quarta-feira, 26 de julho de 2023

The River (1928) de Frank Borzage



por Alexandra Barros

Fechamos o ciclo dedicado a Frank Borzage, com um filme que rima com aquele que lhe deu início, Lucky Star. Rima no poder do amor e nos seus milagres: cura impossível, em Lucky Star; ressuscitação, em The River. Tanto num como no outro filme, os apaixonados (mais ou menos) relutantes, quanto mais se afastam mais se aproximam. Vencidos pela paixão, ou melhor, vencedores pela paixão, 1+1=1: um abraço em que os “abraçantes” se tornam indistinguíveis, após uma penosa caminhada na neve; o regresso de um corpo enregelado à vida pelo calor que o outro reparte. Final feliz. Felizes para sempre? Pelo menos, felizes por agora. 

“Que estranho caminho tive de percorrer para chegar a ti”[1] , poderia qualquer um destes enamorados dizer no final, fossem estes filmes falados. Qualquer história de amor, no cinema ou seja onde for, só pode ser história se incluir um estranho caminho. Amores sem história são lagos. Os dos filmes de Borzage são rios. 

“Este amor que surgiu insuspeitado  
E que dentro do drama fez-se em paz [...] 
Este amor meu é como um rio; um rio 
Noturno interminável e tardio [...] 
E que em seu curso sideral me leva 
Iluminado de paixão na treva” 
Soneto do amor como um rio (excertos), Vinicius de Moraes  

Em Setembro regressamos para mais histórias, mais amor, mais estranhamentos! Boas férias!

[1] Pickpocket, Robert Bresson.



domingo, 23 de julho de 2023

305ª sessão: dia 25 de Julho (Terça-Feira), às 21h30


Cineclube de Braga exibe “The River” antes de ir de férias 
 
Encerrando o seu ciclo dedicado a Frank Borzage, no âmbito das celebrações da sua tricentésima sessão, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe na próxima Terça-Feira às 21h30, no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, The River, filme de 1928 com Charles Farrell e Mary Duncan. 
 
O filme, parcialmente perdido, conta-nos a estória de Allen Spender (Farrell) e Rosalee (Duncan), um lenhador e uma mulher que espera o amante preso por homicídio que se conhecem num campo de lenhadores durante o Verão. Chegado o Inverno, deixam-se ficar os dois sozinhos enquanto os lenhadores esvaziam o campo para voltar para casa e às famílias. 
 
A versão de The River difundida actualmente é uma reconstrução do fragmento de 43 minutos encontrado por William Everson e Alex Gordon nos cofres da 20th Century Fox, em Los Angeles. Feita com o apoio da Cinemateca Francesa e a Cinemateca Suíça em 1993, a reconstrução conta com fotografias e intertítulos explicativos para suprir a ausência da primeira e última bobinas. 
 
Jacques Lourcelles escreveu que, em The River, “Borzage expressa o seu tema predilecto: o nascimento de um casal. Deixa aqui de lado os elementos românticos ou espirituais que tantas vezes evocou, para realçar o aspecto erótico da relação entre as duas personagens (daí o lugar particular do filme no interior da obra de Borzage e do cinema americano da época).” 
 
Muito elogiado pelos surrealistas, o filme foi lançado em Paris no Studio des Ursulines do Quartier Latin a 31 de Outubro de 1929. Ado Kyrou escreveu extensivamente sobre ele nos livros Amour-Érotisme et Cinéma, de 1957, e Le Surréalisme au Cinéma, de 1963. 
 
Depois de The River, já parcialmente sonoro, Frank Borzage estreou-se nos filmes falados, dos quais se podem destacar Liliom, Bad Girl, O Adeus às Armas, Man’s Castle, Little Man, What Now?, History is Made at Night, Três Camaradas, The Shining Hour, Tempestade Mortal, I’ve Always Loved You e Moonrise
 
Admirado por grande parte dos seus colegas de profissão, de John Ford a Terence Fisher, passando por Sergei Eisenstein, Borzage foi descrito por Samuel Fuller como “um dos maiores realizadores americanos de todos os tempos”. 
 
As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga, que voltarão em Setembro, ocorrem habitualmente às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os associados do cineclube têm entrada livre.

Até Terça!

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Street Angel (1928) de Frank Borzage



por António Cruz Mendes

Procurando repetir o grande êxito alcançado por 7th Heaven (A Hora Suprema), William Fox deu a Borzage toda a liberdade para a realização de um novo filme. Borzage tomou, então, como ponto de partida a peça de teatro de Monkton Hoffe, Cristilinda, e transformou-a radicalmente passando a história de Londres para Nápoles e de um meio burguês para os bairros miseráveis da cidade italiana, e regressou ao tema de um grande amor que se confronta com a dura realidade da vida. Além disso, convocou de novo Janet Gaynor e Charles Farrell para interpretarem a história de amor entre Angela e Gino. 

É bem conhecida a frase com que Tolstói nos introduz na história de Anna Karenina, que nos diz que “todas as famílias felizes se parecem, enquanto as infelizes o são cada uma à sua maneira”. Talvez por isso seja tão difícil filmar a história de um amor feliz sem cair em lugares comuns. Em Street Angel, Borzage arrisca essa possibilidade, não diferindo a vida amorosa de Angela e Gino para um suposto futuro que se seguiria ao happy end
 
O seu filme pode ser visto como um tríptico onde os sombrios volantes servem para realçar a luz que irradia do painel central, onde se conta a felicidade vivida por Angela depois do seu encontro com Gino. 

No primeiro “volante”, pinta-se a miséria em que ela vive, a morte da mãe e a sua prisão por roubo e prostituição. Na sequência do seu julgamento, vemos as autoridades que a condenam de costas, impessoais e em primeiro plano, enquanto Angela é filmada ao fundo da cena, reduzida a uma dimensão minúscula. Quando se abeira do juiz que, do alto, dita a sentença, só conseguimos ver os seus olhos espantados. Ela não é ninguém e, na prisão, as reclusas também já não são pessoas, mas apenas sombras projectadas nas paredes. Porém, quando foge, Angela recupera a sua vida, encontra uma família na comunidade do circo – e conhece Gino. 

O tema do painel central é o da felicidade de ambos, refugiados na pobre habitação onde, castamente, porque ainda não são casados, vivem em quartos separados. A rosa comprada por Gino, em vez da comida que faltava em casa, simboliza esse amor romântico que os une. Contudo, em Nápoles, a sombra do passado projecta-se sobre ele. A prisão de uma prostituta, avistada pelos dois da sua janela, é um sinal premonitório. “Talvez ela não tenha culpa”, diz Angela, assustada. “Elas só têm a si mesmas para se culparem”, responde Gino. E é quando, finalmente, Gino recebe uma grande encomenda, a pede em casamento e brinda ao futuro dos dois, um futuro que se adivinha de riqueza e felicidade, que esse passado bate à porta na figura de um polícia que reconhece Angela, a prostituta e ladra que fugiu da prisão. Numa sequência de planos em montagem paralela, vemos Gino sonhar com os filhos que vão ter, com a ventura que os espera, enquanto, lá fora, o polícia olha para o relógio. O tempo que deu a Angela para se despedir está-se a esgotar. O sino da igreja dá as horas, é o momento de partir. E a montagem paralela surge de novo, desta vez ensaiando um diálogo imagético e sonoro, quando os dois se despedem, assobiando O sole mio

Gino ainda não sabia que essa separação seria por muito tempo. No segundo volante deste tríptico, regressamos ao mundo das trevas. Angela está na prisão e Gino, desconhecendo o seu paradeiro, mergulhado no desgosto e incapaz de pintar, deixa-se ficar pelos bares, onde reage violentamente à abordagem de uma prostituta. Mais tarde, informado por ela do destino da sua noiva, decide voltar a pintar. Terá como tema uma mulher com uma alma demoníaca escondida sob uma cara de anjo. Procura o seu modelo entre as prostitutas, nas docas de Nápoles – e depara-se com Angela. Enlouquecido, tenta estrangulá-la e persegue-a por vielas e escadarias, até que a encontra aos pés de um altar, sob o retrato que ele próprio pintara, mas retocado por um falsário que transformou Angela numa santa, para fazer passar a obra de Gino pela obra perdida de um pintor setecentista. Então, nessa falsificação, ele descobre a verdade e a pureza do amor triunfa sobre a baixeza do mundo. 

O melodrama exige do público uma disponibilidade que supõe uma suspensão temporária do nosso juízo racional. Estamos num mundo para o qual apenas a emoção é convocada. Mas, para além disso, todos somos sensíveis à beleza lírica dos movimentos da câmara que nos levam por essa Nápoles de papelão, escura e enevoada, onde se canta e onde se sofre. Griffith foi, como se sabe, o pioneiro da montagem paralela, e terá inspirado Borzage. Quanto aos impressivos contrastes de claro/escuro (a camisa branca de Gino, percorrendo as escuras vielas de Nápoles…) e à figuração fantasmática das sombras projectadas nas paredes, serão, talvez, uma herança do expressionismo alemão que Borzage poderá ter reconhecido em Murnau. Mas, o seu cinema tem, sem dúvida, uma marca própria e ela faz dele um dos grandes mestres do cinema mudo.



segunda-feira, 17 de julho de 2023

304ª sessão: dia 18 de Julho (Terça-Feira), às 21h30


Filme de Frank Borzage para ver na BLCS 
 
Esta Terça-Feira às 21h30, o Lucky Star – Cineclube de Braga vai exibir O Anjo da Rua de Frank Borzage no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, na continuação do ciclo dedicado ao cineasta e no âmbito das celebrações da sua tricentésima sessão. 
 
O filme, realizado em 1928 entre os lançamentos de A Hora Suprema e de Lucky Star, conta também com as participações de Janet Gaynor e Charles Farrell, que durante os anos 20 e 30 do século passado foram os “America’s favorite lovebirds,” entrando em doze filmes juntos e trabalhando com cineastas como Raoul Walsh ou Henry King, além de Borzage. 
 
Ambientado em Nápoles, a obra descreve os destinos cruzados da jovem Angela, que para ajudar a mãe moribunda se vê obrigada a roubar e, para fugir à justiça, se junta a um circo itinerante, e Gino, um jovem pintor que se junta ao mesmo circo por amor a ela. 
 
No seu dicionário de cinema, Jacques Lourcelles escreve que O Anjo da Rua é um “melodrama elegíaco na linha de A Hora Suprema, ao qual se segue imediatamente na filmografia de Borzage. Encontram-se aqui os temas caros ao autor: a sublimação e a redenção dos seres pelo amor; a inocência deles mais forte do que a maldição social que muitas vezes os atinge.” 
 
Terminando a sua pequena crítica ao filme, diz que “(…) os cenários, no isolamento do estúdio, são construídos expressamente para que a iluminação lhes adicione um segundo nível de artifício (no sentido nobre do termo) e de beleza. Este universo plástico é só expressionista na aparência porque, inferno e paraíso ao mesmo tempo, possui uma ambivalência profundamente estranha a esse movimento e que só tem sentido na temática de Borzage.” 
 
Junto a The Quiet One de Sidney Meyers, o filme teve a rara honra de ser nomeado para Óscares da Academia em anos diferentes, sendo nomeado e tendo vencido o Óscar de Melhor Actriz, para Janet Gaynor, em 1929, e recebendo as nomeações de Melhor Direcção Artística e Melhor Direcção de Fotografia no ano seguinte. 
 
É célebre um dos seus intertítulos iniciais, que diz que “por todo o lado… em cada cidade e em cada rua… passamos sem saber por almas humanas tornadas grandes pelo amor e pela adversidade” e que pode descrever toda a obra de Frank Borzage. 
 
As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga ocorrem habitualmente às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os associados do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Morada (2022) de Eva Ângelo



por João Acciaiuoli Catalão

Confesso que adormeci. Algures antes da visita às obras de recuperação do Trindade. Não por causa do filme mas por causa do meu cansaço. Aconteceu o mesmo com os cinemas. Fecharam não por causa dos filmes mas por causa do nosso cansaço. Conto isso na expetativa de trazer à leitura pessoal que faço a mesma inteireza e cuidado que a Eva Ângelo colocou no seu trabalho. No ajuste dos enquadramentos feito em diálogo e empatia. Na delicadeza poética da costura e dos entrançados que sustentam a arquitetura do filme. Nos apontamentos espontâneos que regista aqui e ali pela cidade. No vagar e no sentido dos seus atravessamentos coreográficos. Retenho em particular as mulheres que se escutam atentamente dentro de si mesmas. E os homens petrificados por um toque de Midas de sentido contrário. Em empurrões e esgares de riso que trazem consigo para dentro do plano. Tocou-me particularmente ter visto o filme num dia em que fiquei na casa da minha mãe no Porto. E depois revisitá-lo como quem reaprende o caminho de regresso. Para o descobrir finalmente fora da tela. Num contexto celebratório memorável. Em que as senhoras da turma de cinema se tornavam elas próprias protagonistas de uma estreia cinematográfica. Eu sei que a Eva queria que víssemos no filme matrioskas. Pela natureza sedimentar complexa do seu processo artesanal de trabalho. Que realça ainda mais a consistência que resultou dessa gestação prolongada. Quando finaliza o percurso coletivo com a justeza de um fecho de abóboda. Como se um cargueiro pesado se transformasse em aeroplano num passe de decolagem. Escolho ver por isso no filme, no lugar das matrioskas que também lá estão, o movimento circadiano das aves. Em particular aquelas que acentuam os silêncios na cidade. Que encenam subtilmente no filme presenças que persistem em edifícios que já foram salas de cinema. E ganharam outros usos. E também desusos. Por vezes daninhos à dignidade com que foram projetados. Escolho o volteio circular dos pombos. Pela porosidade com que coabitam connosco as casas. E as alargam em relevos orográficos invisíveis. Os desenhos que riscam na paisagem têm para a Eva um sentido simbólico codificado. Que ela tomou como metáfora do pensamento no seu filme Revoada. Em que o toque de Midas acontece no sentido exato. Alinhado com o entusiasmo humanista do Laborinho Lúcio. Que emparelho com a força e a fertilidade tecedora da Madalena Vitorino no Água. Escolho ver a epifania da luz súbita que rompe a chuva noturna. Como um candelabro que se acende numa sala de espetáculos há muito encerrada. A anunciar o renascimento possível dos cinemas de proximidade. Com a cidade e com as artes cinematográficas. Mesmo que a plateia tenha sido imobilizada de forma insólita no espaço público. Como na transfiguração que a Eva aplica ao trabalho Treze a Rir uns dos Outros de Juan Muñoz. Com as suas figuras em ferro petrificadas como no Vesúvio. Sob o olhar feminino imperturbável da Justiça à porta do palácio que supostamente habita. Escolho a alegoria solar da República que traz na mão um ramo de oliveira para mediar o conflito que se forma no interior da narrativa. E a verticalidade incisiva da Elisa com os auscultadores na cabeça. A ouvir palavras que lhe ferem por vezes os ouvidos. E o modo como nos interpela com intensidade. Escolho ver a Maria José e as muitas vozes que se fizeram presentes na antestreia do filme no Trindade. Quase como um milagre. Porque a passagem do tempo impregna-se tanto em nós como na película. Tal como as gravações feitas no inverno. Quando reforçam de forma quase grotesca a alameda de plátanos deformados no Jardim da Cordoaria. Que perdeu a sua aura romântica original quando o Porto foi Capital Europeia da Cultura. E ganhou as figurações escultóricas que habitam agora também este trabalho. O filme da Eva Ângelo fala da perda das salas de cinema. E resgata memórias documentais do seu surgimento e dos seus tempos áureos. Conjugadas com testemunhos improváveis recolhidos numa universidade sénior. Num registo afetivo de rememoração e reciprocidade. Porque há olhares habitados sobretudo neste exercício demorado dentro do silêncio e da resiliência. E uma exaltação comovente do espaço de partilha comunitário. Cujo endereço na rua da Constituição é uma bandeira que remata a orbitalidade agridoce de um filme que é também morada. Com um filme dentro do filme. Numa odisseia feliz contada com humor e brilho nos olhos pela Maria Teresa. Que a Eva tornou nome de rua num enquadramento prévio. A mim fez-me voltar à minha experiência como programador cultural na Casa do Professor em Braga. E ao seu lar de porta aberta para professores aposentados. Onde a minha mãe pensava ir viver antes de se mudar para o prédio da minha irmã na Prelada. Fez-me sentir a idade que ela tem agora multiplicada num caleidoscópio sensitivo. Com fragilidades e memórias mais recentes que se perdem. Mas com a persistência de conhecimentos antigos de físico-química. Que foi o curso em que a minha mãe se formou em Coimbra. Onde conheceu o meu pai, que era estudante de direito. E desenhava repetidamente a casa que sonhava construir no futuro. Envolto em música clássica e fumo de cachimbo. O filme é feito assim também de pequenas memórias estaladiças. Que aceleram uma pulsação nostálgica de fundo. E que acredito possam provocar efeitos semelhantes em outros corpos expostos à mesma radiação fílmica. Que tem como cerimonial condutor uma cadeira vermelha no sótão. E coleções de livros arrumados cuidadosamente em prateleiras como marcadores de viagem. Com instruções de voo à mistura. Como a de Edgar Morin no seu O Cinema e o Homem Imaginário. Há tantas formas de viver o cinema. Tantas formas de recordá-lo. De o compartilhar em álbuns de famílias alargadas como esta que conhecemos aqui através do vaivém epistolar da Eva. A universidade sénior que o filme documenta é uma escola feita à medida da perseverança da sua fundadora. E não de quem queria impor-lhe outra perspetiva pedagógica. É a esse espaço de convívio e proximidade que o filme vai buscar uma polifonia invulgar de vozes narrativas. Que nos trazem as suas impressões e experiências enquanto espectadoras de cinema. Mescladas com os tempos fílmicos que manuseiam. E leem em voz alta. Mas que trazem também barreiras e frustrações que deixaram e deixam ainda marcas sociais profundas. Nesse mundo no feminino que o filme desvela encontramos ecos bem conservados da comunidade que alimentou a efervescência das salas de cinema no Porto. As suas recordações pessoais reativam as emoções e o sentido cultural das paisagens que ganharam outrora vida na tela. Ao mesmo tempo que refletem os ritmos sociais e urbanos que se cruzam com os primeiros movimentos cinéfilos. Vagamos assim também pela cidade do presente. Em busca de vestígios e transformações ocorridas nesse espaço comum de memórias. Que persistem e que também se perdem. Dando lugar tantas vezes a metástases comerciais higienizadas. Que tornam ainda mais invulgar o reaparecimento recente do Batalha. Que a realizadora integra discretamente na versão final do filme. Depois de uma visitação solitária ao outro lado do mundo. E se torna um bilhete para o futuro. Vagamos pela cidade tão presente. Para encontrarmos por vezes, em deambulações da câmara, nascentes cinematográficas em estado bruto. Como se em cada filme evocado, em cada afloramento antigo que resiste, pudesse estar uma semente que se atira ao ar num dia de vento. A expressão é uma alusão modificada ao título que a Eva utilizou para batizar um trabalho que fez no Alto Minho. Emergiu quando escrevia ainda a lápis o esboço inicial deste texto. Para transformar-se agora numa passagem urdida pela urgência. Vincadamente sensorial e analógica como a porta do tribunal que se abre de um filme para outro na trilogia de Kieslowsky. Ou a figura idosa obstinada que os atravessa. E pressenti aqui também a presença. Queria trazer essa ramificação poética como um sistema de filmes comunicantes. Capaz de irrigar a árvore seca do Sacrifício salvífico de Andrei Tarkovsky. E chegar por carta como antigamente a lugares obstruídos pela persistência do ruído e da aceleração na retina. Quem sabe nos consiga levar ainda a algum lugar do futuro onde a morada do destinatário seja igual à morada do remetente. Adormeci no filme por cansaço. E acordei depois imerso nele. Como se pelo meio algum estremecimento súbito tivesse aberto um atalho permeável ao invisível. Falo de atalho por ser uma palavra cara à minha filha. Em particular quando voltamos de um passeio que encontros casuais alongam. Ou no caso da Eva se fixam no filme. Não preciso de um mapa para me orientar entre as placas com nomes de ruas dos antigos cinemas que pontuam este trabalho. Enlaçadas com palavras soltas à deriva. Mas preciso saber Onde Fica a Casa do meu Amigo de Abbas Kiarostami. Que depois de ter sido evocado se avizinhou prodigiosamente da estreia do filme no Porto. Porque A Vida Continua. E o futuro sofreu um abalo sísmico fraturante como aquele que impele o cineasta iraniano em direção aos escombros. Numa viagem ficcionada em busca das crianças com quem havia trabalhado anteriormente. Morada é um filme habitado por filmes que são também casas habitadas por pessoas. Casas dentro de casas. Como as matrioskas que a Eva queria que víssemos. Mas é acima de tudo um olhar sobre um outro tempo que hoje nos escapa. E exige do espectador esse mesmo tempo como código de acesso. Procuro também a minha morada nas ruínas. Lembro-me que havia uma árvore isolada no alto da colina. E um anjo atento que nos ouvia. Como se fosse um divisor de mundos. Entre Tristão da Cunha e a Terra do Fogo. Porque há sempre um antes e um depois do que nos salva. Que é o que faz por vezes o cinema.



quinta-feira, 13 de julho de 2023

7th Heaven (1927) de Frank Borzage



por João Palhares

If it's magic, 
Why can't we make it everlasting, 
Like the lifetime of the sun? 
It will leave no heart undone, 
for there's enough for everyone. 
 
Stevie Wonder, em If It's Magic 
 
Não será de espantar (ou, não será, apenas se não se quiser ver injustiças nisto dos esquecimentos) que certos grandes artistas estejam condenados à ignorância geral em detrimento de outros, por não terem a sua obra devidamente editada e a circular em ciclos e mostras de cinema. Não ajudam, também, as palavras condescendentes de certos críticos e historiadores de cinema, tantas vezes movidas por mera ignorância e desconhecimento das obras, quando não mesmo proferidas por puro preconceito ou ira mal orientada. Frank Borzage, filho de um pedreiro de uma área agora italiana do antigo Império Austríaco e de uma empregada suíça de uma fábrica de seda (e quem reconhecer neles alguns dos seus heróis não estará totalmente enganado), nasceu a 23 de Abril de 1894 em Salt Lake City, no Utah. Como Allan Dwan, Henry King, King Vidor ou Cecil B. DeMille, não parece interessar muito nem aos cinéfilos nem ao público de hoje, apesar de ser (também como Dwan, King, Vidor ou DeMille) um dos sustentáculos absolutos da fábrica dos sonhos, do cinema americano e do cinema mundial. Depois de deixar a escola aos doze anos para ajudar o pai no negócio da construção, decidiu trabalhar numa mina de prata como forma de juntar dinheiro para pagar cursos de interpretação e tentar uma carreira como actor de teatro. Entre digressões mal sucedidas pelo Utah, pelo Montana e pelo Wyoming, Borzage teve de arranjar trabalhos variados como assistente de cozinheiro num campo de trabalhadores dos caminhos-de-ferro, na sopa dos pobres, e como jardineiro, conhecendo a fome e a pobreza e a bondade que se pode encontrar entre os que lutam pela sobrevivência, até se conseguir compor e ir para a Califórnia. Em Hollywood, começou por trabalhar como actor em pequenos westerns e comédias (os chamados two-reelers que fizeram a fama de Charles Chaplin ou de Laurel e Hardy, por exemplo), acabando por chegar à realização pelas voltas que o destino sempre deu quando se tratou dos pioneiros do cinema, que só o foram por mero acidente. Em 1915, escreve, interpreta e realiza The Pitch o' Chance, uma curta-metragem de 26 minutos. Em 1925, assina um contrato que durará sete anos com a Fox, realizando 7th Heaven, O Anjo da Rua, Lucky Star e The River nuns meros três anos, ainda os seus filmes mais celebrados e conhecidos – os três primeiros dos quais com a famosa dupla formada por Charles Farrell e Janet Gaynor. 
 
O mundo das obras de Borzage será um mundo de transfigurações e transmigrações, fusões místicas de amor e entendimentos e partilhas telepáticas, de personagens imensamente maiores que os seus corpos, em que o próprio estúdio de cinema se transforma a pinceladas de luz e à frente dos nossos olhos numa realidade total e transcendente. Em 7th Heaven, de 1927, o casal Farrell-Gaynor é separado pela Primeira Grande Guerra, mas encontra-se mesmo assim todos os dias às onze horas da manhã em espírito repetindo três palavras: “Chico – Diane – Paraíso”. Em Moonrise, de 1948, a personagem interpretada por Dane Clark, Danny Hawkins, é constantemente assombrada pelo destino do pai enforcado, facto que os seus conterrâneos nunca o deixam esquecer, temendo a cada passo e a cada premonição acabar como ele. Em I've Always Loved You, de 1946, as personagens de Philip Dorn e Catherine McLeod separavam-se depois de um concerto em que ele tentava abafar o piano dela com todos os instrumentos da sua orquestra como se os dois se batessem ou fizessem sexo, encontrando-se noutro momento transmigratório e telepático pela música que tocavam e como se se pudessem ouvir um ao outro, apesar de quilómetros os afastarem. Em Tempestade Mortal, de 1940, o mal nazi nascia numa taberna em confrontos palpáveis entre a acção e o silêncio, entre o medo e a razão – com certeza a ilustração mais verdadeira para com a experiência interior dos alemães que se recusavam a sucumbir a esse mal e tinham que pagar por isso. 
 
Foi precisamente com Tempestade Mortal que Frank Borzage terminou o que se pode considerar uma trilogia, começada com Little Man, What Now?, de 1934, e continuada com Three Comrades, de 1938. Pouco depois de Adolf Hitler ter sido nomeado chanceler na Alemanha por Paul von Hindenburg (e Tempestade Mortal lida frontalmente com as consequências imediatas dessa nomeação), Borzage foi o primeiro a virar-se para o velho continente, sob a égide de Hans Fallada (autor de Kleiner Mann, was nun?, base para o filme de '34) ou Erich Maria Remarque (autor de Drei Kameraden, base para o filme de '38), cronistas exemplares da Alemanha da República de Weimar e da que tragicamente lhe seguiu, para descrever as batalhas internas e externas de seres humanos assolados primeiro pela pobreza e pela fome e depois pelas perseguições políticas, religiosas e raciais do Terceiro Reich, não sucumbindo (nem na morte, porque afinal é de Borzage que estamos a falar) apenas por uma fé milagrosa e tocante no amor, na amizade e na bondade dos seus semelhantes. E não é só a Alemanha que aproxima estes filmes, já que são todos interpretados por Margaret Sullavan, diva silenciosa desses anos de divas tão ruidosas ("se pertence à família dos grandes sopranos líricos (...) distingue-se delas simultaneamente por uma fragilidade mais secreta e um erotismo mais exposto", escreveu sobre ela João Bénard da Costa) e que ainda trabalhou com Borzage em The Shining Hour, fabuloso filme em que a sua personagem se vai revelando aos poucos o centro de tudo e de todos, iluminando as restantes, bem como as suas relações, só com a força dos seus sentimentos. 
 
Não deixa de impressionar como Borzage arranja forma de contar, nesses três filmes, as histórias que sempre contou, de descrever os arcos sentimentais que sempre descreveu, revirando o mundo do avesso para encontrar esses seres frágeis que "torna grandes pelo amor e pela adversidade" (como diz uma das legendas de O Anjo da Rua, um dos seus filmes mais famosos dos anos da Fox), sob a luz da sua bondade e da sua fé inabalável no ser humano. Não deixa de impressionar, também, como Borzage utiliza o estúdio para descrever a realidade, o que parece uma contradição em termos mas que em Borzage se torna a forma privilegiada de ilustrar o mundo interior das suas personagens, como o prova o mágico e misterioso final da Tempestade Mortal, em que um cenário é iluminado e escurecido para tornar palpável a transformação dentro dum homem que tinha sido seduzido pelas retóricas do nacionalismo. Quando saímos da casa, a sua culpa inflamada pela memória de tempos mais simples e pelo papel que teve na morte daqueles que amava transforma-se numa plataforma para o outro mundo, para o desconhecido. Voltamos às transfigurações e às transmigrações, como no final dos Três Camaradas, que talvez nos diga que se a lembrança dos mortos é condição para estes não morrerem, é condição maior para os vivos conseguirem (ou suportarem) viver. Em Liliom, de 1930, Charles Farrell descreve a Rose Hobart o comboio que só ele e nós vemos a atravessar o cenário para o levar a prestar contas ao Criador e voltar para se redimir dos seus pecados da forma mais insólita e inesperada possível. O coração sabe o que quer e pode ver verdades e amores profundos escondidos em acções aparentemente mal-intencionadas e egoístas. Em Borzage, todos têm redenção. 

Moonrise, último filme antes dos grandes interregnos dos anos 50 (apenas duas longas-metragens e três episódios de meia hora rodados por Borzage para a série “Screen Directors Playhouse”, quando antes não falhava a marca de um filme por ano – dos tempos idos do cinema mudo até 1948, ano de estreia de Moonrise), foi filmado inteiramente em estúdio na Republic Pictures, usando mais uma vez do máximo artifício para imprimir a máxima realidade. Se todos os filmes de Borzage são povoados de heróis que sofrem as maiores reveses numa busca incessável por uma luz redentora, ilustrando sempre esse percurso, Moonrise talvez seja (com 7th Heaven e O Anjo da Rua) a apoteose dessa ilustração, dos bosques nocturnos, sinistros e cerrados do início do filme à luz final na clareira de todas as resoluções. Citado no livro de Hervé Dumont sobre o cineasta (Frank Borzage: The Life and Films of a Hollywood Romantic), um dos seus colaboradores, Joseph Ruttenberg, admite que "embora nos filmes dele nunca pareça, Borzage trabalhava imenso no aspecto técnico; delineava os seus planos e a sua iluminação com imenso cuidado, e era muito prestável para todos os técnicos, preparando tudo de antemão." 

7th Heaven foi rodado no cenário de Aurora, de F.W. Murnau, também com Janet Gaynor. Os filmes eram para ser rodados mais ou menos na mesma altura, mas a Fox interrompeu todas as outras rodagens para os seus realizadores estudarem os métodos do cineasta alemão recentemente trazido para a América. Borzage esteve lá e prestou muita atenção aos movimentos de câmara, às construções de cenários com camadas múltiplas, a utilização de miniaturas e falsas perspectivas, passando depois dois meses em Paris com o irmão e trazendo centenas de desenhos e fotografias da sua viagem para ajudar a modelar o seu cenário. “Para o Charlie [Farrell] e para mim, [os cenários eram] um lar mais até do que a nossa casa,” disse Janet Gaynor a Kevin Brownlow em 1976. “Mal podíamos esperar por estar lá às nove horas. E saíamos a que altura fosse – sabe, trabalhava-se até o realizador nos dispensar. Não havia horas. Ora, para mim, eu simplesmente ia para casa e ia para a cama, estava tremendamente cansada, mas adorava aquilo e mal podia esperar por voltar na manhã seguinte... O chefe do estúdio [Winfield Sheehan] disse que se se conseguisse o intelecto de Murnau e o coração do Frank, ter-se-ia o realizador perfeito.”[1]
 
Sempre se disse que Borzage era o cineasta do amor. Mas como filmou ele o amor? Sabe-se há muito tempo que o cinema não é uma transposição literal das palavras que estão escritas num argumento, que as suas páginas não podem nem sequer dar uma ideia, por mais pequena que seja, do que será o resultado final. Porque se dessem, não valia a pena fazer os filmes. E por isso os grandes cineastas se aventuraram em pequenas e grandes descobertas durante a rodagem, às vezes com grandes custos para as suas carreiras. Por uma luz diferente, nunca filmada, nunca tentada, nunca criada, nunca descoberta. É trabalho custoso mas necessário para fazer ressaltar o que se acredita ser a verdade da cena, para diluir a técnica e o talento em emoção. Além de deter a chave de tudo isto, Borzage era também o mais humano dos profissionais, uma excepção notável num meio tão competitivo e sem tréguas como o do cinema. Um exemplo para qualquer aspirante a cineasta. Nas palavras de Hervé Dumont, "passeando pelo seu plateau, poder-se-ia pensar que Borzage nunca encontrou dificuldades. Raros são os que o viram zangar-se: quando estava enervado, saía e fumava um cachimbo lá fora. Arranjava sempre um momento para conversar com toda a gente e diz-se que tratava o ajudante do electricista com o mesmo respeito que o chefe do estúdio. Contrariamente a Preminger, não gritava nem apressava ninguém. Borzage dispensou a coreógrafa Albertina Rasch do plateau de I Take This Woman (1939) por ter gritado e praguejado. A sua calma proverbial era contagiosa, abundavam as piadas e o bom humor. Encorajava os jogos de cartas e truques de magia entre takes, e disse que retirava tanto prazer de filmar que queria que as pessoas partilhassem da sua alegria." Amor com amor se paga.

[1] in “Hollywood: A Celebration of the American Silent Film”, de Kevin Brownlow e David Gill, mini-série em treze episódios produzida pela Thames Television e difundida na ITV.
 


sexta-feira, 7 de julho de 2023

301ª, 302ª e 303ª sessões: dias 11, 13 e 14 de Julho às 21h30


Borzage, Ângelo e Honigmann, esta semana no cineclube. 

Na continuação das celebrações da sua tricentésima sessão, o Lucky Star – Cineclube de Braga vai exibir três filmes durante a próxima semana no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva: A Hora Suprema, de Frank Borzage, Morada de Eva Ângelo e O Olvido de Heddy Honigmann. 

A Hora Suprema será exibido na terça-feira às 21h30, estando marcadas as sessões de Morada e O Olvido para quinta e sexta-feira, respectivamente, à mesma hora. Estas últimas duas sessões contarão com a presença da realizadora Eva Ângelo, que para o seu filme Morada será acompanhada por Rosa Cabecinhas, professora e investigadora na Universidade do Minho. 

O filme de Borzage a exibir na terça-feira é protagonizado por Charles Farrell e Janet Gaynor, naquela que é a sua primeira colaboração. Farrell interpreta Chico, um rapaz que trabalha nos esgotos de Paris e sonha tornar-se um dia varredor de rua, e Gaynor interpreta Diane, uma rapariga que é obrigada a ganhar a vida como prostituta e é agredida pela irmã. 

Com o título original de 7th Heaven, a alcunha carinhosa por que é tratado o pequeno sótão de Chico ao longo do filme, A Hora Suprema foi nomeado para cinco Oscars na primeira edição dos Prémios da Academia, vencendo os de Melhor Argumento Adaptado, Melhor Realizador para Borzage, e Melhor Actriz para Janet Gaynor, também pelas interpretações em Aurora de Murnau e O Anjo da Rua do mesmo Frank Borzage. 

A exibir no dia 13 de Julho, Morada, de Eva Ângelo, é um documentário sobre um grupo de cineclubistas que partilham as suas histórias de espectadoras de cinema na cidade do Porto, associando-se actualmente para continuar a ver cinema e ter aulas de várias disciplinas num espaço que reclamaram à cidade. 

Eva Ângelo é realizadora, montadora e designer. Nasceu nas Caldas da Rainha em 1977 e dedica-se ao documentário desde 2005. Água, de 2010, foi exibido pelo cineclube de Braga o ano passado, a propósito dos Encontros da Imagem, também com a presença da realizadora. 

A sessão de dia 14, O Olvido, marca o regresso da realizadora Heddy Honigmann, falecida em maio do ano passado, à cidade onde nasceu: Lima, no Peru. Uma cidade esquecida em que os contrastes são grandes e a corrupção impera. 

As sessões do Lucky Star ocorrem às terças-feiras e, excepcionalmente este mês, na segunda quinta e sexta-feira, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Bons filmes!

quinta-feira, 6 de julho de 2023

Lucky Star (1929) de Frank Borzage



por António Cruz Mendes

Tal como um funâmbulo, o melodrama percorre um cabo lançado sobre um abismo. Pode vencê-lo e ser sublime ou despenhar-se e tornar-se ridículo. Borzage, em Lucky Star, ganha esse desafio. Em seu auxílio, vão estar Janet Gaynor e Charles Farrell. Vamos voltar a vê-los, neste ciclo que dedicamos a Borzage, em A Hora Suprema e O Anjo da Rua. Juntos, fizeram mais nove filmes e eram, à época, os “America’s favorite lovebirds”. 

Mas, pode um paraplégico, apenas movido pela força da sua vontade, levantar-se da sua cadeira de rodas e, depois de várias quedas e com a temporária ajuda de umas muletas, ser capaz de caminhar sobre a neve para resgatar a sua amada de um destino infeliz? Quem já viu A Palavra, de Carl Dreyer, sabe que, pelo menos no cinema, os milagres são possíveis. Toda a obra de arte contém um elemento retórico. Saber usar os recursos de que um meio artístico dispõe para convencer o público da sua verdade é o repto do artista. A magia de Borzage está em fazer-nos aceitar como possível, por ser tão desejada, a reunião de Tim e Mary, no preciso momento em que ela se prepara para partir com Wrenn, sacrificando a sua felicidade ao bem-estar da família. Como poderia terminar de outra forma esta história de amor banhada de ternura e casta sensualidade? 

A relação entre os dois começa pelas valentes palmadas com que ele a castiga por causa de uma pequena vigarice. Mais tarde, ela vingar-se-á desse castigo partindo à pedrada uma janela da sua casa. Mas, Tim, isolado e preso a uma cadeira de rodas, acolhe com simpatia aquela miúda selvagem, mas de bom coração. Afinal, não foi ela que lhe escreveu para a trincheira a desejar-lhe boa sorte e a oferecer-se para lhe tricotar umas meias? E ela descobre, nessa casa limpa e ordenada, e no sorriso amigável do seu anfitrião, um mundo que lhe era estranho. Ela pergunta-lhe: "o que aconteceu às suas pernas?”. “Nada”, é a resposta: “estou a poupá-las para uma ocasião especial”. E lava-lhe as mãos e oferece-lhe um lenço para que não volte a precisar de limpar o nariz na manga do vestido. Quando ela se vai embora, promete-lhe voltar amanhã e no dia seguinte e todos os dias. 

Tim entretém-se a “consertar coisas” e ambos, ele e Mary, têm algo que precisa de ser consertado. Mary, pequena e suja, está habituada a recorrer a expedientes pouco correctos para garantir a sua sobrevivência, e ele próprio regressou estropiado da guerra. Os dois começam por se aproximar por curiosidade, depois, por simpatia. Mais tarde, um sentimento mais forte começa a uni-los. O bracelete que Tim oferece a Mary parece-lhe “um grande anel de noivado”. Na cena em que Tim lhe lava a cabeça, descobrindo que, afinal, os seus cabelos são louros, franqueia-se um limiar. E, quando se prepara para lhe lavar as costas (“afinal, quantos anos tens?”), recua pedindo-lhe para o fazer ela própria no regato próximo da casa. 

Não resisto a transcrever, do belíssimo texto que João Bénard da Costa escreveu sobre Lucky Star, a parte em que ele se refere a esta passagem do filme, na sua opinião, a sua sequência mais genial: “Começa com um balde. Tim decidiu dar um banho a Mary e a limpar de vez a imagem e o corpo dela. E são ovos o que usa para essa ablução, que a transforma também de morena em loura. À medida que a espuma aumenta e que a vergonha e a aflição de Mary crescem, sela-se a relação física entre os dois, sublinhada pelo plano magistral em que vemos a quantidade de cascas de ovo partidas. Tim começa a descer no corpo de Mary, que se lhe oferece. Mas, a dada altura, a evidência do corpo de mulher sobrepõe-se à da criança que até então vira nela. Detém o gesto de a despir e manda-a, para a profundidade de campo, continuar o banho que já não é capaz de lhe dar. Borzage abre, de novo, todo o espaço, para nos dar a entrever um pouco do corpo nu de Mary e um pouco do olhar que Tim não resiste a lançar sobre ela. E, desse banho, Mary sai mulher”. 

A transfiguração de Mary está completa quando ela se veste em casa de Tim para ir ao baile que se vai realizar no salão dos bombeiros. Mas, aí reaparece Wrenn. Conhecemo-lo desde uma das primeiras cenas do filme, quando se confronta com Tim no alto de um poste eléctrico que têm de reparar. Mary é já o motivo dessa disputa. 

Wrenn é um rufia, arrogante e mentiroso. Na guerra, é ele que envia Tim para a missão que o deixará paralítico. Não podia ir ele próprio porque tinha de ir visitar “umas damas”. A melhor forma de conquistar uma mulher, confidencia a um soldado, é prometer-lhe casamento e “prometer não custa nada”. Antes disso, tinha mostrado a Tim uma carta de Mary semelhante àquela que ele recebera. Nessas breves cenas, onde, da guerra, só percebemos o clarão das explosões, podemos antecipar o drama que se vai seguir. 

Dois anos depois, Wrenn expulso do exército, pavoneia-se fardado na sua terra, onde seduziu uma rapariga. No baile, vai abandoná-la, enfeitiçado pela beleza de Mary. Repudiado por ela, passa a insinuar-se junto da sua mãe como alguém que, desposando-a, poderá tirar a família da miséria em que vive. A Sra. Tucker rende-se a essa esperança e o futuro de Mary parece estar decidido quando o milagre acontece e o amor triunfa. 

A história baseia-se num pequeno conto de Tristan Tupper, Três episódios da vida de Timothy Osborn, mas o argumento do filme altera-o significativamente. No conto, Tim, ferido na guerra, regressa a casa onde conhece uma rapariga rica e outra pobre, com quem acaba por casar. No filme, a rapariga rica desaparece e o final é completamente diferente. 

Se hoje podemos ver Lucky Star, isso deve-se a um acaso também, ele milagroso. O filme foi realizado na altura em que surgiram os primeiros filmes falados e, para poder acompanhar essa novidade, a produção encomendou, à pressa, uma versão com poucos diálogos e alguns efeitos sonoros para o mercado norte-americano. Parece ter tido pouco sucesso. No estrangeiro, foi distribuída uma versão muda. As duas foram consideradas perdidas até que uma cópia do filme mudo foi redescoberta, em 1990, nos arquivos do Museu do Cinema de Amesterdão, no meio de outros filmes antigos. A partir da versão holandesa e do roteiro original, foi possível reconstituir os intertítulos e o filme de Borzage “ressuscitou”. 

Quando o João Palhares e o José Oliveira fundaram este cineclube, decidiram baptizá-lo com o nome do filme de Borzage que hoje vamos ver. Das suas razões, caberá a eles falar. Mas, tendo em conta a simpatia de todos os que nos visitam e apoio dos nossos associados, parece-me que também o nosso cineclube nasceu sob a luz de uma estrela ditosa.