por João Palhares
If it's magic,
Why can't we make it everlasting,
Like the lifetime of the sun?
It will leave no heart undone,
for there's enough for everyone.
Stevie Wonder, em If It's Magic
Não será de espantar (ou, não será, apenas se não se quiser ver injustiças nisto dos esquecimentos) que certos grandes artistas estejam condenados à ignorância geral em detrimento de outros, por não terem a sua obra devidamente editada e a circular em ciclos e mostras de cinema. Não ajudam, também, as palavras condescendentes de certos críticos e historiadores de cinema, tantas vezes movidas por mera ignorância e desconhecimento das obras, quando não mesmo proferidas por puro preconceito ou ira mal orientada. Frank Borzage, filho de um pedreiro de uma área agora italiana do antigo Império Austríaco e de uma empregada suíça de uma fábrica de seda (e quem reconhecer neles alguns dos seus heróis não estará totalmente enganado), nasceu a 23 de Abril de 1894 em Salt Lake City, no Utah. Como Allan Dwan, Henry King, King Vidor ou Cecil B. DeMille, não parece interessar muito nem aos cinéfilos nem ao público de hoje, apesar de ser (também como Dwan, King, Vidor ou DeMille) um dos sustentáculos absolutos da fábrica dos sonhos, do cinema americano e do cinema mundial. Depois de deixar a escola aos doze anos para ajudar o pai no negócio da construção, decidiu trabalhar numa mina de prata como forma de juntar dinheiro para pagar cursos de interpretação e tentar uma carreira como actor de teatro. Entre digressões mal sucedidas pelo Utah, pelo Montana e pelo Wyoming, Borzage teve de arranjar trabalhos variados como assistente de cozinheiro num campo de trabalhadores dos caminhos-de-ferro, na sopa dos pobres, e como jardineiro, conhecendo a fome e a pobreza e a bondade que se pode encontrar entre os que lutam pela sobrevivência, até se conseguir compor e ir para a Califórnia. Em Hollywood, começou por trabalhar como actor em pequenos westerns e comédias (os chamados two-reelers que fizeram a fama de Charles Chaplin ou de Laurel e Hardy, por exemplo), acabando por chegar à realização pelas voltas que o destino sempre deu quando se tratou dos pioneiros do cinema, que só o foram por mero acidente. Em 1915, escreve, interpreta e realiza The Pitch o' Chance, uma curta-metragem de 26 minutos. Em 1925, assina um contrato que durará sete anos com a Fox, realizando 7th Heaven, O Anjo da Rua, Lucky Star e The River nuns meros três anos, ainda os seus filmes mais celebrados e conhecidos – os três primeiros dos quais com a famosa dupla formada por Charles Farrell e Janet Gaynor.
O mundo das obras de Borzage será um mundo de transfigurações e transmigrações, fusões místicas de amor e entendimentos e partilhas telepáticas, de personagens imensamente maiores que os seus corpos, em que o próprio estúdio de cinema se transforma a pinceladas de luz e à frente dos nossos olhos numa realidade total e transcendente. Em 7th Heaven, de 1927, o casal Farrell-Gaynor é separado pela Primeira Grande Guerra, mas encontra-se mesmo assim todos os dias às onze horas da manhã em espírito repetindo três palavras: “Chico – Diane – Paraíso”. Em Moonrise, de 1948, a personagem interpretada por Dane Clark, Danny Hawkins, é constantemente assombrada pelo destino do pai enforcado, facto que os seus conterrâneos nunca o deixam esquecer, temendo a cada passo e a cada premonição acabar como ele. Em I've Always Loved You, de 1946, as personagens de Philip Dorn e Catherine McLeod separavam-se depois de um concerto em que ele tentava abafar o piano dela com todos os instrumentos da sua orquestra como se os dois se batessem ou fizessem sexo, encontrando-se noutro momento transmigratório e telepático pela música que tocavam e como se se pudessem ouvir um ao outro, apesar de quilómetros os afastarem. Em Tempestade Mortal, de 1940, o mal nazi nascia numa taberna em confrontos palpáveis entre a acção e o silêncio, entre o medo e a razão – com certeza a ilustração mais verdadeira para com a experiência interior dos alemães que se recusavam a sucumbir a esse mal e tinham que pagar por isso.
Foi precisamente com Tempestade Mortal que Frank Borzage terminou o que se pode considerar uma trilogia, começada com Little Man, What Now?, de 1934, e continuada com Three Comrades, de 1938. Pouco depois de Adolf Hitler ter sido nomeado chanceler na Alemanha por Paul von Hindenburg (e Tempestade Mortal lida frontalmente com as consequências imediatas dessa nomeação), Borzage foi o primeiro a virar-se para o velho continente, sob a égide de Hans Fallada (autor de Kleiner Mann, was nun?, base para o filme de '34) ou Erich Maria Remarque (autor de Drei Kameraden, base para o filme de '38), cronistas exemplares da Alemanha da República de Weimar e da que tragicamente lhe seguiu, para descrever as batalhas internas e externas de seres humanos assolados primeiro pela pobreza e pela fome e depois pelas perseguições políticas, religiosas e raciais do Terceiro Reich, não sucumbindo (nem na morte, porque afinal é de Borzage que estamos a falar) apenas por uma fé milagrosa e tocante no amor, na amizade e na bondade dos seus semelhantes. E não é só a Alemanha que aproxima estes filmes, já que são todos interpretados por Margaret Sullavan, diva silenciosa desses anos de divas tão ruidosas ("se pertence à família dos grandes sopranos líricos (...) distingue-se delas simultaneamente por uma fragilidade mais secreta e um erotismo mais exposto", escreveu sobre ela João Bénard da Costa) e que ainda trabalhou com Borzage em The Shining Hour, fabuloso filme em que a sua personagem se vai revelando aos poucos o centro de tudo e de todos, iluminando as restantes, bem como as suas relações, só com a força dos seus sentimentos.
Não deixa de impressionar como Borzage arranja forma de contar, nesses três filmes, as histórias que sempre contou, de descrever os arcos sentimentais que sempre descreveu, revirando o mundo do avesso para encontrar esses seres frágeis que "torna grandes pelo amor e pela adversidade" (como diz uma das legendas de O Anjo da Rua, um dos seus filmes mais famosos dos anos da Fox), sob a luz da sua bondade e da sua fé inabalável no ser humano. Não deixa de impressionar, também, como Borzage utiliza o estúdio para descrever a realidade, o que parece uma contradição em termos mas que em Borzage se torna a forma privilegiada de ilustrar o mundo interior das suas personagens, como o prova o mágico e misterioso final da Tempestade Mortal, em que um cenário é iluminado e escurecido para tornar palpável a transformação dentro dum homem que tinha sido seduzido pelas retóricas do nacionalismo. Quando saímos da casa, a sua culpa inflamada pela memória de tempos mais simples e pelo papel que teve na morte daqueles que amava transforma-se numa plataforma para o outro mundo, para o desconhecido. Voltamos às transfigurações e às transmigrações, como no final dos Três Camaradas, que talvez nos diga que se a lembrança dos mortos é condição para estes não morrerem, é condição maior para os vivos conseguirem (ou suportarem) viver. Em Liliom, de 1930, Charles Farrell descreve a Rose Hobart o comboio que só ele e nós vemos a atravessar o cenário para o levar a prestar contas ao Criador e voltar para se redimir dos seus pecados da forma mais insólita e inesperada possível. O coração sabe o que quer e pode ver verdades e amores profundos escondidos em acções aparentemente mal-intencionadas e egoístas. Em Borzage, todos têm redenção.
Moonrise, último filme antes dos grandes interregnos dos anos 50 (apenas duas longas-metragens e três episódios de meia hora rodados por Borzage para a série “Screen Directors Playhouse”, quando antes não falhava a marca de um filme por ano – dos tempos idos do cinema mudo até 1948, ano de estreia de Moonrise), foi filmado inteiramente em estúdio na Republic Pictures, usando mais uma vez do máximo artifício para imprimir a máxima realidade. Se todos os filmes de Borzage são povoados de heróis que sofrem as maiores reveses numa busca incessável por uma luz redentora, ilustrando sempre esse percurso, Moonrise talvez seja (com 7th Heaven e O Anjo da Rua) a apoteose dessa ilustração, dos bosques nocturnos, sinistros e cerrados do início do filme à luz final na clareira de todas as resoluções. Citado no livro de Hervé Dumont sobre o cineasta (Frank Borzage: The Life and Films of a Hollywood Romantic), um dos seus colaboradores, Joseph Ruttenberg, admite que "embora nos filmes dele nunca pareça, Borzage trabalhava imenso no aspecto técnico; delineava os seus planos e a sua iluminação com imenso cuidado, e era muito prestável para todos os técnicos, preparando tudo de antemão."
7th Heaven foi rodado no cenário de Aurora, de F.W. Murnau, também com Janet Gaynor. Os filmes eram para ser rodados mais ou menos na mesma altura, mas a Fox interrompeu todas as outras rodagens para os seus realizadores estudarem os métodos do cineasta alemão recentemente trazido para a América. Borzage esteve lá e prestou muita atenção aos movimentos de câmara, às construções de cenários com camadas múltiplas, a utilização de miniaturas e falsas perspectivas, passando depois dois meses em Paris com o irmão e trazendo centenas de desenhos e fotografias da sua viagem para ajudar a modelar o seu cenário. “Para o Charlie [Farrell] e para mim, [os cenários eram] um lar mais até do que a nossa casa,” disse Janet Gaynor a Kevin Brownlow em 1976. “Mal podíamos esperar por estar lá às nove horas. E saíamos a que altura fosse – sabe, trabalhava-se até o realizador nos dispensar. Não havia horas. Ora, para mim, eu simplesmente ia para casa e ia para a cama, estava tremendamente cansada, mas adorava aquilo e mal podia esperar por voltar na manhã seguinte... O chefe do estúdio [Winfield Sheehan] disse que se se conseguisse o intelecto de Murnau e o coração do Frank, ter-se-ia o realizador perfeito.”[1]
Sempre se disse que Borzage era o cineasta do amor. Mas como filmou ele o amor? Sabe-se há muito tempo que o cinema não é uma transposição literal das palavras que estão escritas num argumento, que as suas páginas não podem nem sequer dar uma ideia, por mais pequena que seja, do que será o resultado final. Porque se dessem, não valia a pena fazer os filmes. E por isso os grandes cineastas se aventuraram em pequenas e grandes descobertas durante a rodagem, às vezes com grandes custos para as suas carreiras. Por uma luz diferente, nunca filmada, nunca tentada, nunca criada, nunca descoberta. É trabalho custoso mas necessário para fazer ressaltar o que se acredita ser a verdade da cena, para diluir a técnica e o talento em emoção. Além de deter a chave de tudo isto, Borzage era também o mais humano dos profissionais, uma excepção notável num meio tão competitivo e sem tréguas como o do cinema. Um exemplo para qualquer aspirante a cineasta. Nas palavras de Hervé Dumont, "passeando pelo seu plateau, poder-se-ia pensar que Borzage nunca encontrou dificuldades. Raros são os que o viram zangar-se: quando estava enervado, saía e fumava um cachimbo lá fora. Arranjava sempre um momento para conversar com toda a gente e diz-se que tratava o ajudante do electricista com o mesmo respeito que o chefe do estúdio. Contrariamente a Preminger, não gritava nem apressava ninguém. Borzage dispensou a coreógrafa Albertina Rasch do plateau de I Take This Woman (1939) por ter gritado e praguejado. A sua calma proverbial era contagiosa, abundavam as piadas e o bom humor. Encorajava os jogos de cartas e truques de magia entre takes, e disse que retirava tanto prazer de filmar que queria que as pessoas partilhassem da sua alegria." Amor com amor se paga.
[1] in “Hollywood: A Celebration of the American Silent Film”, de Kevin Brownlow e David Gill, mini-série em treze episódios produzida pela Thames Television e difundida na ITV.