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quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Uwasa no onna (1954) de Kenji Mizoguchi



por António Cruz Mendes

No mês de Fevereiro, vamos passar um novo ciclo de filmes consagrados a Kinuyo Tanaka. No primeiro, na sua condição de actriz, desta vez num filme de Mizoguchi; nos seguintes, A Princesa Errante, Mulheres da Noite e Senhora Ogin, na de realizadora. Não por acaso, todos eles têm mulheres como protagonistas. 
 
A Mulher de quem se Fala foi o último dos dezassete filmes que Kinuyo Tanaka fez com Mizoguchi. Dele se diz que foi um filme “mal-amado” pelo próprio realizador, que embirrou com os argumentistas (“uma merda de história, sem interesse”) e o considerou como “um compasso de espera” que precedeu as obras-primas que se lhe seguiram. Recorde-se que, ainda em 1954, realizou O Intendente Sanshô e Os Amantes Crucificados. Mas, o facto do filme que exibimos hoje não se encontrar à altura destes ou de outros dos seus melhores filmes, não significa que estejamos na presença de uma obra depreciável. Parece-me mesmo notável a sequência onde Yukiko se apercebe de que Matoba, com quem se prepara para ir viver para Tóquio era, afinal, o amante da sua mãe, alguém que explorava os seus sentimentos para conseguir o dinheiro que necessita para abrir uma clínica. O filme atinge, então, o seu climax quando as personagens deste triângulo amoroso percorrem os espaços labirínticos da casa, que podemos ver como a expressão plástica da teia de enganos onde Hatsuko e Yukiko se enredaram, ora surpreendendo conversas que lhes revelam a verdade, ora isolando-se para decidir o rumo das suas vidas. 
 
Kinuyo Tanaka interpreta em A Mulher de quem se Fala a figura de uma dona de uma casa de gueixas. Aparentemente, é uma pessoa dura, que gere o seu negócio de uma forma pragmática. Porém, alimenta um sonho de amor. Foi casada pelos pais com um desconhecido, mas tem ainda a esperança de o poder encontrar na companhia de Matoba. Essa ilusão vai ser posta à prova quando assiste a uma peça de teatro que satiriza os amores de uma velha por um homem mais jovem. 
 
Mizoguchi frequentava aquelas tradicionais “casas de prazer” e a sua irmã mais velha foi vendida pelo seu pai para ser explorada como uma gueixa. Talvez por esse motivo e também porque desaprovava a forma como o seu pai tratava a sua mãe, o tema da condição feminina vai ser recorrente na filmografia de Mizoguchi. Nos filmes realizados por Kinuyo Tanaka, ele vai ser dominante. 
 
O filme inicia-se com a chegada de Yukiko a casa da mãe e as primeiras imagens mostram-nos que ela se encontra ali como um corpo estranho. As gueixas usam quimono, uma maquilhagem pesada e penteados tradicionais. Yukiko, com uma postura discreta, roupas ocidentais e cabelo curto, faz-nos lembrar uma Audrey Hepburn deslocada dos EUA para um outro tempo e espaço. Pertence, como nota uma das gueixas, a uma “outra classe”. Enoja-a a boçalidade dos clientes da casa da sua mãe, muitas vezes embriagados, e a forma como as raparigas se deixam usar por eles. Isola-se no seu quarto e sofre quando pensa que o dinheiro que lhe permitiu estudar teve origem no negócio da sua mãe. 
 
Mas, a sua perspectiva começa alterar-se quando Usugumo adoece. Começa, então, a vê-las como pessoas dignas da sua afeição. No bordel, viram-se reduzidas a meros objectos do desejo masculino, mas continuam a ser fiéis aos seus deveres familiares e sujeitos dos seus próprios sonhos. Foi o seu desejo de amor que levou Kisaragi a fugir com um cliente que apenas a pretendia explorar. E, quando Chiyo lhe pede para a aceitar como gueixa, substituindo a sua irmã, porque só assim poderá ajudar o seu pai, doente, compreende que aquela profissão pode ser, por vezes, uma solução para a miséria a que se viram condenadas. 
 
Por fim, desfeitos os seus sonhos de regressar aos estudos em Tóquio e de casar com Matoba, é Yukiko que substitui a mãe na gerência do negócio. O pragmatismo impôs-se ao seu idealismo, as velhas tradições ao sonho de novos tempos. Na cena final, uma gueixa apresenta-se ao olhar submisso de Chiyo, a jovem e ingénua camponesa, magnificamente adereçada, um objecto de luxo, uma soberba oferta destinada a um cliente mais endinheirado. E pergunta: “Até quando, haverá necessidade de raparigas como nós?”



quinta-feira, 12 de novembro de 2020

La Strada (1954) de Federico Fellini



por André Miranda

Federico Fellini tem apenas seis anos quando vê Maciste All’Inferno, um filme acusado de blasfémia e repleto de humor bizarro, que nunca mais abandona o seu subconsciente: “Estou certo que o lembro perfeitamente, porque as suas imagens impressionaram-me tanto que tento invocá-lo em todos os meus filmes. Vi-o de pé, envolvido pelos braços do meu pai, rodeado por pessoas com os sobretudos molhados. Lembro-me da barriga nua duma mulher, o umbigo, os olhos negros maquilhados, ardentes. Com um movimento imperioso do braço criou um círculo de chamas à volta de Maciste, também ele seminu, segurando uma pomba na mão.” Assim como estas imagens não o abandonam, também não o deixa a memória da cidade natal, Rimini, onde nasceu a 20 de Janeiro de 1920. 

Se o desejo dos pais tivesse sido cumprido, Fellini, quando aos dezanove anos vai para Roma, ter-se-ia formado em direito. Mas ele tinha outros planos, e nunca os seus pés tocam na universidade. É jornalista por breves momentos, desenha cartoons, vende piadas e escreve para revistas. E durante esta vagabundagem encontra Giulietta Masina, protagonista de uma série radiofónica para a qual Fellini escreve. Os dois casam-se em 1943 e só se separam 50 anos depois, com a morte do realizador. 

“Ele foi como o polícia de trânsito que me ajuda a atravessar a estrada.” Foi assim que Fellini resumiu a relação com Roberto Rosselini, com quem colaborou pela primeira vez em Roma, Cidade Aberta, obra marcante do neo-realismo. Os dois continuam a parceria com Paisà e As Flores de São Francisco. Respeitado, Fellini tem anos prolíficos e os seus argumentos são procurados pelos mais variados autores italianos. Mas esta ainda não é a sua vocação. Só em 1950 realiza o seu primeiro filme, Luci del Varietà. Quatro anos depois oferece ao mundo A Estrada, filme que hoje apresentamos. 
 
*** 
 
É uma Itália mísera e pobre, de casas arruinadas e caminhos esburacados, aquela que Gelsomina e Zampanò habitam em constante viagem, levando, de terra em terra, um espetáculo circense. Uma existência cruel para a alma sensível e diferente de Gelsomina. Os seus olhos grandes e belos, dominados pela força bruta de Zampanò, habituam-se à dor e às lágrimas. Aceita o destino que lhe cabe e recusa todas as possibilidades de fuga. Tem a companhia do tambor e do trompete. Aqui e ali um pouco de felicidade. Mas o que Gelsomina apenas deseja é colocar as sementes de tomate num pedaço de terra que seja seu. 

Por isso, pedimos-te, Zampanò: olha para dentro de ti, admite o afeto que sentes por Gelsomina; não percebes o quanto precisas dela? Limpa-lhe as lágrimas do rosto, abraça-a. Talvez um dia seja tarde demais. Então compreenderás o quão cruel foste. E, chegado esse dia, o que farás ao teu amor? Deixar-te-ás cair na praia?

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Abismos de pasión (1954) de Luis Buñuel



por António Cruz Mendes

O Monte dos Vendavais, de Emily Brontë, sempre foi um romance inspirador para os surrealistas e Buñuel, com Pierre Ulrik, tentou adaptá-lo para o cinema na época em que filmava A Idade do Ouro. Contudo, só vinte e quatro anos mais tarde, no México, pôde realizar esse projeto. 
 
O filme não agradava inteiramente a Buñuel. O guião foi alterado (o nome de Ulrik não consta da ficha técnica), os atores principais (que haviam sido contratados por Dansigers para uma comédia) não lhe pareceram os mais apropriados e a música (Buñuel sugeriu Wagner e, depois, partiu para Cannes) acabou por invadir a despropósito todas as cenas. Mas, o resultado final está à altura da obra literária, da beleza esquisita do seu sopro romântico e demencial. 
 
O contexto da história já não são as montanhas inglesas dos ventos uivantes, mas as áridas planícies mexicanas e o título do filme passou a ser Abismos de Pasión, mas o “amor louco” de Heathcliff (rebatizado Alejandro) e de Catherine (Catalina) continua no seu centro, permitindo a Buñuel retomar um dos seus temas preferidos: o poder subversivo da paixão amorosa, que apenas obedece ao instinto e ignora regras e convenções sociais, a moralidade e o bom senso sobre o que se alicerça todo o edifício social. 
 
O filme concentra-se num momento do romance, o regresso de Heathcliff, e altera-lhe o final. Os diálogos iniciais informam-nos do contexto da história: Alejandro era uma criança pobre que foi adotada pelo pai de Catalina, com quem desenvolveu uma relação apaixonada. Porém, Ricardo, irmão de Catalina, odeia-o e, depois da morte do seu pai, obriga-o a viver como um simples criado. Catalina casou-se com Eduardo, um proprietário vizinho, rico, o que lhe permitiu manter a sua condição social. Vivem ambos com Isabel, irmã de Eduardo. 
 
Nas primeiras sequências, Catalina dispara sobre os abutres pousados nas árvores ressequidas – com um só tiro, afirma, sem sofrimento, fá-los passar da liberdade à morte. Eduardo coleciona borboletas que fixa com um alfinete, ainda vivas, a um estirador, antes de as emoldurar, decorando as paredes. Secas, deixariam de sofrer e a sua beleza seria imortal. Isabel, jovem e sensível, revolta-se contra o sofrimento infligido aos animais. Alejandro que, sentindo-se desprezado, tinha abandonado a casa onde foi acolhido, regressa, numa noite tempestuosa, arrombando a pontapé as portadas de uma janela que a governanta, Maria, se recusa a abrir porque ele “é um demónio”. 
 
Nunca esqueceu Catalina, por quem continua perdidamente apaixonado. Egocêntrico, selvagem, violento e atormentado, regressou rico e com o desejo de se vingar de todos os que o humilharam e fizeram sofrer. A paixão de Catalina por Alejandro também se mantém viva, mas ela oscila entre a alegria e o desespero, incapaz de sufocar o seu amor, como de trair o casamento. Os dois revisitam os lugares secretos da sua paixão, procuram e encontram os objetos que lhes recordam os sonhos juvenis – a faca, a corda e a lanterna, os equipamentos do veleiro que os levaria dali. Mas, Catalina está grávida de Eduardo e esse passado, já distante, não é recuperável. Por culpa de quem? O amor e o ódio vivem entrelaçados. 

Pelo seu lado, Eduardo, que representa a fidelidade, a amizade e a segurança, teme a paixão de Catalina por Alejandro e vê Isabel, ingénua e sentimental, tornar-se num instrumento da sua vingança. 
 
Alejandro instalou-se em casa de Ricardo, que perdeu a sua riqueza no jogo e se transformou num bêbado miserável. Um empréstimo hipotecário prestes a vencer-se deixou-o nas mãos do homem que sempre odiou. As casas de Ricardo e Eduardo são o espelho de dois mundos: a primeira é um exemplo de degradação física e moral, a segunda da boa ordem burguesa. Contudo, elas avizinham-se, opõem-se mas intersectam-se: Alejandro invade a casa de Eduardo para resgatar Catalina e Isabel, que Alejandro despreza, mas com quem se casou para castigar Catalina e humilhar o seu marido, foi viver para a casa de Ricardo. 
 
O clima de violência adensa-se. Todos, Eduardo, Isabel, Ricardo, desejam a morte de Alejandro, mas todos se deprimem face à força da sua vontade. A imagem terrífica da mosca atirada à aranha antecipa o desenlace. As sequências finais, pontuadas pela música de Wagner e pela leitura do Livro da Sabedoria, serão patéticas, dignas do belo-horrível ultrarromântico de um Soares dos Passos: só fora deste mundo a reunião dos dois amantes será possível.

segunda-feira, 8 de abril de 2019

French Cancan (1954) de Jean Renoir



por João Bénard da Costa

Na filmografia de Renoir, French Can-Can segue-se a La Carrozza D'Oro e antecede Elena et les Hommes. Foi o primeiro filme que Renoir fez em França depois do seu regresso à pátria, donde estivera ausente (na América e na Índia) onze anos, de 1940 a 1951. Após as obras amargas realizadas nos Estados Unidos, que definitivamente o afastaram do realismo que o atraíra no fim dos anos 30, após esse filme, de certo modo singular na sua carreira, que foi The River (1951), Renoir iniciou com La Carrozza as suas grandes meditações finais sobre o espectáculo (“a comédia e a vida”) e sobre a arte como “grande ilusão”. French Can-Can é um marco fundamental nessa direcção, sendo também, “o primeiro dos seus grandes 'divertimentos' finais”. A acção do filme situa-se em 1888 e inspira-se na vida de Ziegler, o fundador do Moulin Rouge, o homem que lançou o can-can. Renoir reencontrou Jean Gabin, o actor de Les Bas-Fonds (36), La Grande Illusion (37) e La Bête Humaine (38). E – ele próprio disse - “amo French Can-Can porque me deu a ocasião de voltar a trabalhar com Gabin. Foi, para mim, um regresso ao passado (…) Agradeço ao cinema por me ter proporcionado esse reencontro”. 

Aparentemente, esta afirmação é estranha, pois que French Can-Can parece estar nos antípodas dos filmes citados, três das obras que mais contribuíram para a imagem de Renoir realista e empenhado que, durante tanto tempo, se confundiu com a própria imagem de Renoir. Mas, voltando sobretudo ao seu filme mais famoso - “cette sacrée Grande Illusion”, como Renoir também disse – a obra que vamos ver, sem nada ter que ver com ela, no plano da leitura imediata, retorna explicitamente um dos momentos mais célebres desse filme. É a tão citada sequência da “Marselhesa” que em La Grande Illusion (cantada pelos prisioneiros franceses, durante uma representação teatral, quando sabem de uma vitória militar das suas tropas) marcava um momento alto de “emoção patriótica”, e regressa em French Can-Can (durante a visita do ministro) como momento de circunstância, marcando a grande bagarre entre Maria Félix e Françoise Arnoul que se transforma em pancadaria geral. 

Não foi certamente por acaso que Renoir retomou uma sua sequência tão célebre para a destruir por dentro e lhe dar um tão diverso significado. O lado “humain, trop humain” que caracterizara o filme de 37 – e que não pouco devia à presença e à interpretação de Jean Gabin – é desmontado em French Can-Can, com o mesmo actor, dando sobretudo em espectáculo uma outra ilusão: a que consiste, como é dito no diálogo do filme, em acreditar que só o espectáculo permita aceder à grande vie e se substitua e confunda com ela. Essa é a ”ilusão” (de natureza diferente, mas de essência aproximável) que justifica o personagem de Gabin neste filme, para o qual tudo (amor, mulheres, amizade) mais não eram do que modos de criar essa ilusão de vida, que só no espectáculo complementar se perfaz. A famosa fala de Gabin, na inauguração do Moulin Rouge, quando explica a Françoise Arnoul o que são para ele as mulheres, o amor e o espectáculo (e que convence Nini a “entrar em cena”), será, vista a essa luz, um dos momentos mais confessionais do cinema de Renoir, opondo essa ilusão total (que, lato sensu, é a do criador) à ilusão que o príncipe procurara na sua noite de amor com Nini. O príncipe quisera a “ilusão do amor” para ter uma recordação com que ficar. Falha, assim, a relação com Nini, como antes falhara a sua própria morte. Só lhe resta “desaparecer de cena” deixando nela os atributos (“o décor”) da ilusão do poder que lhe andara associada. E é no mais visível desses atributos – a cadeira – trono – que Gabin se senta para escutar (sem ver) o sucesso da sua “girândola final”. Os grandes planos de Gabin nos bastidores, inseridos na genial sequência do “can-can” (enquanto o empresário esboça com o pé o movimento da dança) são o assombroso contraponto da “ficção ideal” que se desenrola no palco. Simultaneamente, o criador está de fora e de dentro dessa ficção. Já não precisa de ser voyeur (como o fora, pouco antes, quando espreitara com Nini, mas de oposto lado, a sua nova descoberta, Esther Georges), pode “reger”, invisivelmente, essa ordenação que é, para ele, a única que conta. 

Assim, a visão de Renoir, neste filme, é sempre a de alguém que se encontra nos bastidores (sequência inicial, com o plano subjectivo sobre Maria Félix), sabendo que esse é o único lugar que possibilita a visão mais próxima e mais serena. Por isso, também este filme, que dá uma tão assombrosa sensação de movimento, é um filme em que a câmara pouco se move (quase todos os planos da sequência final são fixos e o movimento é o dos actores). O ponto donde se vê é quase sempre único, abarcando na sua globalidade os décors teatrais, de cartão visível (Montmartre, as colinas, a conversa entre Nini e o príncipe junto à árvore, etc.) e impondo o carácter fictício de todas as mises-en-scène (as pequenas-grandes paixões dos intérpretes, quer elas se refiram ao amor e ao ciúme, quer se refiram ao poder) face à única que finalmente reina: a mise-en-scène do próprio filme, a do espectáculo que tudo é. Sobre as aparências do real, só a realidade da aparência subsiste. 

in «Folhas da Cinemateca – Jean Renoir», Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, Lisboa, Setembro de 2005, pp. 153-155.

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Viaggio in Italia (1954) de Roberto Rossellini



por João Bénard da Costa

Fim de Outubro ou princípio de Novembro de 1955. Eu tinha 20 anos, ainda não conhecia ninguém do grupo que um ano mais tarde formou o CCC da JUC. Também não lia os Cahiers du Cinéma, que nem de nome era dos meus ouvidos. Desde 1950 - ano da estreia de Stromboli em Portugal - que me andavam a dizer que Rossellini perdera as qualidades iniciais (essas de Roma, città aperta, que tanto me fizeram chorar quando eu ainda andava de calções) ao deixar-se apanhar pelas saias de Ingrid Bergman. Deus Omnipotente não perdoara aos adúlteros. O pecado só lhes tinha feito mal. Ele, já nem era neo-realista, já nem era nada. Ela, uma sombra triste do que fora. 

Verdade ou consequência, nem Stromboli, aos 15 anos, nem Europa ‘51, aos 18 (com o Tucho) me deixaram - ai de mim! - marcas duráveis. Só muito mais tarde abri os olhinhos. Nem sei por que fui ao Éden, numa tarde de Outono, em que havia muita luz e fazia muito sol. Certamente foi mais por fidelidade a Ingrid Bergman (e talvez a George Sanders) do que a Rossellini. Mas fiquei colado à cadeira. No fim, no milagre, desatei a chorar. Os meus companheiros (melhor, as minhas companheiras) desataram a rir. Do filme e de mim. Como era possível, João? Ainda hoje me espanto como foi possível, João. Não foi a carne nem o sangue quem mo levaram. Mas algum Deus que está no céu. Aceito que o propriamente dito. 

Disse da minha justiça, à esquerda e à direita. Nem um eco. À esquerda diziam-me que era coisa de católico, nos dias mais beatos. À direita, que era coisa de neo-realista, nos dias mais estúpidos. A esquerda tinha mais razão do que a direita. Em coisas de fundo, acontece. 

Demorou um ano - já disse - a encontrar gente (católica gente) que sentira o mesmo que eu. Ela levou-me a ler um número célebre dos Cahiers, seis meses anterior à minha visão, em que Jacques Rivette escrevera (Lettre sur Rossellini): “Par l’apparition de Voyage en Italie tous les films ont soudain vieilli de dix ans” e em que Eric Rohmer dissera (La terre du miracle): “Dans ce film où tout semble accessoire, tout, même les plus folles divagations de notre esprit, fait partie de l’essentiel”. Levaram-me a ler Bazin e o texto sagrado Défense de Rossellini

Quando, em Abril de 1958, revi o filme no Jardim-Cinema, 26ª sessão do CCC, já éramos um grupo a defender a genialidade da obra. E um bonito texto do Pedro Tamen - sempre muito pedagógico e sempre a fugir dos provocadores - converteu mais incrédulos do que o próprio filme: “Depois, há um milagre que não sabemos se o foi (um paralítico que corre brandindo as muletas) e outro que, esse fim, sabemos que foi: duas pessoas descobrem-se no mais dentro, no mais fundo, fundem-se, são finalmente capazes de dizer que sim e que se amam, que sim, que sim, que se amam”. Em 1958, já os Cahiers du Cinéma colocavam Viaggio in Italia no terceiro lugar da lista dos “melhores filmes da nossa vida”, depois de Sunrise de Murnau e de La règle du jeu de Renoir. 

Com o tempo, essa posição vanguardista e elitista deixou de o ser. Hoje, já ninguém se escandaliza com nada. Viaggio in Italia é pacificamente aceite entre as glórias da nossa terra (a terra do cinema) e, de cada vez que o programo, a sala esgota. Não há gato nem cão que queira ter voto na matéria que ouse sequer uma reticência. Juro pela unanimidade crítica das cinco estrelas se for reposto no Ávila. Mas quem vê caras não vê corações. A não ser que se chame Roberto Rossellini e há mais de dezoito anos que ninguém se chama assim. 

Viaggio in Italia, para quem nunca o tenha visto, o que é? Como Sunrise de Murnau, como O Convento de Oliveira, como Lucky Star de Borzage ou como Os Contos da Lua Vaga de Mizoguchi, é a história da separação e da reconciliação de um casal. O casal Joyce, casal inglês de meia-idade (trinta e muitos, quarenta e poucos) bem instalado na vida, que vem à Itália vender uma propriedade que herdara de um tio chamado Homer (Joyce e Homero podem ser nomes casuais, podem não o ser). Casal são-no, porque são casados. Casal não o são, porque estão razoavelmente fartos um do outro. A viagem - rumo a Nápoles e nos arredores de Nápoles - dura sete dias (número mágico). Alex, o marido (George Sanders), namora por aqui e por ali, engata (ou é engatado) por uma pega, aborrece-se de morte. Katherine, a mulher (Ingrid Bergman) faz muito turismo: Museu Arqueológico de Nápoles, ruínas de Cuma (antro da Sibila), Templo de Apolo, Vesúvio, Pompéia, a solfatara de Pozzuoli. Recorda um poeta que a amou e morreu novo e tuberculoso, finge ciúmes do marido, farta-se com ele e dele. Ao sétimo dia, a propósito de uma discussão absurda sobre o Bentley deles, decidem divorciar-se logo que voltem à Inglaterra. Horas depois, o carro em que viajavam, muito calados, é forçado a parar porque uma procissão atravessa a estrada. Saem, cada um de sua vez, para ver o que se passa. A certa altura, a multidão desata a gritar “milagre” a propósito do tal paralítico. Na confusão, cada um deles é empurrado em direções opostas. Katherine chama pelo marido. Quando este a consegue alcançar, abraçam-se e juram nunca mais se separar. 

Nem Katherine nem Alex parecem pessoas muito interessantes. Nada lhes acontece de muito particular. Qualquer pessoa está mesmo a ver que divorciar-se é o que podem fazer de melhor. Uma procissão, o “ave” de Fátima e os dois nos braços um do outro a jurar amor eterno. Milagre da Virgem que protege o santo matrimônio? Quem nunca tinha visto e só isto ler, percebe facilmente as reações da época. 

Só que dizer isto ou não dizer nada é praticamente a mesma coisa. Não porque a história não seja isto, mas porque sob isto, ao lado disto, ou sobre isto (e nenhuma das preposições é boa) se passa tudo o que é essencial e não é traduzível em palavras. 

Não vou citar nenhum exemplo dos mais célebres, como a perturbação de Katherine face aos nus masculinos do Museu de Nápoles, o passeio solitário dela ao Templo de Apolo, a “ionização” na solfatara, com o fumo e o cheiro a sufocá-la, o esqueleto visto nas catacumbas, a descoberta, durante as escavações em Pompeia, dos corpos calcinados de um casal abraçado, há dois mil anos abraçados. Não vou falar da confusão das ruas de Nápoles ou de Capri, das mulheres grávidas que se cruzam constantemente com Katherine, das zaragatas conjugais a que assistem e que tanto chocam reservados ingleses. 

Vou referir-me apenas à sequência inicial, quando, no Bentley, Katherine e Alex se dirigem para Nápoles. Primeiro, um diálogo, pedagogicamente concebido, que nos dá todas as informações úteis: quem são eles, onde se dirigem, o que vieram fazer à Itália. Depois, o marido adormece e percebemos que é a mulher quem guia. O marido acorda e propõe à mulher trocar de lugar. Em vez do corte e novo plano do carro com as novas posições, assistimos à troca toda, com toda a minúcia. No segundo minuto do filme, segunda paragem: agora é uma manada de bois que atravessa a estrada e os impede de prosseguir. Irritação de Alex, que já comentara que as estradas em Itália são um perigo. Segue-se uma bifurcação: uma seta indica Nápoles para a esquerda e Latina para a direita. O carro vira à esquerda (já sabíamos que o destino era Nápoles), mas a câmera vira-se para a direita, como se o outro caminho fosse o bom e eles o não soubessem. Pouco depois, Katherine faz uma expressão de horror: “Que é isto? Sangue?” E Alex responde, irónico, que foi só um mosquito que se esborrachou no vidro. Falam dos perigos da malária. 

Aparentemente, nada se passou de particularmente interessante. Mas, nesses cinco minutos de filme, quem for capaz de ver, viu o essencial. A viagem é conduzida pela mulher, como sempre o será ao longo do filme, porque é ela quem vê quase tudo o que o marido não vê, como é ela quem o chama no final. Mas ela sem ele não existe. Por isso, ele tem de conduzir também e tudo o que lhe acontece, depois, é tão fio condutor quanto o que lhe acontece a ela. Em cada bifurcação, há sempre duas possibilidades. Seguir o que está predeterminado implica deixar aberto o desconhecido. A qualquer plano ou ordenação sobrepõe-se a desordem e o imprevisto: bois não querem saber de Bentleys e podem parar - ou atrasar - uma viagem. Uma mancha de sangue pode não ser uma tragédia mas pode não ser tão banal como parece. Na vida não há símbolos, há sinais. A cada momento, cada sinal. 

E é a acumulação de todos esses momentos e de todos esses sinais que, a cada momento e a cada sinal, vai minando aquele homem e aquela mulher que parecem fatalmente seguir numa outra direção (a ruptura) e não menos fatalmente estão a seguir noutra (a redescoberta). Quando perdem o pé (o carro, a casa, a direção, a estrada), tudo o que de vital e mortal se acumulou neles explode, tão irracional e tão racionalmente, como a fé da multidão no milagre da Virgem. E é essa explosão - essa erupção, essa ionização, se quisermos ficar ao pé dalgumas imagens do filme - que os atira um para o outro, no mesmo abraço dos cadáveres de Pompeia. Talvez que eles também - que sabemos nós? - não estivessem a fazer amor, nem mesmo se amassem. Talvez que, surpreendidos pela erupção do Vesúvio, se tivessem agarrado para não morrerem sós. Só que dois corpos juntos, juntos mesmo, dois mil anos ou dois segundos, são o milagre total. No Evangelho de Pseudo-Tomé há uma variante, mais profunda e mais certeira, da conhecida passagem dos sinópticos em que se diz que a verdadeira fé move montanhas. Em vez da passagem: “Se tiveres a verdadeira fé e disseres àquela montanha move-te, a montanha mover-se-á”, diz-se: “Se um homem e uma mulher viverem em verdadeira paz um com o outro e um deles disser àquela montanha move-te, a montanha mover-se-á.” Em vez da fé, a caridade. É o cerne do cinema de Rossellini. 

Nem eu nem ninguém vos pode jurar que, regressados ao carro ou a casa, Alex e Katherine não recomecem as quezílias. Mas o milagre aconteceu. Não é bom que o homem ou a mulher estejam sós. Viaggio in Italia, como disse Rohmer, é um drama com três personagens. O terceiro é Deus. E em Viaggio in Italia quem O não vir não vê nada. 

É só um filme? Precisamente.

in «Os Filmes da Minha Vida - 2º Volume», Assírio & Alvim, 2007.

sexta-feira, 22 de junho de 2018

Chikamatsu monogatari (1954) de Kenji Mizoguchi



por João Palhares

O que podia ser só uma comédia de enganos, como bem lembrou João Bénard da Costa[1], com trocas de identidades e confrontações que dão para o torto, portas de correr que se abrem e se fecham como num filme de Lubitsch, lutas de poder entre maridos e mulheres ou entre funcionários que querem subir de posto, transforma-se numa trágica história de amor pelas leis que regulavam que uma mulher não podia trair o marido enquanto este podia ter todas as concubinas que quisesse, no Japão do século XVII. A pena era a crucificação e Chikamatsu Monzaemon, autor da peça que inspirou o filme de Mizoguchi que vamos ver hoje e tido como o maior dos dramaturgos japoneses, assistiu a muitas delas durante a sua vida, entre os anos de 1653 e 1725. A serenidade e o amor inversamente proporcionais ao percurso cruel e injusto que os amantes crucificados, Osan e Mohei, têm de fazer, além de estar envolto num profundo mistério (descrito por Mizoguchi e aceite por nós como única alternativa para os amantes e apesar das múltiplas saídas que lhes são oferecidas pelo marido de Osan e pelas famílias dela e de Mohei), talvez se relacione muito com a cultura oriental, mas não faltam exemplos de percursos semelhantes no chamado “cânone ocidental”[2]. O amor e a morte, duas pessoas que mal se conhecem são atiradas aos braços uma da outra pelo destino. Quando estão prontas para acabar com a vida, nas águas da morte de Kenji Mizoguchi (as mesmas que engoliram Anju[3] ou separaram Genjūrō da mulher e do filho[4]), são resgatadas pelo amor e nunca mais se esquecerão disso, até às últimas consequências, até conhecidos seus verem neles uma “alegria” e uma “serenidade” que nunca tinham visto antes e eles próprios talvez nunca tenham conhecido. O amor e a morte unidos por poemas milenares e fundadores que falam de reinos não terrenos em que os amores interrompidos, impossíveis ou frustrados são finalmente consumados, no mundo dos sonhos ou nos limiares da realidade, em noites de outono supostamente grandes mas que não chegam para abarcar as noites emotivas e transcendentes de quem se ama, apelos à lua e ao sol, às montanhas e aos rios, lamentos e sussurros de mil anos[5]. O amor e a morte nos encontros de Genjūrō com dois fantasmas no outro lado da vida, uma nobre morta que o faz esquecer a vida terrena e a mulher assassinada que lhe ensina que a vida e a morte estão no mesmo plano das coisas, como a luz e a escuridão, o sol e a lua, a regra e a excepção. Há-de velar por ele nas correntezas dos rios, nos ramos das árvores, no topo de montanhas ou no azul do céu como anjo livre, expiada pelos sofrimentos passados[6]. Não há religião mais bela na sua acepção do que o budismo, ter a certeza que continuamos todos vivos não dentro dos outros mas na essência e no alcance de toda a criação. Não há filmes mais belos que os de Mizoguchi, que nos dêem a ver tantas coisas sem que um fluxo de continuidade lógica se quebre ou se interrompa, continuidade inventada fora das regras tradicionais e que tantos problemas deu ao seu criador para ser implementada, mas na qual é até possível ver o tempo e o movimento cessarem com um travelling para serem retomados com um plano fixo. Se não acreditam, vejam os planos finais deste filme, quando os amantes são levados para a cruz e para a consumação do seu amor e a multidão os acompanha e vai comentando o seu destino, vejam a confrontação final das mulheres que foram obrigadas a viver da rua e da noite e a suportar a crueldade dos homens num arrabalde perdido e em ruínas[7]: a câmara segue alguém e anula todo o movimento indo à mesma velocidade que os seus passos, enfeitiçada e em levitações etéreas, quando há um corte e tudo se mexe, tentando impedir a entrada de alguém nas terras de sonho que cria a esperança pelos portais do sofrimento. Milagres.

[1] na folha da Cinemateca sobre Os Amantes Crucificados
[2] da Bíblia Sagrada ao Romeu e Julieta
[3] no Intendente Sansho
[4] nos Contos da Lua Vaga
[5] no Kokin Wakashū, antologia imperial de poesia waka publicada no século X. 
[6] os Contos, mais uma vez. 
[7] nas Mulheres da Noite, de 1948. 

quarta-feira, 13 de junho de 2018

Sanshō Dayū (1954) de Kenji Mizoguchi



por João Palhares

Anos 10 do século passado. Um jovem de 17 anos percorre as ruas de Tóquio sem planos de vida depois de regressar de Nagoya. Podem nevar esses flocos de neve que levitam no ar e colorem as ruas ou chover essas gotas de chuva que nos disfarçam as lágrimas, estendendo e espelhando ao mesmo tempo a tristeza de cá de dentro, purgada pelos fios de água que correm pelas ruas como quando se choram as pedras da calçada. Um incidente ou um atraso urbano qualquer fá-lo pensar no passado e na família. A mãe morreu há pouquíssimo tempo e a irmã, que ganha o dinheiro dela num bordel, tem-no sustentado e apoiado entre estudos e buscas por trabalho. Do pai, “homem de Tóquio que se alimentava de grandes sonhos e falhava constantemente”[1], não quer saber. Tinha apanhado o comboio para Nagoya para voltar outra vez a Tóquio, tinha desperdiçado o dinheiro da irmã porque não queria ser comerciante e não se decidia entre o peso da culpa e a volatilidade dos sonhos. É noutras cidades que vai arranjando trabalhos, que não duram porque parece ser sempre empurrado para a capital. Revoluções russas, revoltas do arroz... é muita confusão para quem não sente grande coisa nem por quem oprime nem por quem se revolta. Sempre foi possível não estar em lado nenhum quando as coisas aconteciam, passar conscientemente ao largo de tudo o que possa e acabe por “fazer história” – pensar que essa história é doutros e não nossa. Imaginar quantos heróis não foram cantados, quantas pessoas foram obrigadas a sofrer e a martirizar-se em silêncio para que outros pudessem receber os louros e viver as venturas da virtude. “Tudo o que é interessante passa-se na sombra”[2]. Uma mulher salva um homem do suicídio e abriga-o no único sítio que consegue, a casa de mercenários que traficam obras de arte ou objectos sagrados e que acabam por fazer da vida deles um inferno. Até se conseguirem evadir, denunciando com muita cautela o último golpe planeado pelos traficantes à polícia, vão levar no corpo, vão sofrer juntos e vão aguentar porque se amam, sarar as feridas entre chibatadas, castigos e humilhações. Cá fora, na cidade, o mundo não os trata muito melhor e ela acaba por aceitar a proposta da vizinha a quem pede comida, tornando-se uma gueixa para sustentar os estudos dele e sem lhe dizer nada. Arranja problemas com a polícia e é detida à frente dele, despedindo-se a soprar um pássaro de papel na sua direcção. Esse sopro de vida transforma-se em vento eterno ou sem tempo e os anos passam. É a vez dele a ajudar, mas já vem tarde demais, os suplícios cobraram a sua dívida. A chuva corre pelos nossos olhos, ou choramos outra vez[3]. “Sem misericórdia, o homem é como os animais. Mesmo que sejas duro contigo mesmo, sê piedoso com os outros. Os homens são todos iguais e toda a gente tem direito à felicidade.”[4] É a última coisa que um miúdo ouve do pai antes de se separar dele, sem saber que é para sempre. A mãe leva-o a ele e à irmã para passar uns anos em casa de familiares até se juntarem todos ao pai, que tinha sido condenado ao exílio. A caminho são feitos reféns da vida, que parece não ter por eles a misericórdia que merecem. São também separados. Anos e anos numa elipse violenta, como quando se tenta viver o instante e nos pesa uma lembrança dorida – o instante vai-se e a lembrança fica. O miúdo é já um homem e esqueceu-se de tudo, mas a irmã não. As palavras do pai resistem e chegam-lhes outras palavras, em forma de canções, de uma ilha remota – é a mãe. A fuga é possível mas só com um sacrifício, para dentro de águas que também lavam lágrimas. A irmã mata-se, o pai morre, mãe e filho encontram-se quase tarde demais no que podia bem ser o fim do mundo, do Cabo da Roca ao Big Sur. “Restamos apenas nós dois”[5], diz o filho à mãe, num momento de reconciliação cósmica que atravessa todos os lugares e todos os tempos como um leve lampejo. O jovem de 17 anos, na tal noite chuvosa, não sabia que se ia tornar no maior dos cineastas, contar-nos estórias que nos hão-de sobreviver por séculos, deixar-nos atónitos e sem capacidade para escrever sobre planos e luzes por termos visto as coisas com os olhos totalmente embaciados com lágrimas. Ele ainda havia de deambular pela cidade de Tóquio por mais uns anos, absorver o que se passava em redor, até arranjar trabalho na Nikkatsu, o mítico estúdio de cinema japonês. Faria perto de uma centena de filmes, dos quais só alguns nos chegaram, constantemente insatisfeito com o resultado e tentando alcançar uma certa nota, uma certa ideia, que não sabia descrever mas da qual se aproximava recusando as alternativas. Essas notas podiam ser noites de travessia pelo rio entre as brumas; aparições de mortos quando são mais precisos, com a promessa de velar sempre pelos vivos; pedaços de pólen a voar à volta de fugitivos, neve e lagos mágicos, a natureza em todo o seu esplendor e sempre inconsciente ou abstraída dos destinos dos homens; um plano enorme e muito difícil de suportar num corredor de um bordel ou na costa da ilha de Sado, em que tudo acaba por confluir, como na foz de um rio. É isto a “arte da modulação”?[6]

[1] in «Souvenirs de Kenji Mizoguchi», de Yoshikata Yoda, Petite bibliothèque des Cahiers du cinéma, 1997. 
[2] in «Voyage au bout de la nuit», de Louis-Ferdinand Céline, 1932. 
[3] in Orizuru Osen, de Kenji Mizoguhi, 1935. 
[4] in Sanshō Dayū, de Kenji Mizoguchi, 1954. 
[5] ibidem.  
[6] in « Mizoguchi vu d’ici», Jacques Rivette, 1958.

sábado, 7 de abril de 2018

Touchez Pas au Grisbi (1954) de Jacques Becker



por João Bénard da Costa

Durante o tempo em que escreveu para O Independente, João Bénard da Costa criou uma crónica a que chamou “Os Filmes da Vossa Vida”. Nessa crónica, lia as cartas dos seus leitores e falava dos filmes sobre os quais eles queriam que ele falasse, ajudando-os às vezes até a descobrir nomes de filmes que achavam nunca mais conseguir voltar a encontrar. Numa dessas crónicas, debruçou-se sobre o filme que hoje vamos ver, Touchez pas au Grisbi, a pedido de Francisco Bernardo, da Covilhã. Transcrevemos esse texto para esta sessão. (João Palhares) 

(...) Não me lembro senão de três personagens, não me lembro do enredo, enfim não me lembro de muita coisa. Mas, para além duma estrada nocturna, onde explode um carro já antigo, lembro-me de uma imagem à qual serei fiel para toda a vida (...) "Felizes os que chegam a dizer uma palavra!" (Saúl Dias). Lembra-se, caro João Bénard da Costa, do final deste filme? (...) Se já escreveu sobre, ainda bem. Se não escreveu, escreva (se não faz favor). 

Francisco Bernardo 
Covilhã 

Francisco Bernardo viu Touchez Pas au Grisbi aos 17 anos, quando "andava a descobrir a poesia de Ruy Belo". Escreveu-me à memória dele, no mês de Dezembro, de um comboio, uma bela carta chamada Arte de Memória. Passou por muitos filmes - amadíssimos filmes - até pousar em You Only Live Once de Fritz Lang (1936) e Touchez Pas au Grisbi de Jacques Becker (1954). Filmes - diz-me, pedindo voz a Carlos de Oliveira - "das coisas não logradas ou perdidas / olhos turvos de lágrimas contidas". Porque demorei tanto tempo a responder-lhe? Não sei. As coisas acontecem ou acontecem-nos coisas. Dei tempo ao tempo a memória à memória. Agora julgo que estou pronto. Hoje, Touchez Pas au Grisbi. Para a semana, You Only Live Once. Amor com amor se paga. 

Se eu precisei de tempo, Jacques Becker (1906-1960) precisa de muito mais. Como "toda a gente", gostei muito dos filmes dele, desde que o conheci com Edouard et Caroline (1951), até Le Trou (1960), já estreado depois da morte. Com uma preferência expressa - e confessa - por Casque d'Or (1952), o filme da Signoret e de Reggiani, mas também o filme de Reggiani e de Bussières. "Mais il est bien court le temps des cerises (...)". Só que, "como toda a gente", e à excepção desse "souvenir que je garde au coeur", se o amei perto esqueci-o longe. Como escreveu Marc Chevrie, em 1985, "ce n'est pas que Jacques Becker soit méconnu, c'est son cinéma qui l'est". Porém, de cada vez que lhe revejo um filme - no ano passado, Falbalas (1945) agora Touchez Pas au Grisbi - o que julgava amar volta mil vezes mais forte e descubro que afinal nunca vira o que supunha ter visto. À medida que o tempo passa, esses filmes de Becker aumentam, aumentam e descobre-se, como Micheline Presle aprendeu no catecismo (Falbalas) que criar é fazer qualquer coisa a partir do nada. 

Porque é que há, assim, criadores que precisam de tanto tempo? Não tem que ver com os grandes inovadores. Picasso ou Godard foram amados ou odiados, logo, no tempo das Demoiselles d'Avignon ou do À Bout de Souffle. Outros, pelo contrário, que ficaram sempre numa espécie de surdina (de Jacques Becker a Jacques Demy), satélites de planetas maiores (Renoir para Becker) cada vez brilham mais à medida que avança a noite e descobrimos que ainda não tínhamos idade para os ver quando julgávamos que a idade nossa era a deles. "Frère Jacques", chamou-lhe Você como Godard o chamou, no muito bonito texto de necrológio. Também fiz meu esse doce nome. Mas, hoje, desconfio um pouco. Não é também uma maneira de arrumar como colateral, nem pai, nem filho, nem amante? E morreu num domingo de manhã, à hora em que Max (Jean Gabin) costumava pôr a tocar o seu disco de 45 preferido, como também lembrou Godard. 

Era um disco de jazz, arranjo de Jean Wiener de um tema de Jerry Mary. Umas notas de piano, um solo de clarinete, e o filme começa com ele e acaba com ele. Pode associar-se essa música ao "grisbi" (o roubo das barras de ouro, em Orly, o tal "último golpe" de Gabin, de que falava o título português), pode-se associá-lo ao envelhecimento de Max. São temas evidentes deste filme de gangsters que é um filme sobre um roubo que devia assegurar a Gabin a reforma que, aos 50 anos, sabe que está na hora de chegar. 

Mas roubos, ajustes de contas, até o espectro da velhice tão poderosamente trazido a primeiro plano, são o "macguffin" de Becker. Porque Touchez Pas au Grisbi (e ignoro se a expressão em calão pode ter outros sentidos) é o filme sobre o amor entre dois homens: Max e Riton (René Dary), esse a quem Gabin chama tantas vezes, tocando-o, "tête d'hérisson". Há vinte anos que trabalhavam juntos, há vinte anos que não se largavam. Como o bando diz, Max "quando il aime quelqu'un c'est la vie à la mort". E quelqu'un não vale para quelqu'une, pois que a Max conhecemos muitas mulheres e todas efémeras. Mas será que Max amou alguma vez alguma mulher? 

De Riton não sabemos. Mas sabemos, quando o filme começa, que está perigosamente embeiçado por Josy, uma putazinha traidora, interpretada por Jeanne Moreau em começo de carreira. Max tem medo daquela história que lhe cheira mal (os olhares que lança ao amigo) e dá-lhe como exemplo velhos senis. 

Até que Riton fala de mais e Josy ouve de mais. Até que Josy conta a Angelo (Lino Ventura), novo amante dela, que Riton e Max roubaram as barras de ouro. Numa inolvidável noite - o pão e o paté - Max diz a Riton que Josy lhe pôs os cornos e o traiu. É de espantar na idade deles? E, como um espelho, mostra-lhe ruga a ruga e papada a papada. Depois, diz a Riton que ele nem sonhe em vingar-se e que se afaste de Angelo. Despem-se, lavam os dentes (gestos simétricos, sequências paralelas) e deitam-se. Riton não consegue dormir. 

Mas, no dia seguinte, finge que dorme enquanto Max sai, pé ante pé, para pôr o ouro em lugar seguro. Quando Max volta, Riton já lá não está. Não resistiu e foi ajustar contas. Max percebe que o amigo está perdido e que tudo pode estar perdido. E vem então a sequência que é tão espantosa como o final. Põe o disco que Riton amava no pick-up, tira uma garrafa de champagne do frigorífico, bebe o champagne e insulta em voz off o amigo. "Ce Riton", na voz in de Gabin. "Il m'emmerde ce Riton. Depuis le temps que ça dure. Il faut toujours qu'il fasse des conneries. Qu'est-ce que j'aurais pu faire si je ne l'avais pas toujours derrière moi?". Senta-se e levanta-se e a câmara, sem cortar o plano, acompanha-o em panorâmicas à roda do quarto, impotente e desesperado. 

Até que o telefone toca e uma mulher estrangeira (Marilyn Bufferd) o convida para almoçar em casa dela. O plano do champagne funde-se, sem transição, com o plano de um copo de cognac, em fim de almoço. Estão os dois muito calados. De isqueiro na mão, ela levanta-se para lhe acender um cigarro. Gabin assopra o isqueiro e senta-se ao colo. Vai beijá-la e ela esquiva-se. Há, nele, uma breve inquietação, serenada quando a vê avançar para o quarto. Segue-a e fecha-nos a porta na cara. Corte. Depois, ele já vestido ela ainda nua, Gabin acende outro cigarro. "Tu m'aimes?" pergunta ela. "J'arrive", não responde ele. E, de novo em off-in, recomeça o monólogo com Riton, já não zangado mas cheio de saudades. Naquele corpo de mulher, ou naquela mulher que só tinha corpo, Max reencontrou Riton e decidiu arriscar tudo para o salvar. Nenhum diálogo, nenhuma palavra, só a música, a música sempre, esse tema que se espraia, se dilata e depois, sempre, se suspende. 

É essa sequência - é essa música - que vai desaguar no plano final, o seu plano. Lembro-me, lembro-me sim, do lugar onde isso aconteceu e da luz a que aconteceu. Agora lembro-me de tudo e a tudo dou outro sentido. 

Gabin a chegar ao bistrot do costume, com a nova mulher, a tal estrangeira, para se "mostrar", depois de ter ficado sem o ouro, depois de ter velado a noite toda Riton ferido na cilada. Depois, telefona para saber se Riton continua melhor. Para marcar o número, põe óculos, óculos que nunca antes usara. "Riton est mort, Max". Gabin fica calado, tanto tempo calado. E vemos o corpo de Riton, deitano na cama, por baixo de um quadro que representa uma mulher muito nua. E vemos no rosto de Riton uma luz admirável. Depois, alguém nota que nunca viu Gabin de óculos. "C'est pour lire". Depois, Gabin volta a pôr o disco na máquina. Depois, a tal mulher que ele só da cama conhecia, belisca-lhe a mão, sem perceber nada de nada, sem saber nada de nada. E depois, Gabin sorri. 

Tudo o que aconteceu não importa e tudo o que importa não aconteceu. A câmara vira a cabeça e fixa-se na máquina dos discos para acabar o filme. 

"La petite phrase" nenhuma palavra a dirá jamais. Só essa música, só o clarinete, só esse brilho nos olhos de Gabin. Quem, como Becker, cantou tão manselinho cantigas de amigo? "Max, tu pourras revenir aprés déjeuner?" O filme acaba à hora de almoço. Max e Riton nunca mais hão-de voltar. 

in “Os Filmes da Vossa Vida”, « Suplemento Vida », 11 de Agosto de 1995, pág. 22