pelo visionário Resnais. Muitos foram os escritores que partiram a pedra das palavras do terreno por eles habitado para erguerem uma nova linguagem (Thomas Pynchon, Joyce, um certo José Cardoso Pires), tal como Picasso ou Jackson Pollock esventram o caos circundante aliados a tintas, aos músculos e aos nervos; Hiroshima, meu Amor é tecido e fabricado com os restos deixados pelo urânio e pelo plutónio e afins, por esses cacos e esses ossos magros e desfeitos como cadáveres que não são actores nem documentário, entre o fumo do big bang e a radioactividade perene, a memória com a ameaça permanente fundidas a ferro de temperatura inédita; Resnais agarra nessa matéria que não dá para agarrar e enforma o que não tem forma possível; daí o constante espanto, assombro e inaceitável de cada quadro e de cada corte, de cada aparição e renascimento. 

Mas é literalmente uma obra onde as palavras surgirão sempre em perca para a descrever, é um filme para habitar, para nos deixar perder nos seus labirintos e na sua vibração interior... para uma confissão. Para um trabalho de cura. E de aviso.

sábado, 14 de abril de 2018

90ª sessão: dia 17 de Abril (Terça-Feira), às 21h30


O "primeiro filme sem referências cinematográficas" (Godard), o "primeiro filme moderno do cinema sonoro" (Rohmer) e a primeira longa-metragem de Alain Resnais, Hiroshima, meu Amor, é a nossa próxima sessão, nas salas de cinema do Braga Shopping. Escrito pela grande Marguerite Duras, que foi nomeada para o Óscar de Melhor Argumento Original, o filme passeia-se pelas possibilidades formais de um amor proibido, assombrado pelos destroços da guerra e da injustiça de homens contra homens, tomando o mundo completamente de assalto na sua estreia, em 1959.

Alain Resnais, respondendo a várias perguntas no Séminaire du Film et Cinéma, em 1960, debruçou-se sobre a sua forma de dirigir os actores, dizendo que "dificilmente posso falar de um método sobre um passado tão curto. O que me interessa, é que o actor esteja o mais à vontade possível. Tenho um grande respeito, um grande amor pelo actor. Tem um ofício muito difícil, muito delicado, pede-se-lhe imenso. Se estiver a chover, não se filma, se o actor estiver doente, filma-se na mesma! Para mim, a primeira coisa é evitar-lhes aborrecimentos, tanto quanto possível. Além disso, gosto que saibam perfeitamente o texto deles. Também gosto que saibam perfeitamente a sua colocação: as marcações, os gestos, os lugares, em relação ao enquadramento. Depois de isso estar tudo no ponto, eu tento um primeiro take dando só um sentimento, dando o máximo de liberdade. A partir desse primeiro take, podemos modificar as coisas, acrescentar, remover... mas tento sempre preservar um primeiro take bem fresco, não fazer uma coisa pré-fabricada."

Marguerite Duras, a mítica escritora e realizadora francesa que assinou o argumento do filme, em entrevista ao marido, Dionys Mascolo, para a revista Cinéma 59, disse que "Resnais trabalha de forma obsessiva. De qualquer forma, ele é como eu não acreditava poder-se ser em forma nenhuma, tirando a do romancista. Nestas condições, exigimos ser livres. Por isso é que uma cláusula do contrato estipulava que seríamos absolutamente livres de fazer o que quiséssemos. E ainda por isso é que só recebemos somas irrisórias por este filme. Mas foi tudo como queríamos; estamos contentes. 

"O que quero esclarecer, é que não aprendi nada sobre cinema com Resnais, que ainda assim era o ser que melhor conhecia o cinema que jamais tinha encontrado. O que eu aprendi, muito simplesmente, é que o cinema não difere das outras artes e fiquei feliz, sim, muito feliz. Mergulhei no filme. Ainda assim, as imagens surpreenderam-me quando as vi. As de Nevers, por exemplo. Descobri nelas um exotismo inverso. A França era no fim do mundo. Era exótica em relação ao Japão. É muito raro ver-se assim superadas as previsões poéticas duma imagem e no entanto foi isso que me aconteceu com Resnais."

Jean Douchet, que nos falou de Hitchcock o ano passado, escreveu sobre o filme para a revista Arts, perguntando, "poder-se-ia imaginar Vélasquez, que acabou de terminar as suas Meninas, enquanto Picasso já tece as as suas maravilhosas variações? Certamente que não. Aqui acontece algo de semelhante. Com Hiroshima, meu Amor, Alain Resnais liberta o cinema do século XVII para o fazer mergulhar sem transições no coração do século XX. [...] Quebra o quadro da narrativa tradicional e introduz a técnica romanesca cara a Faulkner: o passado das personagens ou o passado histórico imerge em lampejos à superfície do presente e envenena-o ao mesmo tempo. Por outro lado, ao introduzir o cinema no cinema, Resnais iguala as obras literárias mais recentes de um Klossowski ou de um Borges: oferece-nos a reflexão em segundo grau, convida-nos para um jogo de espelhos [...]. Também um musicólogo podia encontrar a influência de Stravinski no ritmo e na montagem dos planos de Hiroshima, meu Amor

"Finalmente, do ponto de vista pictórico, este filme evoca o cubismo, Picasso e Braque. Moderno, Hiroshima, meu Amor também o é pelo seu tema. É a tragédia da impossibilidade da união e da plenitude de si mesmo. É a vitória da segmentação, da dissociação, do fragmentário. É impossível ser totalmente uno porque vivemos no instante e cada instante condena-nos ao nascimento mas também à morte de uma parte de nós próprios. Talvez seja esse o símbolo profundo da primeira imagem do filme. Vêem-se só dois corpos abraçados, indistintos entre ambos, enquanto uma chuva de cinzas os cobre. Pode-se imaginar que estas cinzas sejam as mesmas da bomba atómica, isto é, como aquela dos vestígios da guerra que ainda recai sobre o presente e o contamina. Mas eu prefiro vê-las como o símbolo de uma dialéctica do instante: ao mesmo tempo que estes indivíduos "se incendeiam um ao outro" (como é dito a um certo ponto no texto) já os cobrem as cinzas deste fogo, as cinzas do esquecimento."

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 11 de abril de 2018

Les vacances de Monsieur Hulot (1953) de Jacques Tati



por João Palhares

Manuel António Pina: E não morremos crianças? 

Agostinho da Silva: Bom, alguns conseguem isso, não é? Ou porque são hábeis na acrobacia da vida ou porque a vida, por grande favor, os poupou. Mas são raros aqueles que conseguem morrer crianças... 

in « Conversas Vadias », ep. 12. 

Verão. Férias. E parece não haver outro filme que consiga abarcar totalmente o que um Verão pode ser a não ser este. Que pode ou não ser uma comédia. Se fosse só pelo resumo ou pela sinopse de Les Vacances de Mr. Hulot, julgar-nos-íamos num drama existencial, em que um homem vem do nada e ruma ao nada. Se soubéssemos o que é isso do "nada". Às vezes parece só uma coisa que serve para atirarmos culpas uns aos outros. "Não fazes nada", "não se passa nada", etc, etc. Se calhar uma semana numa estância balnear é o melhor que uma pessoa consegue engendrar para se isolar dos acontecimentos que se diz "valerem a pena" no nosso calendário. Ir para Carreço, para Moledo ou Vila Praia de Âncora e comer uns caracóis, ver celebridades da nossa praça a passear tartarugas à beira-mar, não conseguir uma boleia para casa e passar a noite dentro do Multibanco para ser expulso cordialmente pela polícia na manhã seguinte com um “nós percebemos, nós percebemos”, apanhar o comboio e ir saindo nos vários apeadeiros antes de chegar o revisor para beber umas cervejas e apanhar o próximo comboio, jogar dominó ao som de Bob Marley, sair de carro de um sítio qualquer com o My Way do Frank Sinatra aos berros... Esquecer o máximo possível as responsabilidades e os trabalhos que nos ocupam o resto do ano e apreciar a vida na sua futilidade, sem coisas para fazer, sem calendários e sem horas para cumprir, sem documentos ou contratos para assinar... 

O Sr. Hulot, nestes dias, está-se completamente a marimbar para isso tudo. Para comer a horas certas, para o dinheiro, para as aparências, para os estratagemas sociais que parecem existir num mundo à parte da realidade. Bem, não se estará a marimbar, especificamente, porque simplesmente ignora ou não acredita que a profissão e o trabalho façam ou definam o homem. Vem só no seu chaço apreciar os pequenos nadas que aquela semana em Saint-Nazaire lhe vai oferecer. (Não falo para já dos gags geniais que aparecem ao longo do filme, que como Playtime é uma enciclopédia do gag). E os nadas têm todos um peso e respiram como se tivessem forma. Um cão a dormir no meio da estrada, o caramelo a cair do gancho do carrinho dos gelados, as crianças a serem crianças (a tarefa hercúlea de levar um gelado, por escadas e portas - muito devagar, para não cair - até ao irmão que nos espera). As coisas que nos esquecemos de contar quando contamos uma história. Queremos tanto que (nos) aconteça alguma coisa que nos esquecemos do que acontece e não vemos nada, somos só pessoas ocupadas demais, vividas demais, chatas demais... Ah! se não falássemos tanto, conseguíamos apreciar o silêncio. Como neste filme. É como se aqueles planos do Ford em cadeiras e em alpendres durassem 90 minutos... Faça-se nada só um bocadinho... 

É se calhar por este avanço civilizacional em relação ao comum dos mortais que o Sr. Hulot está sempre à frente da imagem e sempre à frente do olhar. As pessoas fiam-se na primeira impressão que aquele carro velho e carcomido dá e ele faz de tudo e passa completamente despercebido. Antes que todos percebam o que se passou, já está ele na clarabóia do seu quarto a admirar a obra, como um miúdo traquina. Pegadas e partidas que um raccord não apanha, como quando Hulot vê o empregado à porta do hotel, vira subitamente para a direita e vemos as pegadas que vão na direcção da porta, com o empregado a coçar a cabeça do lado de fora, a olhar para elas e a tentar resolver o puzzle. O cinema foi inventado para se estar além do plano. 

E porque não é só o Playtime que é um filme novo de cada vez que se volta a ver, que dizer daquelas corridas de Hulot em segundo plano espalhadas pelo filme? Ou da sequência dos quadros? De cada gag que foi usado e reciclado mil vezes depois deste filme (a porta do restaurante que voltaremos a ver na Festa de Blake Edwards e Peter Sellers, o jogo de ténis que poderá ter inspirado o Jerry Lewis de The Big Mouth, os passeios por estações balneares de Billy Wilder e Éric Rohmer, em Quanto Mais Quente Melhor e Conto de Verão, etc.). De um filme em que pouco se diz, e o que se diz muito rápido se esquece, talvez não se deva dizer muito (mas não é tudo visual, há imensos gags sonoros espalhados pelo filme). Admirar, só, e passar os dias a tentar pagar a alegria de volta com assobios e pequenas excentricidades. 

A porta que range na ida e na volta, no restaurante. O empregado que tenta decifrar tudo e arregaça uma manga para pôr a outra no aquário. Se basta uma corda esticada para um gag funcionar, o que é feito da comédia? Trocas de identidade, pneus fúnebres, modernidade atrasada. E se Hulot é um exemplo, muito mais que um palhaço? 

- "Então o que tens feito?" 

O que aconteceu a responder a isto com um "nada" e um sorriso na cara?

sábado, 7 de abril de 2018

89ª sessão: dia 10 de Abril (Terça-Feira), às 21h30


Com As Férias do Sr. Hulot (a nossa próxima sessão, nas salas de cinema do Braga Shopping), Jacques Tati conquistou o mundo. Conquistou-o com a criação da personagem do Sr. Hulot, com um trabalho exímio na construção dos gags, com os elogios desenfreados à infância e à inocência, com personagens e situações que não esquecemos e que, acompanhadas da música de Alain Romans, passaram a definir todas aquelas semanas que se passam à beira-mar, perto de desconhecidos e conhecidos, sem noção do tempo mas com noção de coisas mais importantes, como aproveitar a vida ao máximo e sem preconceitos. É na próxima Terça-Feira.

Sobre o seu trabalho, Tati disse a André Bazin e a François Truffaut, no nº 83 dos Cahiers du Cinéma, que "ao ver As Férias do Sr. Hulot em público, arrependi-me de não ter colocado um pequeno cartão, antes, que daria algumas explicações: «Cá está, vão de férias, vão observar pessoas que conhecem, outras que conhecem menos...». O espectador tem um pequeno esforço a fazer, acho eu, para entrar no mundo cómico que é criado por Hulot. Se está à espera da descoberta de Hulot, fica inevitavelmente desapontado. Diz a si próprio: «Porque é que esta personagem não inventa, não se defende?» E era essa defesa que o faria rir. Na construção cómica de Chaplin, temos uma parte em que ele se esgueira, o que diverte imenso os espectadores, porque há uma invenção no acto de se esgueirar. São duas concepções diferentes, nem que seja só pelo tamanho. Há um que é grande, que não se pode esconder, pôr-se atrás de um lampião, ou seja do que for, enquanto que Chaplin se podia meter atrás de uma pequena lata do lixo, deixando o seu chapéu por cima da lata, e passar para trás doutra pequena lata, deixando acreditar que esteve sempre atrás da primeira, e depois voltar para procurar o chapéu... Hulot, pelo contrário, tem o físico de um tipo bem sólido; ele comporta-se exactamente como qualquer habitante de Paris, da província, etc."

Já perto do fim do seu livro The Comic Mind, que nos guiou pela aventura Chaplin, Gerald Mast debruça-se sobre os filmes de Tati, escrevendo que "a rotinização de As Férias do Sr. Hulot (1953) é muito mais subtil—talvez uma das razões para este filme ser o melhor de Tati. O espírito da América e o americanismo não estão muito presentes neste filme. A Bretanha o o turista britânico desempenham um papel muito maior. A amarga ironia das Férias do Sr. Hulot é que as suas pessoas, britânicas e francesas de igual modo, passam 50 semanas por ano a trabalhar nos seus empregos sufocantes e rotineiros para poderem vir para um hotel costeiro berrante e continuarem a rotina sufocante e entediante—comer a horas certas, relaxar a horas certas, dormir e acordar a horas certas. Para a maior parte delas, as "férias" são apenas uma mudança de sítio, não de sentimentos, atitudes, ou reacções humanas. O Hôtel de la Plage é uma espécie de morgue. 

"Assim que Tati adoptou a sua personagem do Sr. Hulot—o nome ecoa obviamente a alcunha de Chaplin em França, Charlot—definiu a sua atitude tanto como actor de cinema como cineasta em relação à esterilidade e à mecanização mortificantes que via no mundo em seu redor. Quando Francois se tenta converter a si próprio numa máquina sem sucesso, o Sr. Hulot mal parece consciente de estar rodeado por um mundo de máquinas e pessoas mecânicas. Tati o realizador está ciente das máquinas e comenta a sua omniprença envolvente, mas Hulot o personagem vai simplesmente à sua vida (outra semelhança com Keaton). Hulot contrasta com os mecanismos inumanos pela sua vida, pelas suas maneiras, pelo seu estilo de vida, movimento e resposta, sem sequer se aperceber. 

"Nas Férias do Sr. Hulot, é o turista inconvencional com o andar engraçado, o traje de pirata ridículo para o baile de máscaras, o carro velho que tosse, o estilo estranho (mas avassalador) de jogar ténis, o gira-discos barulhento, os sapatos sujos, e muitas outras inconvencionalidades desajeitadas. Ele não sabe que é inconvencional, mas os outros turistas têm muita consciência (e muito interesse) em relação à inconvencionalidade de Hulot—como revela fortemente o gag recorrente do filme. (As janelas do hotel enchem-se subitamente de luz de cada vez que Hulot faz algo de disruptiveo) Da mesma forma, em Playtime Hulot só quer arranjar um trabalho ou ir a um bar, e em Trafic quer apenas arranjar a auto-caravana num festival internacional automóvel."

No Dictionnaire, Lourcelles escreveu que As Férias do Sr. Hulot é "o mais burlesco dos filmes franceses e o mais francês dos filmes burlescos. Num estilo límpido, elegante e muito elaborado, Tati encadeia uma colecção incalculável de gags numa trama que exprime a monotonia e a languidez de uma estação veraneante. Raramente se viu tanta invenção transmitida num ritmo tão calmo e descontraído. Aliança também única, no estilo de Tati, entre a acuidade do realismo social e o que só pode ser chamado de poesia indefinível, feita de uma certa melancolia exterior e de um profundo júbilo interior. No seio de um pequeno mundo acanhado que vive de convenções e de rotinas, a personagem de Hulot aparece como um estrangeiro polido, um modesto perturbador e sobretudo um revelador. É o último depositário de um espírito de infância e de uma espécie de ligeireza de ser que em breve deixarão de ser deste mundo. Tati, sabe-se, mostra gostar tão pouco de diálogos como o Chaplin dos Tempos Modernos. Prefere os ruídos às palavras, ou melhor, para ele as palavras não passam de ruídos, e muitas vezes os mais inúteis. O primeiro gag do filme é baseado numa zombaria sobre o texto, com os altifalantes da estação a emitir uma mensagem incompreensível que faz com que os viajantes errem pelas vias à procura do seu comboio. Dito isto, se Hulot mal fala para os outros e se não falam com ele, não é devido a qualquer fidelidade ao antigo estilo do burlesco. Não nos devemos enganar: Hulot é um filme moderno, e a incomunicabilidade faz a sua aparição pelo menos sentencioso dos cineastas. O uso que Tati dá ao plano geral, em que a realidade é apreendida com distância e na sua globalidade, é igualmente de um modernismo extremo. A personagem de Hulot voltará a aparecer em O Meu Tio (1958), primeira descrição inquieta da chegada do mundo moderno ao universo de Tati (Jour de fête, esse, era totalmente desprovido de inquietação), depois em Playtime (1967), naufrágio soberbo, tanto quanto um naufrágio o pode ser, em que Tati verá o corpo e os bens serem engolidos pelos efeitos conjugados de uma ambição excessiva e de uma megalomania contrária à sua verdadeira natureza, e finalmente em Trafic (1971), sátira aguçada e infinitamente justa do universo automóvel. A recepção reservada pelo público ao génio de Tati inspira um sentimento ambíguo. Por um lado, decepção e pesar por Tati só ter podido assinar seis longas-metragens em quarenta anos de cinema. Por outro lado, não podemos deixar de pensar que chegou no momento certo, sobretudo no que diz respeito às Férias do Senhor Hulot. O grande público de hoje, muitas vezes tão ensurdecido, celebraria um artista tão discreto e tão pouco lisonjeiro como o fez em 1953?"

BIBLIO. : Geneviève Agel : « Hulot parmi nous », Èditions du Cerf, 1955. (A autora é pioneira ao saudar como cineasta maior um realizador que só assinou duas longas-metragens.) Jacques Kermabon : « Les vacances de Monsieur Hulot », Éditions Yellow Now, 1988. Na parte dos « documentos » deste volume, comparação interessante sobre variações diferentes que existem entre uma primeira versão escrita do filme, o argumento original, a novelização de Jean-Claude Carrière, publicada pela Laffont em 1958 e o filme definitivo. Para redigir o seu texto, Jean-Claude Carrière apoiar-se-á numa primeira montagem do filme, diferente daquele que conhecemos. De notar que depois da visualisação de Tubarão (Jaws, Steven Spielberg, 1975) Tati acrescentou um gag que agora aparece em todas as cópias recentes (a canoa dobrada em dois de Hulot parece-se com a mandíbula de um tubarão e assusta os veraneantes).

Até Terça!

Touchez Pas au Grisbi (1954) de Jacques Becker)



por João Bénard da Costa

Durante o tempo em que escreveu para O Independente, João Bénard da Costa criou uma crónica a que chamou “Os Filmes da Vossa Vida”. Nessa crónica, lia as cartas dos seus leitores e falava dos filmes sobre os quais eles queriam que ele falasse, ajudando-os às vezes até a descobrir nomes de filmes que achavam nunca mais conseguir voltar a encontrar. Numa dessas crónicas, debruçou-se sobre o filme que hoje vamos ver, Touchez pas au Grisbi, a pedido de Francisco Bernardo, da Covilhã. Transcrevemos esse texto para esta sessão. (João Palhares) 

(...) Não me lembro senão de três personagens, não me lembro do enredo, enfim não me lembro de muita coisa. Mas, para além duma estrada nocturna, onde explode um carro já antigo, lembro-me de uma imagem à qual serei fiel para toda a vida (...) "Felizes os que chegam a dizer uma palavra!" (Saúl Dias). Lembra-se, caro João Bénard da Costa, do final deste filme? (...) Se já escreveu sobre, ainda bem. Se não escreveu, escreva (se não faz favor). 

Francisco Bernardo 
Covilhã 

Francisco Bernardo viu Touchez Pas au Grisbi aos 17 anos, quando "andava a descobrir a poesia de Ruy Belo". Escreveu-me à memória dele, no mês de Dezembro, de um comboio, uma bela carta chamada Arte de Memória. Passou por muitos filmes - amadíssimos filmes - até pousar em You Only Live Once de Fritz Lang (1936) e Touchez Pas au Grisbi de Jacques Becker (1954). Filmes - diz-me, pedindo voz a Carlos de Oliveira - "das coisas não logradas ou perdidas / olhos turvos de lágrimas contidas". Porque demorei tanto tempo a responder-lhe? Não sei. As coisas acontecem ou acontecem-nos coisas. Dei tempo ao tempo a memória à memória. Agora julgo que estou pronto. Hoje, Touchez Pas au Grisbi. Para a semana, You Only Live Once. Amor com amor se paga. 

Se eu precisei de tempo, Jacques Becker (1906-1960) precisa de muito mais. Como "toda a gente", gostei muito dos filmes dele, desde que o conheci com Edouard et Caroline (1951), até Le Trou (1960), já estreado depois da morte. Com uma preferência expressa - e confessa - por Casque d'Or (1952), o filme da Signoret e de Reggiani, mas também o filme de Reggiani e de Bussières. "Mais il est bien court le temps des cerises (...)". Só que, "como toda a gente", e à excepção desse "souvenir que je garde au coeur", se o amei perto esqueci-o longe. Como escreveu Marc Chevrie, em 1985, "ce n'est pas que Jacques Becker soit méconnu, c'est son cinéma qui l'est". Porém, de cada vez que lhe revejo um filme - no ano passado, Falbalas (1945) agora Touchez Pas au Grisbi - o que julgava amar volta mil vezes mais forte e descubro que afinal nunca vira o que supunha ter visto. À medida que o tempo passa, esses filmes de Becker aumentam, aumentam e descobre-se, como Micheline Presle aprendeu no catecismo (Falbalas) que criar é fazer qualquer coisa a partir do nada. 

Porque é que há, assim, criadores que precisam de tanto tempo? Não tem que ver com os grandes inovadores. Picasso ou Godard foram amados ou odiados, logo, no tempo das Demoiselles d'Avignon ou do À Bout de Souffle. Outros, pelo contrário, que ficaram sempre numa espécie de surdina (de Jacques Becker a Jacques Demy), satélites de planetas maiores (Renoir para Becker) cada vez brilham mais à medida que avança a noite e descobrimos que ainda não tínhamos idade para os ver quando julgávamos que a idade nossa era a deles. "Frère Jacques", chamou-lhe Você como Godard o chamou, no muito bonito texto de necrológio. Também fiz meu esse doce nome. Mas, hoje, desconfio um pouco. Não é também uma maneira de arrumar como colateral, nem pai, nem filho, nem amante? E morreu num domingo de manhã, à hora em que Max (Jean Gabin) costumava pôr a tocar o seu disco de 45 preferido, como também lembrou Godard. 

Era um disco de jazz, arranjo de Jean Wiener de um tema de Jerry Mary. Umas notas de piano, um solo de clarinete, e o filme começa com ele e acaba com ele. Pode associar-se essa música ao "grisbi" (o roubo das barras de ouro, em Orly, o tal "último golpe" de Gabin, de que falava o título português), pode-se associá-lo ao envelhecimento de Max. São temas evidentes deste filme de gangsters que é um filme sobre um roubo que devia assegurar a Gabin a reforma que, aos 50 anos, sabe que está na hora de chegar. 

Mas roubos, ajustes de contas, até o espectro da velhice tão poderosamente trazido a primeiro plano, são o "macguffin" de Becker. Porque Touchez Pas au Grisbi (e ignoro se a expressão em calão pode ter outros sentidos) é o filme sobre o amor entre dois homens: Max e Riton (René Dary), esse a quem Gabin chama tantas vezes, tocando-o, "tête d'hérisson". Há vinte anos que trabalhavam juntos, há vinte anos que não se largavam. Como o bando diz, Max "quando il aime quelqu'un c'est la vie à la mort". E quelqu'un não vale para quelqu'une, pois que a Max conhecemos muitas mulheres e todas efémeras. Mas será que Max amou alguma vez alguma mulher? 

De Riton não sabemos. Mas sabemos, quando o filme começa, que está perigosamente embeiçado por Josy, uma putazinha traidora, interpretada por Jeanne Moreau em começo de carreira. Max tem medo daquela história que lhe cheira mal (os olhares que lança ao amigo) e dá-lhe como exemplo velhos senis. 

Até que Riton fala de mais e Josy ouve de mais. Até que Josy conta a Angelo (Lino Ventura), novo amante dela, que Riton e Max roubaram as barras de ouro. Numa inolvidável noite - o pão e o paté - Max diz a Riton que Josy lhe pôs os cornos e o traiu. É de espantar na idade deles? E, como um espelho, mostra-lhe ruga a ruga e papada a papada. Depois, diz a Riton que ele nem sonhe em vingar-se e que se afaste de Angelo. Despem-se, lavam os dentes (gestos simétricos, sequências paralelas) e deitam-se. Riton não consegue dormir. 

Mas, no dia seguinte, finge que dorme enquanto Max sai, pé ante pé, para pôr o ouro em lugar seguro. Quando Max volta, Riton já lá não está. Não resistiu e foi ajustar contas. Max percebe que o amigo está perdido e que tudo pode estar perdido. E vem então a sequência que é tão espantosa como o final. Põe o disco que Riton amava no pick-up, tira uma garrafa de champagne do frigorífico, bebe o champagne e insulta em voz off o amigo. "Ce Riton", na voz in de Gabin. "Il m'emmerde ce Riton. Depuis le temps que ça dure. Il faut toujours qu'il fasse des conneries. Qu'est-ce que j'aurais pu faire si je ne l'avais pas toujours derrière moi?". Senta-se e levanta-se e a câmara, sem cortar o plano, acompanha-o em panorâmicas à roda do quarto, impotente e desesperado. 

Até que o telefone toca e uma mulher estrangeira (Marilyn Bufferd) o convida para almoçar em casa dela. O plano do champagne funde-se, sem transição, com o plano de um copo de cognac, em fim de almoço. Estão os dois muito calados. De isqueiro na mão, ela levanta-se para lhe acender um cigarro. Gabin assopra o isqueiro e senta-se ao colo. Vai beijá-la e ela esquiva-se. Há, nele, uma breve inquietação, serenada quando a vê avançar para o quarto. Segue-a e fecha-nos a porta na cara. Corte. Depois, ele já vestido ela ainda nua, Gabin acende outro cigarro. "Tu m'aimes?" pergunta ela. "J'arrive", não responde ele. E, de novo em off-in, recomeça o monólogo com Riton, já não zangado mas cheio de saudades. Naquele corpo de mulher, ou naquela mulher que só tinha corpo, Max reencontrou Riton e decidiu arriscar tudo para o salvar. Nenhum diálogo, nenhuma palavra, só a música, a música sempre, esse tema que se espraia, se dilata e depois, sempre, se suspende. 

É essa sequência - é essa música - que vai desaguar no plano final, o seu plano. Lembro-me, lembro-me sim, do lugar onde isso aconteceu e da luz a que aconteceu. Agora lembro-me de tudo e a tudo dou outro sentido. 

Gabin a chegar ao bistrot do costume, com a nova mulher, a tal estrangeira, para se "mostrar", depois de ter ficado sem o ouro, depois de ter velado a noite toda Riton ferido na cilada. Depois, telefona para saber se Riton continua melhor. Para marcar o número, põe óculos, óculos que nunca antes usara. "Riton est mort, Max". Gabin fica calado, tanto tempo calado. E vemos o corpo de Riton, deitano na cama, por baixo de um quadro que representa uma mulher muito nua. E vemos no rosto de Riton uma luz admirável. Depois, alguém nota que nunca viu Gabin de óculos. "C'est pour lire". Depois, Gabin volta a pôr o disco na máquina. Depois, a tal mulher que ele só da cama conhecia, belisca-lhe a mão, sem perceber nada de nada, sem saber nada de nada. E depois, Gabin sorri. 

Tudo o que aconteceu não importa e tudo o que importa não aconteceu. A câmara vira a cabeça e fixa-se na máquina dos discos para acabar o filme. 

"La petite phrase" nenhuma palavra a dirá jamais. Só essa música, só o clarinete, só esse brilho nos olhos de Gabin. Quem, como Becker, cantou tão manselinho cantigas de amigo? "Max, tu pourras revenir aprés déjeuner?" O filme acaba à hora de almoço. Max e Riton nunca mais hão-de voltar. 

in “Os Filmes da Vossa Vida”, « Suplemento Vida », 11 de Agosto de 1995, pág. 22

quarta-feira, 4 de abril de 2018

88ª sessão: dia 6 de Abril (Sexta-Feira), às 21h30


Tido como o mais francês dos cineastas franceses, Jacques Becker começou a carreira como assistente de Jean Renoir (escola frequentada também por Luchino Visconti, Henri Cartier-Bresson, Satyajit Ray ou Paulo Rocha, para citar apenas alguns), assinando a primeira longa-metragem como realizador em 1942, Dernier atout. Como esse primeiro filme, a nossa próxima sessão na velha-a-branca, Ne touchez pas au grisbi, também é um policial, mas como sempre em Becker, trata-se apenas do pano de fundo que abriga as suas personagens, que é com o que mais se importa, à moda de Hawks.

Quando Jacques Rivette e François Truffaut lhe perguntaram se ainda o consideravam um "cineasta social", Becker respondeu-lhes que "Acredito que ainda há uma espécie de verdade. Fez-se mal em acreditar sem rodeios que eu tinha procurado ser «social» a todo o custo. Essa impressão é causada pelo facto de que nos meus filmes, geralmente, nos interessamos bastante nas personagens. É o lado um bocado entomologista que posso ter: isto passa-se na França, eu sou francês, trabalho sobre franceses, olho para os franceses, interesso-me nos franceses. Mas interesso-me nas personagens por um certo número de lados, que não são apenas os que são indispensáveis para a compreensão a acção. Max o Mentiroso, no Grisbi, por exemplo, é um senhor que também adora os discos e a música, e sentimos que também pode gostar de carros. Porque as pessoas são assim, no fundo, não acham? Acho que somos um bocado grosseiros, de forma geral, não sabemos nada de... - Não sei porque é que falo de La Dame aux Camélias a toda a hora; é um filme que vi recentemente e que acho notável, bem melhor do que a crítica disse; quando voltei a ler certos artigos depois de ter visto o filme, fiquei indignado pela injustiça de alguns jornalistas. No entanto, por causa de Dumas filho, que Raymond Bernard foi forçado a respeitar, ninguém sabe ao certo quem é Marguerite Gauthier: sabe-se que ama Armand, mais ignora-se o resto; ignoramos por completo a sua verdadeira personalidade."

Como escreveu João Bénard da Costa no Independente, "roubos, ajustes de contas, até o espectro da velhice tão poderosamente trazido a primeiro plano, são o "macguffin" de Becker. Porque Touchez Pas au Grisbi (e ignoro se a expressão em calão pode ter outros sentidos) é o filme sobre o amor entre dois homens: Max e Riton (René Dary), esse a quem Gabin chama tantas vezes, tocando-o, "tête d'hérisson". Há vinte anos que trabalhavam juntos, há vinte anos que não se largavam. Como o bando diz, Max "quando il aime quelqu'un c'est la vie à la mort". E quelqu'un não vale para quelqu'une, pois que a Max conhecemos muitas mulheres e todas efémeras. Mas será que Max amou alguma vez alguma mulher?

"De Riton não sabemos. Mas sabemos, quando o filme começa, que está perigosamente embeiçado por Josy, uma putazinha traidora, interpretada por Jeanne Moreau em começo de carreira. Max tem medo daquela história que lhe cheira mal (os olhares que lança ao amigo) e dá-lhe como exemplo velhos senis.

"Até que Riton fala de mais e Josy ouve de mais. Até que Josy conta a Angelo (Lino Ventura), novo amante dela, que Riton e Max roubaram as barras de ouro. Numa inolvidável noite - o pão e o paté - Max diz a Riton que Josy lhe pôs os cornos e o traiu. É de espantar na idade deles? E, como um espelho, mostra-lhe ruga a ruga e papada a papada. Depois, diz a Riton que ele nem sonhe em vingar-se e que se afaste de Angelo. Despem-se, lavam os dentes (gestos simétricos, sequências paralelas) e deitam-se. Riton não consegue dormir."

Já Jacques Lourcelles escreveu que "numa história policial, o minucioso Becker põe em prática o mesmo descentramento de interesses - discretamente revolucionário - que Huston tinha posto em prática, três anos antes, em Asphalt Jungle. As personagens, os seus traços de carácter, as suas manias, os seus sentimentos e as relações que existem entre elas passam claramente a primeiro plano quando comparados à acção propriamente dita. Isto é ainda mais claro em Touchez pas au Grisbi que em Asphalt Jungle. A partir desta tomada de posição, a originalidade do filme é dupla. Em primeiro lugar, a acumulação dos apontamentos sobre os personagens aparece dentro de uma trama extremamente linear e contínua, e a este respeito quase hawksiana. (Touchez pas au grisbi é indubitavelmente o mais hawksiano dos filmes franceses). Nós seguimos Max (Gabin) durante uma noite, um dia e depois outra noite – decisiva – da sua vida. A personagem está presente em todas as cenas e a história, sem deixar de ser objectiva, sem flashbacks nem desvios, sem pitoresco nem artifícios, dá-lo a ver por inteiro nessas poucas horas da sua existência. Num momento da acção, o filme precisa de fazer referência ao passado para sublinhar quantas vezes Max já teve de ajudar o seu camarada corajoso e imprudente. Becker resolve a dificuldade recorrendo, com uma segurança tranquila, a um monólogo em voz off muito simples e muito eficaz (em Rue de l'Estrapade, ele já tinha feito a velha doméstica Paquerette monologar em «directo» e de forma muito saborosa). Outra originalidade, ligada à anterior: o retrato de Max (amigo fiel e às vezes cansado de o ser, Don Juan desiludido mas ainda verde, bandido fatigado que aspira ao descanso, etc.) é dado com um laconismo raríssimo no cinema francês da altura. Reserva, pudor, sobriedade e como que uma preguiça de grande senhor que não insiste em nada caracterizam não só o protagonista mas sobretudo o estilo de Becker. É inútil lembrar que o filme foi um triunfo, mas pode valer a pena notar que nessa altura Becker demonstrou que, mesmo em França, o grande público se podia mostrar sensível ao classicismo mais exigente e mais natural. Sem dúvida que também teve sorte porque outros além dele tentaram-no e espalharam-se ao comprido. Seja como for, Touchez pas au grisbi continua, hoje como na sua estreia, um dos melhores filmes policiais franceses e, muito simplesmente, talvez o melhor."

Até Sexta-Feira!

terça-feira, 3 de abril de 2018

Em Abril, no Lucky Star:



L'Atalante (1934) de Jean Vigo



por José Oliveira

Caros espectadores, o filme que hoje vamos ver é a obra final de um dos poetas mais raros e delicados de todo o cinema, um tipo de sensibilidade que o mundo do caos e da modernidade galopante teria obrigatoriamente de ceifar; mas foi uma tuberculose que lhe tirou a vida aos vinte e nove anos de idade, e L'atalante já foi tecido e terminado por um Jean Vigo sôfrego e porventura com a lucidez e a liberdade associada a quem tem a morte na ronda da noite. Com apenas quatro filmes transportou a arte das imagens e dos sons colhidos e manipulados em celulóide até às portas da total ousadia e da infinidade, sendo ainda hoje referência essencial para os mais opostos cineastas e artistas em geral. Começou no mudo e no mudo ficou, mesmo se L'atalante é tão descarnado, arejado e revolucionário a nível sonoro como o La nuit du carrefour de Jean Renoir. 

À propos de Nice é de 1930, e desde os foguetes iniciáticos e das visões aéreas, são vinte e poucos minutos da mais descabelada feérie e de um documentarismo descritivo sem teorias nem amarras; realizado a par com o fotógrafo Boris Kaufman já o mergulho para o desconhecido de uma arte ainda no feto estava dado de cabeça; Taris, roi de l'eau de 1931 tem ainda menos metragem, 10 minutos apenas, é uma homenagem ao grande nadador Francês da época, um registo didático, que vai sendo enevoado e engolido por um surrealismo que já chega da fantasmagoria ontológica da película e pelo poder incomensurável e misterioso da câmara de filmar em transformar homens e carne em estátuas e na eternidade, com o elemento líquido e a magia associada a todas estas entidades formando um embrulho e um corpo intimamente cósmico; quase por último, Zéro de conduite: Jeunes diables au collège, o “filme dos filmes” da infância e o cúmulo do jogo de ambiguidades entre inocência e crueldade sem objectos perfeitamente definíveis e estanques, culminando na cena de almofadas do sono e de descoberta sexual que é a imagem acabada e desfeita de tais perfurações, momentos decisivos para o liricismo que François Truffaut sopraria mais tarde quando o cinema do seu país estava agónico e a precisar dele, começando no sedento e afagado Antoine et Colette

Sobre toda a herança desta cosmogonia breve e tremenda como o mais rápido dos projécteis não identificados que se destrói ao entrar na atmosfera terrestre, João Bénard da Costa escreveu: «L'atalante é a matriz de onde vem todo o grande cinema francês futuro e, nesse sentido, é o maior dos filmes percursores. Posso pensar em Godard sem Renoir, por mais que saiba quanto Godard o amou. Não posso pensar em Godard sem pensar nesse cineasta que morreu aos vinte e nove anos e que teve de esperar vinte e cinco por uma posteridade. Sem a liberdade que Vigo teve, sem a poiesis que Vigo teve, o cinema nunca seria tão livre como foi e nalguns casos continua a ser. Todos somos filhos de L'atalante». Até Truffaut e até Godard, e até ao mais fascinante e inclassificável de todos os realizadores franceses ainda vivos, Leos Carax, que tem sofrido tanto como Vigo por reconhecimento, de que Les amants du Pont-Neuf (já lá voltaremos) é um remake total; e até Manoel de Oliveira que o homenageou não só na literalidade e reinvenção de Nice - À propos de Jean Vigo, mas sempre, por exemplo nas cintilações e nas Ofélias de Vale Abraão

L'atalante foi, depois da morte de Vigo, um filme trucidado pelo estúdio que o produziu e esquecido por quase todos – dos inúmeros crimes destaca-se, já agora, a substituição da belíssima e inaugural música de Maurice Jaubert por um tema popular da época, subvertendo o celestial pelo comestível - sendo progressivamente descoberto ao longo dos anos pelos cinéfilos e cineastas mais veementes – como os citados da Nouvelle Vague ou a aparição na célebre lista dos melhores filmes de todos os tempos da Sight & Sound magazine em 1962 – para se chegar a uma montagem final apenas nos anos 90 (e obviamente muito contestada) na qual ajudaram, bem como nos recentes restauros, o grande investigador e escritor Bernard Eisenschitz, a filha de Vigo apelidada Luce Vigo, ou mesmo o esfomeado Martin Scorsese, que afirmou que o filme nasceu sozinho e continua sozinho, ainda hoje, como grande parte das obras essenciais. 

Oitenta e nove minutos comporta a obra que hoje conhecemos e é assim um dos monumentos de qualquer arte; um altar, um depositário ou uma arca mítica de luz que jamais as tesouras dos produtores poderiam ter apagado; um movimento dissonante e harmónico que tem os fundos das águas e os confins do firmamento – para lá das portas dos céus – como limites, de onde a ordem das sequências e a significância de mistérios e de dialéticas sem precedentes existiriam fosse qual fosse a ordem das coisas, inclusive a ordem da sorte não poderia apagar o inapagável; enfim, a perdição e o milagre do existir num perpétuo equilíbrio e risco. 

L'atalante inaugura-se com neblinas, águas, muito ar rarefeito, palpável, em sensações e atmosferas próximas à observação da formação de um feto, à saída da criança do ventre materno, à visão da primeira claridade deste mundo e das primeiras memórias que mais tarde se vão tentar refazer; sinos, casamentos, marchas, brancura, flores no charco, que parecem tão nupciais como funerárias, perfurando e unindo todas as pontas da existência, já li, na abertura. E já a bordo da embarcação que dá nome ao filme, tudo começa a escurecer, sendo de notar que não é a luz que baixa de intensidade, mas toda a envolvência com as situações e o desenrolar do novo estado do par – os gatos que invadem os beijos, que adiam os desejos e a libido, as desmultiplicações destes, os corpos e as salivas enrolados pelos chãos, a fricção com os restantes membros, os humanos a tornarem-se felinos (o noivo em cio a gatinhar no estrado é pura desgarrada animalesca), a besta humana a querer cantar, a danação a virar a cara à lua-de-mel e à sagração: o amor, o bem, e o maléfico e incontrolável, o outro lado do espelho que se irá partir lá para os meios do percurso, uma predestinação carregada de sinais e signos que consoante o contexto e a circunstância poderão ser todas as faces da moeda a mostrarem-se logo no dia primeiro do resto das suas vidas. 

E é logo desde o primeiro instante que Michel Simon entra em cena como o dono do barco de todos os perigos e arcas-de-noé, esse Le père Jules que tem aqui a sua criação mais fascinante a par com a de Boudu sauvé des eaux, igualando-a incrivelmente em anarquia e resoluta fraternidade; é ele o Pai dos gatos e do noivo, o monstro da luta livre e das libertinagens cosmopolitas, o desflorador espiritual e logo carnal da noiva e dos véus restantes, com o corpo tatuado como se se tratasse do mapa do globo que correu e provou ou de painéis terroríficos dos apocalipses de um Hieronymus Bosch, esse acordeão que legará ao Denis Lavant de Carax, acabado funâmbulo que prova do próprio sangue sem fazer caretas e que guarda todas as feiras geladas e marionetas destroçadas no seu sétimo céu para as incendiar e trazer à vida a quem merece. Dançarino Nietzscheano que no término meterá a corda mestra mais uma vez em tensão para outro fogacho de equilíbrio. 

Simon, como o seu ajudante que parece um bobo Shakespeariano, ou aquela personagem parisiense - numa paris de fundos, de cheiros e de horizontes somente sonhados nas entranhas dos desejos e das ilusões rurais – que tenta diabolicamente a noiva com todos os clichés dos brilhos da “cidade da luz” e as sugestões proibidas com que os papões devoram as crianças e juventudes (mais uma vez os gatos a comerem sem regra), perfazem uma galeria que juntamente com o nevoeiro, as névoas, neblinas e massas complexas de fumos e químicos, vão cercando o casal recém formado, como que precavendo e mostrando que sexo e morte podem falar de uma e da mesma coisa; assim como o encantatória e a fábula só atingem o fascínio por essa mesma consciência e união que escapa a definições e dicionários. O feérico com os fogos-de-artificio que vão excedendo e devorando tudo, outra espécie de patético, são o forçar do afastamento dessa visão baça, dessa falta de nitidez dos primeiros instantes do universo, o aprender a respirar, onde tudo vale, onde os indigentes são príncipes em castelos de papelão, os adultos oficiais retrocedem até à luta e aos estripar das almofadas dos quartos nocturnos das visitas-de-estudo ou dos orfanatos, sendo preciso provar a vagabundagem e o pó jazente em baixo das pontes para se sentir as sensações genuínas e não somente os conselhos e a palavra sagrada. Sexo e morte, inocência e terror, meninos e monstros, só muitos anos depois Leos Carax se suicidaria deste modo, se afogaria assim para visionar nessa morte a pureza e a transgressão absolutas e poder regressar, ressuscitado e transfigurado. 

De que fala então L'atalante? Do tão banalizado mistério da luz. Que ilumina e revela todos os lados, desflora, mata e faz renascer. De todas as estações numa só. Da eterna busca por entre o nevoeiro, de todas as matérias aquela que a luminosidade mais adensa. Da necessidade dos corpos por todos os outros corpos. Do corpo do cinema que permitiu ampliar tudo isto até ao infinito. 

Da poesia, assim, uma boa sessão a todos e um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen, Espero, desejando uma boa navegação: 

Espero sempre por ti o dia inteiro, 
Quando na praia sobe, de cinza e oiro, 
O nevoeiro 
E há em todas as coisas o agoiro 
De uma fantástica vinda.

Le voyage à travers l'impossible (1904) de Georges Méliès



por João Palhares

No teatro Robert-Houdin em Paris (que comprou em 1888) e na recta final do século XIX, Marie-Georges-Jean Méliès encantava o público francês com os seus números de magia, quando assistiu às primeiras apresentações públicas dos filmes dos irmãos Lumière e dos seus operadores. Não conseguindo comprar a câmara e o projector a Louis Lumière, que lhe terá dito que o cinema não tinha futuro, pôs as mãos à obra e adaptou pessoalmente uma câmara que conseguiu comprar em Inglaterra, aplicando os seus talentos como mágico à medida que ia descobrindo efeitos possíveis, quase sempre em acidentes de projecção. Enquanto os anos iam passando, os efeitos de Méliès iam ficando cada vez mais sofisticados e abriam um oceano de possibilidades para a arte do cinema. Exposições multiplicadas, cadeiras automáticas, cenários rotativos e cheios de entradas secretas, calabouços mágicos... O génio de Méliès abria assim caminho para os grandes engenheiros do cinema, de Allan Dwan a Jacques Tati, de Buster Keaton a Pedro Costa. 

A dupla herança dos Lumière e de Méliès foi muitas vezes posta em diálogo interno, começando por se dizer que os primeiros teriam inventado o documentário e o segundo a ficção (há já mais de cem anos, para verem a falsa pertinência em se discutirem as fronteiras entre o documentário e a ficção como se fosse uma coisa absolutamente nova. Quantos simpósios, quantas mesas redondas, este ano? Enfim.), recusando-se depois essa noção e dizendo que foi ao contrário, que a ficção estava nos Lumière e o documentário em Méliès (e lembre-se um diálogo de La chinoise (1967) de Jean-Luc Godard, em que o personagem de Jean-Pierre Léaud rematava uma conversa perguntando “o que fez o Méliès na altura? Ele filmou a viagem até à lua. Méliès filmou a viagem do Rei da Jugoslávia ao presidente Fallières. Agora, podemos dizer, que eram reais acontecimentos da actualidade. Tu ris-te, mas é verdade. Ele criou os eventos da actualidade. Ele recriou os eventos da actualidade. Mas eram acontecimentos da actualidade. Eu diria até que Méliès é brechtiano. Não se esqueçam disso, ele era brechtiano.”), até aos dias de hoje, em que se dirá que os irmãos pioneiros são a cabeça do cinema, onde está alojada a alma, e Méliès o corpo, onde bate o coração.

Le voyage à travers l'impossible, de 1904, acompanha um grupo de cientistas numa viagem em comboios modificados e personalizados para uma viagem ao centro do sol, depois dos foguetões da Voyage dans la Lune (1902). E nunca é despropositado ver os novos mundos que o francês deu ao mundo, no seu estúdio de vidro em Montreuil, com cenários impressionistas e tramas surrealistas. A ficção científica pode ter pouca ciência mas criou as fundações e o imaginário para todo esse cinema, encantando-nos no processo com sequências de planos que fluem como um rio, coloridos antes da cor ser um processo, encadeados antes da montagem ser um conceito. O assombro é inigualável. É essa a impressão que fica desta viagem, recomendando-se também o outro filme "impossível" de Méliès, o fabuloso Déshabillage impossible (1900).