sábado, 29 de junho de 2019

João Bénard da Costa: Outros Amarão as Coisas que eu Amei (2014) de Manuel Mozos



por José Oliveira

“I always contradict myself” é grito que só pode ser percebido na assustadora dimensão do escuro, pelas tais horas propícias a questões soturnas. João Bénard da Costa: Outros amarão as coisas que eu amei é mais uma invenção de Manuel Mozos, sem género e sem amparo, que tanto se aproxima do fantasmático Ruínas como dele se desvia por completo em dimensão ao retorno e à matéria. Um todo sem princípio nem fim, de corpo presente. A operação é delicada mas é levada até às últimas consequências, sem remorsos ou suplícios existenciais, e consiste em chamar JBC do outro mundo que ele tantas vezes vislumbrou ou quis entrever para este nosso. Elidir as regras e as fórmulas mortais, deixar circular a morte como único tema possível, assomar o amor como o seu par e a sua superação, para tudo convergir e se fazer uno no único centro inexorável – o tempo. Esse centro que nos cerca, nos devora e nos devolve, como nos diz um ou mais filmes de fidelidade e desassombro que por lá passam e aglutinam irremediavelmente toda a contradição; esse tempo a que nós não perdoámos, escreveu JBC. Mais do que gestação, vida, morte e ressurreição, trata-se de sair dessa imemorial e curta ciência para se entregar à eternidade. E Manuel Mozos, generoso e radical como sempre, mete-se literalmente dentro, até ao fundo, até ao fim da fita que a moviola desenrola organicamente. Em frente às imagens moventes e aos sons transcendentes de meia dúzia de filmes que chegam para tudo, pelas tintas e frescos só à primeira visão fixos de todos os pontos cardeais, nas luzes e nas sombras das palavras e das suas ligações subterrâneas e límpidas, do fulgor de Verdi ao fulgor de Minnelli, em paisagens de moradas e de afectos, Mozos olha o que JBC olhou, colhe, disponibiliza-se, tenta perceber, amar muito do que ele amou. Jamais pose de egocentrismo mas sim de humildade e continuação, ilumina-se pela luz que JBC escolheu para o moldar, ao seu interior e ao seu exterior como nos ditos de Jorge Luis Borges que escutámos, luz essa que nos pode iluminar a nós do outro lado do ecrã para lá da vicissitude e das aparências. Memória, dádiva, vida, será o movimento essencial e o apelo à importância de cada um, de cada ser, de cada herança. Relativização da hierarquia balofa a favor da natureza convulsa, abertura ao que nos ultrapassa ao invés do ridículo da imposição. O sagrado do conhecimento, essa poesia que nos chega de algures ou nenhures de outro tempo, finalmente, a beleza que importa e que aqui inunda. Numa montagem que em infinitas correspondências secretas e consanguinidades ineludíveis liga a tempestade do deserto de Nicholas Ray às ondas da Arrábida, que funde para sempre a Cinemateca Portuguesa aos fantasmas e às carnes de quem nela soube habitar e dar a ver, nunca por nunca estamos à beira da cinefilia barata – essa ordenação da vida por filmes ou essa falta de ambição – mas antes se escava desde os escombros mais sensuais do que funéreos, ou sensuais porque aceite a condição funérea, das latas de película ou dos altares dos mortos até à imensa panorâmica final em que o etéreo e o vazio são preenchidos por Sophia de Melo Breyner, por essa certeza de que os amanhãs permanecerão cantantes. Forma que aceita todas as expressões, conteúdo seguro de si por toda a prova. 

Escrito para o Cineclube do Porto em 2015.

terça-feira, 25 de junho de 2019

135ª sessão: dia 27 de Junho (Quinta-Feira), às 21h30


Para terminar o nosso ciclo dedicado ao programador, actor, escritor e cinéfilo extraordinário que foi João Bénard da Costa, vamos exibir o documentário que Manuel Mozos, cineasta português que o conheceu muito bem, lhe dedicou em 2014: João Bénard da Costa: Outros Amarão as Coisas que Eu Amei será então a nossa próxima sessão na Casa do Professor.

Em entrevista a Ana Isabel Fernandes, para a Delfos, e sobre o processo de selecção de excertos do grande espólio escrito de Bénard da Costa para o filme, Mozos disse que "não foi fácil porque ele tem muita coisa escrita. Eu e outra pessoa que trabalhou comigo, o Luís Nunes, (o assistente de realização e depois de montagem que trabalhou na investigação e pesquisa de todo o espólio do João), começámos por ler o que ele deixou e, a partir daí, fizemos uma espécie de planificação sobre os assuntos que ele abordava. Havia textos só de pintura ou sobre cinema, sobre algum autor literário ou de carácter filosófico ou moral. Primeiro, fizemos essa selecção embora, em alguns textos, se encontrem mais do que um assunto ou mais do que algum tema. Depois, há medida que íamos avançando também nas filmagens, íamos escolhendo os textos que nos pareciam mais importantes para com o que queríamos com o filme. Ao escolhermos determinados excertos de determinados filmes, fomos buscar mais os textos que diziam respeito a esses mesmos filmes. Havia outros sobre os quais ele escreveu, mas fomos pondo de parte. Foi nessa progressão, digamos, que fomos fazendo a selecção dos textos e, obviamente, mesmo até à última houve muitas coisas que tenho pena de não estarem no filme. O cinema, contudo, também é assim, tem de se tomar opções. Aqueles que estão no filme são aqueles que achámos mais interessantes e mais correctos para o que pretendíamos."

Por alturas do lançamento do filme em sala, Inês Lourenço, autora do programa A Grande Ilusão da Antena 2,  escreveu que "estreia finalmente o documentário de Manuel Mozos que encheu a sala principal do Cinema São Jorge, na última edição do Festival Doclisboa. João Bénard da Costa é a figura incontornável deste labor memorialista, que não obedece em demasia a uma conotação biográfica. Além da afluência de espectadores, o que pairou no final dessa sessão foi qualquer coisa de inefável. Como o era, aliás, tudo o que o gosto arrebatado e poético de Bénard da Costa nomeava.

"Seguindo por alguns dos seus escritos, lidos em voz off - peças de estilo inconfundível, que criavam literatura em torno de um filme ou de um quadro - Manuel Mozos vai intercalando memórias, lugares e imagens de algumas das obras que João Bénard da Costa confundia com a própria vida. Como se a beleza se tornasse uma propriedade concreta daquilo que o programador e diretor da Cinemateca (por 18 anos) tinha em alta estima. Daí que o verso de Sophia de Mello Breyner Andresen traduza de maneira singular do que trata este magnífico filme: "Outros amarão as coisas que eu amei". Somos compelidos aqui, quase sem nos apercebermos, a fazê-lo."

No seu antigo blog, Some like it cool, Carlos Melo Ferreira diz que "o João Bénard foi uma das grandes singularidades do primeiro século do cinema em Portugal e era importante que a sua memória fosse preservada e transmitida pelo cinema. A sua actividade de grande programador e grande crítico, a esse título grande autor e grande escritor, marcou mais do que uma geração, e urgia que pudesse ser recordada de forma fiel e sistemática pelo próprio cinema. 

"Ora Mozos não é um cineasta qualquer nem um documentarista acidental, tem muito boas provas dadas de persistência e amor ao cinema, o que a investigação investida neste filme e a forma como ele é construído confirma de forma exuberante. De facto, pelas imagens e palavras do próprio João Bénard da Costa é toda uma vida apaixonada e todo um pensamento apaixonante que não se ficaram pelo cinema que nos são restituídos, com o comentário do belíssimo poema da Sophia dito pela Ana Maria."

Até Quinta!

sexta-feira, 14 de junho de 2019

Apresentação de "Frágil como o Mundo", por Rita Azevedo Gomes

Frágil como o Mundo (2001) de Rita Azevedo Gomes



por Luís Miguel Oliveira

TERROR DE TE AMAR 

Um amor adolescente, sem tempo e sem espaço, foge para a floresta encantada dos contos de fadas. Frágil como o Mundo, de Rita Azevedo Gomes, também é assim: singular e solitário. Mas as suas razões para existir estão expressas em cada plano. 

Frágil como o Mundo é a segunda longa-metragem de Rita Azevedo Gomes, mais de dez anos depois de O Som da Terra a Tremer, uma primeira obra que nunca conheceu estreia comercial nem conseguiu furar uma reduzidíssima visibilidade. Frágil como o Mundo será, portanto, para a generalidade do público, a descoberta de um universo próprio e original - pelos caminhos percorridos por Rita Azevedo Gomes neste filme, talvez só tenha andado algum João César Monteiro. 

Frágil como o Mundo traz um universo feito de uma fusão de imaginários, onde se misturam o romantismo sofisticado e as lendas populares, o cinema e a poesia, a realidade e o sonho. É um filme que inventa um tempo e um espaço - "o cinema é o sítio certo para representar a coexistência das pedras e dos fantasmas", diz a realizadora, e essa coexistência é das impressões mais fortes que o filme deixa. 

A história contada é a de um amor adolescente, um rapaz e uma rapariga que gostam um do outro mas não podem estar juntos, pelas mais diversas razões. Vêem-se, também eles, obrigados a "inventar" um tempo e um espaço - uma espécie de fuga para a floresta, encantada como nos contos de fadas. Mas também isso deixa de ser suficiente, e tudo tem que passar para um tempo e um espaço já para lá de qualquer realidade física, já para lá dos corpos: a morte, como território de sonho, como lugar de uma harmonia finalmente tornada possível. 

Diz Rita: "Este filme já andava a trabalhar comigo há muitos anos. Talvez desde 1993, através dum recorte de jornal. Uma notícia sobre um casal de miúdos que apareceu morto, com uma fotografia enorme de uma azinheira no Alentejo - aparentemente não havia nenhuma razão para eles se matarem, portanto não havia nenhuma resposta, ficava tudo em suspenso. Não havia sangue nem qualquer sinal de violência. Havia um enigma, um mistério". 

E "a partir daí, claro que tudo vem ter connosco". 

Encontros. "Tudo vem ter connosco" - para Rita Azevedo Gomes Frágil como o Mundo é um filme feito de "encontros" ("como na vida, os encontros dão-se ou não se dão"). Encontro com memórias pessoais, encontros com "coisas" que a acompanhavam e a acompanham desde há muito. Como a poesia: "O poema da Sophia [de Mello Breyner] que dá nome ao filme também já estava 'escolhido' antes. É do que trata o filme, 'terror de te amar num sítio frágil como o mundo'. São coisas que nos acompanham a vida toda, situações que já vivemos antes de elas realmente acontecerem, como a realidade dos sonhos...". 

Sophia dá o mote para o filme, mas a Menina e Moça de Bernardim Ribeiro também ocupa um lugar fundamental: "Tive a sensação estranha de que Bernardim Ribeiro escreveu isto para mim, para este filme... é um dos tais encontros. Eu sabia o que é que ia dizer, andava à procura de uma voz, e de repente apercebo-me que já estava escrito, pelo Bernardim". 

Mas ainda há o cinema, e se Frágil como o Mundo não é um filme de cinéfilo na acepção mais redutora do termo, se não há "citações" nem piscadelas de olho à erudição do espectador, é um filme que parece conservar uma memória, uma lembrança, de muitos dos filmes de que a realizadora gostou e que a acompanham: um pouco de Werner Schroeter (foi quando viu Eika Katappa, nos anos 70, que Rita Azevedo Gomes percebeu "que o cinema também servia para isto", e mais tarde trabalhou na rodagem de O Rei das Rosas), um pouco de John Ford (a casa dos avós, filmada com aquele sentido de comunidade simultaneamente austero e caloroso), um pouco de A Sombra do Caçador (e de todos os seus ascendentes, provavelmente até chegar a Nosferatu), um pouco de Elia Kazan ("consigo imaginar-me facilmente a sair do Império, tinha 13 anos, impressionadíssima com o Esplendor na Relva"). 

Tudo isto está no filme (e ainda se poderia falar da música e da pintura) como recordações mais ou menos vagas, trabalhadas como se se passassem a inscrever numa simbologia pessoal e intransmissível - o que quer dizer que nunca se sente nem o seu peso nem o peso de uma "caução", mas que tudo se organiza, tudo se torna orgânico e faz parte de um mesmo corpo, indivisível e irredutível em parcelas. Para se perceber bem o que isto quer dizer, atente-se por exemplo nos belíssimos planos do corpo da rapariga a boiar rio abaixo, enquanto a narração em "off" diz um excerto de Bernardim Ribeiro. 

Perdas. Ao mesmo tempo, Frágil como o Mundo é marcado por uma fortíssima impressão de perda. O plano inicial, uma panorâmica (ainda a cores, antes de se mergulhar no preto e branco) que "varre" o interior de uma casa em ruínas, remete para um passado longínquo: "Essa panorâmica é uma pergunta: 'onde é que está?'. Não quero acreditar muito que se perdeu, tem que estar algures no meio das ruínas. Como a frase que se ouve mais à frente: 'não sei como será o amor daqui a mil anos', mas será. Não acredito que as coisas se percam, acho que há é um esquecimento, como se estivéssemos esquecidos de alguma coisa". 

Um filme sobre a memória, sobre a necessidade de lembrar para recuperar? "O cinema é o sítio certo para isso", volta a dizer Rita, e Frágil como o Mundo lança-se, a partir desse plano inicial, numa espécie de tempo suspenso, que ou não é tempo nenhum ou é o tempo todo; é um tempo de cinema, desordenado e virado do avesso, um tempo que tem a mesma realidade do tempo dos sonhos e do tempo das memórias. "O que é que é mais verdade?", pergunta Rita, "a lenda da princesa moura ou a pedra onde se sacrificavam carneiros? É importante que o filme seja a preto e branco, como maneira de fazer coexistir, ou de reunir, essas duas realidades". 

Aparentemente, Frágil como o Mundo também é um filme onde existe uma relação com as coisas bastante mais serena do que em O Som da Terra a Tremer. "Uma relação mais serena, não sei. Talvez haja maior consciência... Por um lado, será mais sereno, por outro levanta outra vez um turbilhão de coisas que estava em repouso. Uma maior consciência do que estava a fazer, das relações entre as coisas que estava a trabalhar. Neste aspecto há um olhar diferente, tenho mais a noção do que é que estou a ver". 

Para a realizadora, os dois filmes são obviamente diferentes, mas mantêm uma relação estreita: "Têm a ver comigo, têm a ver com a minha evolução por um lado e com a minha estagnação pelo outro. Não os desligo, nem percebo o que são os dez anos entre os dois. Havia uma espécie de chaga aberta em relação ao outro, que ficou um bocado apaziguada por ter feito este. Uma chaga que tinha a ver com o que aconteceu ao filme, mas não só; também tinha a ver com as questões que estavam nele. Havia coisas que, por um lado, ganhavam distância, mas por outro não me largavam, como alguém que nos morreu mas que ainda cá está". 

Talvez seja essa "maior consciência" aquilo que permite que Frágil como o Mundo ouse entrar nos terrenos mais delirantes, optar pelas soluções mais arriscadas, sem nunca perder o pé e sem que nunca se esvaia a sensação de uniformidade e de justeza - como na formidável série de planos em que, por intermédio das mais elementares e ancestrais trucagens (fundidos e sobreposições), se inventa um mundo de flores e de fantasmas. 

"Eu sei porque é que as coisas lá estão. Há uma razão minha, pode ser completamente solitária e não servir para nada, mas há uma razão minha" 

Quanto ao filme, também não há dúvida que é completamente solitário, e provavelmente vai sofrer por isso. Mas as suas razões para existir estão expressas em cada plano. E há-de haver gente a quem essas razões sirvam para alguma coisa. Isso, somos capazes de apostar.

in “Terror de te Amar”, Ípsilon, 20 de Julho de 2001.

quarta-feira, 12 de junho de 2019

134ª sessão: dia 6 de Junho (Quinta-Feira), às 21h30


Nesta segunda semana de Junho veremos João Bénard da Costa como actor (sob o pseudónimo de "Duarte de Almeida", o nome que usava sempre que era convidado para entrar num filme) em Frágil como o Mundo, o segundo filme realizado por Rita Azevedo Gomes. O título vem de um poema assinado por Sophia de Mello Breyner Andresen, Terror de Te Amar, que fala do "terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo", do "mal de te amar neste lugar de imperfeição / onde tudo nos quebra e emudece / onde tudo nos mente e nos separa". É a nossa próxima sessão na Casa do Professor.

Em entrevista a Alberto Hernando para a revista digital galega A Cuarta Parede, este ano, Rita Azevedo Gomes disse que "eu nunca estabeleço fórmulas. Vou sentindo, como se estivesse a compor música que ainda não conheço, até dar com ela. Pelo menos no meu caso, vai-se construindo à medida que se vai criando. E por muito que se tenham as coisas previstas, pode mudar tudo. Pode acontecer qualquer coisa a uma situação, na rua, com os actores, e pode-se chegar a tomar decisões muito inesperadas que não se tinham previsto. Havia uma cena em Frágil Como o Mundo (2001) para a qual a equipa me perguntava sempre: Quantos planos vamos fazer amanhã?” (equipa de loucos que quer saber tudo! Eu não sei). No final disse-lhes: “São doze planos”, e no dia seguinte começamos a filmar e vi que tinha de ser um plano único. 

"O cinema é tempo. Um plano é tempo com uma duração determinada: começa aqui e acaba ali. A ilusão do tempo é uma coisa muito estranha no cinema. Pode-se ter a sensação de que passaram horas e só foram 10 minutos. O tempo é uma invenção do homem, que o começou a marcar e a cortar em meses e em anos e em horas. Mas o que é o tempo para os animais? Eles não se fazem essa pergunta, vivem no aqui e no agora. O tempo e a realidade são coisas que não entendo, por isso me interessam. A realidade também é muito complexa, e talvez as histórias nos ajudem a explicá-la, por isso temos a necessidade de as contar."

Na pequena introdução à entrevista que fez à realizadora em 2017, publicada na revista chilena laFuga, Iván Zgaib disserta sobre o mistério provocado pelas suas obras, confessando que "mal posso começar a descrever o que senti quando vi Frágil Como o Mundo (2002), um dos filmes realizados pela portuguesa Rita Azevedo Gomes. Talvez tenha sido a emoção de estar a olhar para algo difícil de classificar, como uma espécie de ovni cinematográfico que aparecia na tela: misterioso, hipnotizante, cativante. Se não o tivesse sabido antes, provavelmente não teria imaginado que este filme se fez no ano de 2002. Há nele uma potência poética e uma carga emocional que o empurram, nalgum momento, para um universo atemporal; é eterno ao mesmo tempo que aponta, quiçá sem o querer, um caminho possível para o cinema contemporâneo.

"A própria história do filme desenvolve-se numa época indefinida, em que a atenção está posta em dois adolescentes que fogem de suas casas para preservar e proteger o amor que os une. Ainda que nunca fique totalmente claro qual é a ameaça em concreto, todo o filme se reveste de uma angústia alimentada pela monstruosidade do tempo: os adultos fazem perguntas a si mesmos sobre as suas decisões e experiências passadas, enquanto os jovens temem que a vitalidade do amor deles encontre alguma força estranha que a faça em pedaços. Daí, Rita Azevedo Gomes filma com delicadeza um mundo repleto de belezas que podem desaparecer de un momento para o outro; a neblina que serpenteia entre as casas e os bosques vai-se apoderando lentamente da imagem, como um mau augúrio que antecipa o fim das personagens. É essa sensação de urgência adolescente que converte parcialmente o filme numa fábula infantil, uma tragédia shakesperiana e uma aproximação moderna sobre a imagem e o som."

Já Carlos Melo Ferreira, num texto de 2006 re-publicado em 2012 no seu blog, escreve que "há ocasiões em que o cansaço das imagens desaparece, e é quando alguma coisa de primordial, de primitivo as atravessa para se nos cravar nos sentidos e na memória. É isso que acontece com a segunda longa-metragem de Rita Azevedo Gomes, Frágil Como o Mundo (2002), filme que se desenrola entre personagens míticas que nos trabalham, nos habitam e em que nós, mais tarde ou mais cedo, nos transformamos. Eu explico-me.

"Frágil Como o Mundo impõe-se quase insensivelmente como uma melopeia sonora, aliás belíssima, composta por palavras de Sophia de Mello Breyner, Agustina Bessa-Luís, Luís de Camões, nomeadamente. Só por si, essa bela melopeia transforma-se em melodia fundamental e fundadora de uma condição humana, tal como ela pode ser enunciada em português. Mas, embora eu suspeite de que o filme quase delas pudesse prescindir, as imagens surpreendem vivamente, elas também. Na verdade, a câmara de mestre Acácio de Almeida cria um mundo assombroso de imagens, com um tratamento cortante do preto e branco que o faz parecer único, concebido especialmente para este filme. Umas vezes invadida por indecisos cinzentos, outras vezes puxando o contraste até arestas de aço, a imagem que nos surge aqui é a de um mundo fantástico, de um conto de fadas que se quer reflexo fiel dessa condição humana enunciada pelas palavras em português. Reflexo condensado e deslocado, como aquele que o sonho em nós desperta, à semelhança do que faz o filme, como Christian Metz mostrou/demonstrou num texto célebre."

Até Quinta-Feira!

sexta-feira, 7 de junho de 2019

Apresentação de "A 15ª Pedra", por Rita Azevedo Gomes

A 15ª Pedra (2007) de Rita Azevedo Gomes



por João Palhares

Nesta conversa em que o decano Manoel de Oliveira e o eterno aprendiz João Bénard da Costa trocam aforismos durante perto de duas horas, em que a instigadora de toda a empresa se limita a dizer “quando quiserem” ao princípio e “o Dreyer” quando Oliveira se quer lembrar de Murnau (o realizador portuense dá uma falsa pista quando diz “o realizador do Vampiro”), a pergunta inicial é “como representar a vida?”. Começa-se então pelo princípio, pelos irmãos Lumière, propondo-se como arquétipos de duas correntes distintas o La sortie de l'usine Lumière à Lyon e o L'arrivée d'un train à la Ciotat. A partir daí, as possibilidades são infinitas. E o que marca a transição entre os diálogos sobre encenadores que explicam aos seus funcionários como devem sair da fábrica e as gamas de cores invisíveis com que se poderiam filmar a alma – entre as coisas e as ideias, portanto – é o relato da décima quinta pedra no templo zen de Ryōan-ji, em Quioto, apenas vista pelo coração. Objectos que se escondem a si próprios, quinze pedras alinhadas de forma a que se vejam apenas catorze de todos os ângulos. A impotência de quem percebe que a realidade ou a verdade às vezes também nos pregam partidas. Foi a intuição certa para organizar um dia de conversa numa direcção lógica, em que nos são dissecados inclusivamente os vocábulos que formarão o discurso posterior, pelo Sr. Oliveira: “imagem”, “palavra”, “tempo”... 

“O João tinha duas fases,” diz Rita Azevedo Gomes a propósito de João Bénard da Costa[1], “uma muito fechada, numa esquina, com uma esferográfica (sempre com um marcador), a fazer uma letra que ninguém conseguia ler, era uma espécie de coisa secreta. Mas, depois, a alegria com que falava com as pessoas... Não conheço outra pessoa assim. Vinha apresentar um filme e, de repente, era uma explosão de intimidade com as pessoas: punha-nos tão próximos que quase me sentia no colo dele quando falava connosco. E, depois, tinha uma particularidade (que está um bocado presente no filme): era muito familiar, como se estivesse a falar com os netos dele ao lado da lareira ou sentados à mesa. Dizia coisas muito importantes, mas com o mesmo ar de quem fala sobre o que se vai comer ou do passeio que se vai fazer... E tinha essa alegria de pôr as coisas todas no mesmo nível, cruzava tudo. O Manoel, por seu lado, é uma pessoa do Norte. E aqui também é preciso diferenciar entre o português do norte e o do sul. O Manoel tem uma forma de falar muito religiosa, muito de jesuíta. Às vezes com dificuldade na busca das palavras, mas muito acertado e também com muita ironia. E eles entendiam-se de forma extraordinária. Por isso é que gostei tanto de fazer esse filme: porque assisti aos vários encontros deles, e via-os a aparecerem um diante do outro com a mesma estima e admiração (que não é uma coisa fácil de manter). Não eram pessoas que gostavam ou se relacionavam no sentido de irem juntos de férias. Eram pessoas que se admiravam com uma estima profundíssima, mas sempre cada um no seu sítio. Portanto nunca houve aquela intimidade entre iguais. O Manoel era vinte anos mais velho, é um senhor, e o João era uma criança. Então havia uma cerimónia na relação deles que se manteve intacta e sempre naquele tom, ao longo dos vinte anos em que os vi juntos. E eu queria captar a relação entre os dois, como mantêm esse gostar um do outro, essa estima inquebrável até ao fim. E essa era a ideia do filme. E, por outro lado, eu sou vinte anos mais nova que o João. Portanto havia três escalões... E, de repente, olhava para os dois, com aquela alegria de se terem encontrado. Agora que penso nisso, dou-me conta de que era como se eles quisessem dar valor à amizade deles acima de tudo. Tinham que a manter intacta, e assim o fizeram.” 

“Deixe-me aí que eu abro,” atira o Sr. Oliveira com a energia dos seus noventa e cinco anos quando Bénard da Costa tenta abrir um papel que tirou do seu bloco de notas (ali estrategicamente colocado por Azevedo Gomes para que a conversa não fosse apenas sobre os filmes do realizador de Vale Abraão – um risco aparentemente muito real dada a admiração da "criança" pelo "senhor"). A resposta é “deixe-me lá ser desajeitado”. E além das palavras sobre a arquitectura, sobre Leonardo da Vinci e Michelangelo, da equiparação dos impulsos artísticos aos impulsos criminosos (é aqui que o Sr. Oliveira volta a dizer que “fazer um filme é como cometer um crime”), do ateísmo como religião, dos paradoxos ou contradições que englobam a arte e a vida, o sagrado e o mundano, a verdade e a mentira, a máxima humildade e a máxima vaidade, as cores quentes mais frias e as cores frias mais quentes, as amizades distantes e as admirações estreitas, de Fritz Lang, de Aristóteles e Molière, de Henry Miller, de Gertrud, de Tiziano e de Vermeer, de Pablo Picasso, de Wagner e Beethoven, de José Régio e da Agustina Bessa-Luís que ainda esta semana nos deixou, o que fique talvez seja o olhar emocionado de João Bénard da Costa a ouvir as palavras do maior realizador português, olhar certamente ali ao lado do das grandes almas emotivas do nosso cinema e da nossa cultura (António Reis e Fernando Lopes, que segundo se diz vertiam uma ou duas lágrimas quando ouviam certas palavras ou diziam certas frases), registando a relação e ilustrando as frases de Rita Azevedo Gomes sobre estes dois grandes homens da cultura portuguesa. Ou sobre estes dois homens. O pensamento, a filosofia e a arte podem ser coisas essenciais à vida, mas os sentimentos, as emoções e os comportamentos de certas pessoas também se devem tentar fazer eternos. As casmurrices adoráveis de uma, a efusividade apaixonada de outra. "Queria captar a relação entre os dois, como mantêm esse gostar um do outro, essa estima inquebrável até ao fim." Não é coisa pouca, não, é um feito.

Se há um grande plano com quinze pedras da eternidade onde só catorze se vejam, talvez seja essa a décima quinta pedra que o coração vê: lembrar os cantores dos grandes pensadores e dos grandes guerreiros da beleza mundana e terrena desses homens. Do João e do Manoel.

[1] in “Sonidos com los ojos abiertos (o continúe describiendo para que yo vea mejor). Entrevista a Rita Azevedo Gomes” por Álvaro Arroba, Cinema Comparat/ive Cinema, nº3, 2013.

terça-feira, 4 de junho de 2019

133ª sessão: dia 6 de Junho (Quinta-Feira), às 21h30


Em Junho, encerramos o ciclo de homenagem a João Bénard da Costa com três filmes em que participa como actor ou cuja vida e cujos textos são o próprio tema da obra. O primeiro vai ser já esta semana e é uma conversa entre Bénard da Costa e o realizador Manoel de Oliveira filmada por Rita Azevedo Gomes, que nos apresentará o filme em vídeo. Em A 15ª Pedra, a nossa próxima sessão, estes dois grandes nomes da cultura portuguesa juntam-se para falar sobre cinema, pintura, a vida e muito mais...

Em entrevista a Álvaro Arroba em 2013 (para a publicação Cinema Comparat/ive Cinema), e sobre Manoel de Oliveira, Azevedo Gomes disse que "(...) o Manoel tem uma coisa muito dele e que lhe vem de dentro. Não é por acaso que filmou assim a primavera, com a cerimónia, o ritual e o teatro… Ele diz muitas vezes que o cinema é o teatro filmado. Eu não sei se é. Acho que o cinema é o cinema. Mas ele parte muito dessa representação. Uma vez, tive uma conversa com ele para um filme que fiz e disse-me que a representação da vida, coisa que também diz em A 15ª Pedra (2007), é aquilo que nos distingue: temos a necessidade de representar a nossa vida, não há outro bicho que se queira representar. Temos esta necessidade de contar, que vem dos Gregos, da oratória e da escrita… A necessidade de narrar feitos heróicos ou dos deuses, a necessidade de transmitir a vida é uma coisa extraordinária e vem tudo daí. O Manoel vem dessa linha directa: da representação, primeiro a oratória, de contar a história. Depois, de representar a história com actores a representar papéis, em vez de ser só um orador. Depois vem o teatro e depois o cinema. Acho que para ele é uma coisa depois da outra. E, portanto, a relação dele é em primeiro lugar com essa origem."

Na mesma entrevista, e sobre as diferenças entre os dois conversadores, a realizadora disse que "também há um aspecto importante e é que o João nunca contradiz o Manoel, nunca se permite pôr em questão o que ele diz, por respeito. Quando fiz o filme não queria fazer perguntas nem entrar em cena, como é óbvio. Mas a dificuldade nessa rodagem era que a conversa não se tratava única e exclusivamente sobre a obra do Manoel. Esta tendência podia ter sido muito natural: a grande entrevista a Manoel de Oliveira, o realizador. Mas não era essa a minha ideia. Queria captar a relação entre ambos e, para isso, tive que ir sugerindo de alguna maneira os temas com que conduzir a conversa. Ou seja, que falassem de pintura, do Japão… para que não ficassem só a falar dos filmes do Manoel. É algo que se conseguiu mais ou menos no filme: contam histórias, anedotas, falam de cinema, falam da vida, enfim… O João tem esse ar muito coloquial de falar, é como se estivesse a comer sentado à mesa e a falar contigo, sabes? Por seu lado, o Manoel não. O Manoel está sempre com mais atenção ao que diz, sempre com humor, também. Além disso, acho que o Manoel, quando ouve o João, já está a pensar no que vai dizer a seguir. É muito perspicaz porque, às vezes, se nos dermos conta, o que ele diz a seguir não complementa. Ele pensa no que é importante dizer a seguir e leva assim a conversa para onde quer. Mas foi esta coisa toda que eu deixei desenvolver e que não se calcula. E depois, também há uma coisa de que não nos podemos esquecer e é que eles estão fartos de falar das mesmas coisas durante toda a vida. No entanto, de repente, o que é interessante no filme, é que acabam por dizer coisas que nem sequer tinham previsto, seja a questão da 15ª Pedra, ou a dos signos de Dreyer e o tempo. E o outro diz «Ah, é verdade, nunca me tinha dado conta disso!»."

Na secção dedicada a Rita Azevedo Gomes inserida no livro Novas & Velhas Tendências no Cinema Português Contemporâneo (2013), Susana Sousa Dias escreve sobre o filme desta semana, dizendo que "A 15ª Pedra consiste numa longa conversa entre o realizador Manoel de Oliveira e João Bénard da Costa: abre-se espaço para uma entrevista livre, que se assemelha a uma conversa descontraída (ainda que perscrutada pela câmara), na qual Bénard da Costa vai lançando perguntas. De entre alguns dos temas abordados – todos eles remetem directa ou indirectamente para o cinema – estão a juventude e a beleza, a educação, o aparecimento da cor e do som no cinema, bem como histórias pessoais como aquela que dá nome ao documentário em questão (contada por Oliveira).

"O aspecto mais singular deste documentário radica no rigor formal e estruturalizante em que assenta: é sobre o discurso e as flutuações deste que recaem todas as atenções, havendo como que uma organicidade na forma como o documentário é filmado e montado, quase matemática, e que depõe uma crença ilimitada no conteúdo do plano e na gestão da atenção dentro do mesmo. Para melhor ilustrar estes traços optamos desde já por enunciar as sequências que compõem o documentário: este abre com um plano que enquadra Oliveira e Bénard, num plano americano, sentados lado a lado – o primeiro à direita, o segundo à esquerda. Sem cortar, a câmara faz zoom in e reenquadra Oliveira, redefinindo o enquadramento (rosto de Oliveira no centro da imagem, 3⁄4 de frente) e sem se interromper a conversa. Passado momentos a câmara faz uma panorâmica esqueda-direita, para Bénard da Costa, que está de perfil, e o plano mantém-se nele. Sem nunca cortar (reforçamos), há um zoom out e novo reenquadramento que dá origem ao primeiro plano do documentário."

O nosso amigo Sérgio Alpendre descreve apaixonadamente a obra de Rita Azevedo Gomes para a Revista Interlúdio, escrevendo que "se há uma cinematografia que nos pode ensinar muito neste século, esta é sem dúvida a cinematografia portuguesa. Pode-nos ensinar sobretudo que é possível fazer filmes densos, carregados de literatura e teatralidade, e ainda assim repletos de cinema. Podem-nos ensinar, contudo, até certo ponto. Não é da formação brasileira essa literalidade e, portanto, quando ela aparece num filme brasileiro, há o grande risco de ser falso, forçado, ridiculamente superficial. Justamente algo que nos portugueses é natural. Eles falam poeticamente, nós falamos pragmaticamente. A formação europeia, nesse caso, faz toda a diferença. Há nos grandes filmes portugueses uma sincera impostação. Tão sincera que essa sensação de impostação é uma sensação que nós, brasileiros, sentimos. Eles provavelmente não pensam assim. Lembro-me sempre da história do meu grande amigo José Damiano, que, ao esperar pelo início de uma peça em Portugal, com atraso de apenas 3 minutos, ouviu de um espectador atrás dele a seguinte frase: “o rigor da hora já se perdeu”. Pois bem, tal frase é natural para os portugueses. Talvez nem tanto para os mais jovens, mas o certo é que nas ruas portuguesas ouvimos muito frases assim, cheias de beleza, poesia, literatura. É justamente isso que quero dizer. Essa formação rica, literária, poética, está impressa nos grandes filmes feitos em terras lusitanas.

"Os filmes de Rita Azevedo Gomes, desde o primeiro plano da sua primeira e oliveiriana longa – a câmara aproxima-se de uma janela que separa um escritório de um jardim em O Som da Terra a Tremer – são constituídos por essa riqueza de formação. Deles, por trás das camadas literárias e teatrais (no que um é decorrência do outro), pode-se reter um realismo que não se vê todos os dias, ou melhor, raramente se vê. Não se vê, sobretudo, nos neo-neorrealistas do novíssimo cinema brasileiro, que só nos dão uma parca impressão de realidade. E é irónico porque realidade parece ser tudo o que buscam os nossos jovens cineastas. Rita (chamá-la-ei assim, para não confundirmos os sobrenomes) não parece perseguir a realidade a todo o custo. Pelo contrário: os seus filmes são tomados pelo irreal, pela fantasia, pelo efeito. No entanto, quanta realidade vemos neles. Seja nas meninas que se separam deixando o cachorro imóvel e sem saber quem seguir (Frágil Como o Mundo), na conversa filmada entre um crítico e actor e um cineasta consagrado, e na forma como a direção enquadra ora quem fala, ora quem ouve (A 15ª Pedra), na história trágica de amor adúltero contada por uma duquesa (A Vingança de uma Mulher), no interesse de um alfarrabista numa coleção que não existe (A Colecção Invisível), ou em tantos outros momentos espalhados nos seus filmes. O que acontece é que essa força da realidade torna ainda mais fortes os momentos líricos, mágicos, da mesma forma que uma canção mais simples prepara o clima e os nossos ouvidos para uma mais ambiciosa, ou que um allegro ou um andante nos deixam mais vulneráveis à incrível beleza de um adágio."

Até Quinta!