quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Fertile Memory (1981) de Michel Khleifi



por Jessica Sérgio Ferreiro
 

O ciclo de cinema “Palestina Livre: O Cinema como Resistência” propõe um olhar sobre a vida, a memória e a resistência de um povo através das suas próprias imagens. Maioritariamente através do documentário, mas também da ficção, estes filmes revelam histórias de perda e de pertença, de quotidianos sob ocupação e de gestos que afirmam o direito a existir no seu próprio território. Propomos, assim, um ciclo plural (filmes de 1980 a 2024) de um território sob jugo colonial, onde o cinema se torna espaço de memória, expressão e sobrevivência.

 Realizado em 1980, Fertile Memory é o primeiro filme integralmente rodado na Palestina e um dos marcos inaugurais do cinema palestiniano. O filme foi restaurado e digitalizado pela CINEMATEK da Bélgica em 2023, permitindo a exibição deste, décadas depois da sua estreia. Em Fertile Memory, Michel Khleifi mostra o quotidiano feminino como lugar de resistência. Através de duas histórias paralelas, o realizador compõe um retrato político de um país dividido e de uma identidade em exílio permanente. A partir do retrato de duas mulheres palestinianas de gerações e condições sociais distintas: Farah e Sahar, entrando em cena outras mulheres que fazem parte do espaço familiar destas personagens.

Farah, cuja família foi expropriada após a ocupação israelita, é uma viúva, já idosa, obrigada a trabalhar numa fábrica após a perda das suas terras. As suas memórias do passado e as lembranças da perda coexistem com a rotina, refortalecendo a sua obstinação em resistir às pressões israelitas para que “troque”, ou melhor, abandone a sua casa familiar. Sahar, por sua vez, é escritora e professora em Ramallah, confrontada com as limitações impostas pela ocupação e com as tensões próprias do seu tempo, onde tradição, moral e emancipação se entrecruzam em permanente conflito.

Estas duas personagens femininas (uma ancorada no passado, outra projetada no futuro), impelem-nos a reflectir sobre o tempo e o espaço, a memória e o corpo presente como territórios de resistência sob ocupação colonial, revelando, ainda, as tensões entre género, classe e identidade. Em suma, através destas duas figuras, Khleifi aborda simultaneamente a condição feminina e a experiência coletiva da ocupação. Ambas enfrentam opressões múltiplas: a violência externa do poder israelita, a rigidez patriarcal da sociedade e os conflitos interiores de quem procura resistir e existir com dignidade.

O realizador alterna entre o registo documental e a encenação, explorando o modo como o quotidiano (descascar legumes, apanhar o autocarro, cuidar da casa e dos mais novos, cantar) se transforma num acto cultural e de resistência. As imagens tornam-se, assim, um espaço de inscrição e preservação da memória. Através da imagem, o filme regista as práticas, a tradição oral e a cultura material de um povo, visíveis no quotidiano, nos espaços domésticos das personagens, nas arquitectura dos bairros, afirmando a existência da Palestina, da sua história e da sua cultura. Apesar da diversidade religiosa e social que o compõe, é na sua heterogeneidade e nas diversas práticas culturais que o povo palestiniano se reconhece e existe.

A narrativa é fragmentária, composta por planos longos, por gestos e silêncios. O filme avança entre o documental e o encenado, privilegiando a imagética. A câmara detém-se nos rostos, nas mãos, nos campos, nas casas; observa o quotidiano devagar para poder gravá-lo na memória. A ausência de narração imposta permite que as imagens falem por si, revelando um povo cuja vida continua, apesar do cerco e da violência. Cada gesto quotidiano, demarca a presença palestiniana, uma cultura. Em cada prática, a história de um povo, situado em legítimo território. Os objetos que decoram a casa, os retratos dos familiares (alguns desaparecidos, outros exilados), as hortas cultivadas, os pratos cozinhados em grupo, as relações de vizinhança, os instrumentos musicais que acompanham as canções tradicionais, a palavra escrita e declamada por Sahar, são as provas da presença palestiniana, em contraposição à “Lei dos Ausentes”, ditada e imposta pelo governo israelita, que legitima a expulsão dos palestinianos das suas casas e terras.

Mais do que provar a existência e legitimidade de um povo, Khleifi restitui humanidade e “normalidade” à Palestina, filmando-a de dentro, a partir dos espaços domésticos e seus quotidianos. As mulheres são personagens principais, tidas aqui como depositárias da memória e da terra. O título Fertile Memory (Memória Fértil) é tanto uma alusão à fertilidade agrícola quanto à capacidade do pensamento e da memória gerar um futuro. Como referido por Stoffel Debuysere[1], o próprio Khleifi disse que o filme foi feito “para as mulheres da Palestina, e através delas, para a Palestina”. Mais do que um retrato, é um gesto de restituição: dar corpo e voz àqueles que a História tende a marginalizar. Debuysere relembra, ainda, a dimensão ficcionada e utópica que Edward Said denotou ao analisar Fertile Memory: a imagem de Farah a pisar novamente a sua terra, com os braços abertos, é um momento de reconciliação imaginária entre o indivíduo e o território, uma ligação que a ocupação tenta apagar, mas que o cinema reinscreve. Ao centrar-se no olhar feminino e na terra como símbolos da identidade palestiniana, Khleifi inaugura uma nova fase do cinema do país: um cinema da diversidade e da experiência vivida, que rejeita a imagem homogénea e/ou convencionada da nação e expõe as suas contradições e conflitos internos.

A leitura do filme à luz da teoria da necropolítica de Achille Mbembe[2] permite compreender o modo como Khleifi traduz, em termos visuais, as políticas da vida e da morte que estruturam o quotidiano palestiniano. Mbembe define a necropolítica como o poder soberano de decidir quem pode viver e quem deve morrer, um poder que, no contexto colonial e de ocupação, se manifesta na gestão da violência, no confinamento e na precarização da vida através de biopolíticas que, algumas de forma mais subtil e outras de forma mais violenta, pretendem gerir as populações.

Em Fertile Memory, a ocupação não é mostrada através de combates ou confrontos, mas pela administração/gestão (biopolítica) da existência: perda de terra, o acesso aos terrenos para a agriculturas e recursos essenciais, ausência de mobilidade, o arame farpado que acompanha os checkpoints, a lenta erosão da liberdade. A necropolítica aparece aqui como uma força invisível que organiza, ou perturba, o quotidiano e molda o tempo das personagens. No entanto, Khleifi responde a essa política da morte com imagens de vida. O simples acto de cuidar, trabalhar ou lembrar adquire uma dimensão política. Através do cinema, Khleifi reivindica, através da imagem, o direito de existir e de ser visto fora da lógica da violência. Assim, Fertile Memory não é apenas um testemunho histórico, é uma contra-imagem à necropolítica: um filme que faz da sobrevivência um acto de resistência  da memória uma forma de vida. 

 

[1] www.avilafilm.be/en/film/fertile-memory

[2] Mbembe, Achille (2019 [2016]). Necropolitics. Duke University Press.

 

 

Folha de Sala 

 

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

421ª sessão: dia 4 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


Esta terça, “Fertile Memory” de Michel Khleifi no Lucky Star – Cineclube de Braga

Durante o mês de novembro, o Lucky Star – Cineclube de Braga apresenta o ciclo “Palestina Livre: O Cinema como Resistência”, dedicado a quatro obras fundamentais do cinema palestiniano contemporâneo. De diferentes épocas e gerações, estes filmes partilham uma mesma urgência: a de pensar o território, a memória e a sobrevivência cultural de um povo que resiste através da imagem. Como é habitual, as sessões ocorrem às terças-feiras na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30.

Na próxima terça-feira, 4 de Novembro, o Lucky Star – Cineclube de Braga inaugura o ciclo com a exibição de Fertile Memory (1981) ou Memória Fértil, de Michel Khleifi, o primeiro filme inteiramente rodado na Palestina. 
 
Através do registo documental e da construção ficcional, Khleifi filma o quotidiano de duas mulheres de gerações distintas (uma viúva e uma escritora) que vivem sob a ocupação israelita. Farah, viúva, luta pela posse das suas terras confiscadas e Sahar, escritora, procura afirmar-se num meio patriarcal. Assim, Khleifi revela neste filme como o político se inscreve no íntimo e no corpo.

Realizado com poucos recursos, o filme destacou-se pela sua força poética e pelo olhar humanista que rompe com a visão estereotipada da Palestina como mero cenário de conflito. Ao filmar o gesto quotidiano sob uma perspectiva feminina, Khleifi inaugura uma estética que alia resistência e sensibilidade, tornando a memória um verdadeiro território de afirmação.

Michel Khleifi, nascido em Nazaré em 1950, é um dos nomes fundadores do cinema palestiniano moderno. Estudou cinema na Bélgica, onde se radicou, e foi a partir dessa distância que encontrou o espaço para revisitar a sua terra natal com um olhar de quem observa e recorda. O seu trabalho influenciou toda uma geração de cineastas palestinianos e árabes, entre eles Elia Suleiman e Annemarie Jacir.

Apresentado em vários festivais internacionais, tal como Cannes e de Gent, entre outros, Fertile Memory foi amplamente reconhecido pela crítica e hoje é considerado um marco histórico do cinema político e feminista do Médio Oriente. Em 2023, o filme foi restaurado e digitalizado pela Cinematek da Bélgica, permitindo o regresso às salas desta obra seminal, cuja actualidade permanece urgente.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até terça!


quinta-feira, 30 de outubro de 2025

As Fado Bicha (2024) de Justine Lemahieu


por Estela Cosme
 
À primeira vista, nada sobre o fado é revolucionário. Intrinsecamente apelidado de tradição centenária, é difícil de imaginá-lo fora das casas de fados habituais, sem as convenções predefinidas que o acompanham, sem as amarras que o atam ao passado. Até que um dia o fado seguiu-se com a palavra “bicha”, e as nossas suposições foram postas em causa. Tudo graças ao poder e ao talento do duo Fado Bicha (ou As Fado Bicha), composto por Lila Fadista e João Caçador, cujo projeto demonstra que o revolucionário tem sempre origem no tradicional, pois só depois de olhar ao que já existe é que podemos criar algo novo. E por muito que possa incomodar aos mais conservadores, o que brilha tem sempre o seu lugar na ribalta (e no "zeitgeist" cultural português).
 
Mas o que este grupo tem de revolucionário não é só consequência dos elementos visuais arrojados, embora estes dissolvam a tradicional binariedade de género. Para além de cantarem sobre histórias e experiências da comunidade LGBTQIA+, o revolucionário existe também devido à vulnerabilidade que tanto João como Lila incutem àquilo que tocam e cantam. Porque não existe algo mais vulnerável que a verdade, coisa que o duo transmite com clareza e com compromisso sempre que pisam os palcos. O documentário As Fado Bicha vai ainda mais longe e mostra-nos que essa veracidade existe porque é o espelho da honestidade a que assistimos nos camarins. Quer se estejam a maquilhar a si próprios, ou a maquilhar-se um ao outro, Lila e João demonstram uma franqueza que só se poderia capturar num novo tipo de fado. E por isso o tiveram que reinventar.
 
Este novo fado pode não agradar aos saudosistas e aos tradicionalistas. A mudança é inimiga da preservação, mas só com ela é que pode haver uma evolução do género musical e da nossa cultura. “Não há mudança sem desconforto” afirma João Caçador no documentário, defendendo que o trabalho da banda é necessário para que o fado evolua para novas formas de se expressar, e para ter novas coisas que expressar também.
 
A música não existe num vácuo e deve moldar-se aos ventos de mudança que existem na sociedade portuguesa. Abrir as portas do fado a questões emergentes de identidade, de sexualidade e de expressão não só enriquece o género como traz um novo público que o quer ouvir e aplaudir. Num mundo em que nos encostam à parede para sermos quem querem que nós sejamos e não quem realmente somos, o fado não é só destino e passado. O fado é ação e mudança também. E se algo está mal, muda-se. 
 
 
 

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Tornar-se Um Homem na Idade Média (2022) de Isadora Neves Marques



por António Cruz Mendes
 
O que é “natural”? O tema do filme de Isadora Neves Marques é introduzido pelas imagens da perplexidade de André face a um pedaço de carne produzida a partir das células estaminais de um mamífero. Para que esse bife existisse, nenhum animal foi morto. Mas, pode-se comer? É essa carne “natural”?
 
André deseja ser pai, mas os seus espermatozoides não se revelam suficientemente “competentes” para engravidar Mirene, e Vicente quer ser mãe de um filho de Carl. No caso das situações abordadas pelo filme, os “papéis” tradicionalmente atribuídos aos homens e às mulheres, habitualmente representados pelos símbolos não parecem adequados. Um homem pode não poder ser pai e uma mulher pode não ter um útero. Porém, esses “papéis”, o da paternidade e o da maternidade, podem ser assumidos à revelia das noções tradicionais de sexo e de género.
 
A habitual associação de sexo e género foi há muito tempo questionada por Simone de Beauvoir que, fiel ao princípio da filosofia existencialista que nos diz que “a experiência precede a essência”, afirmou, em O Segundo Sexo, que “não se nasce mulher, torna-se mulher”. Beauvoir inspirou a chamada “2ª onda” dos movimentos feministas, defendendo que a mulher, não possui uma essência determinada pela biologia, mas está “condenada à liberdade”. Poderá sempre aceitar ou recusar o papel que lhe foi prescrito pelas ideias dominantes na sociedade onde nasceu. Só por “má-fé” se pode escusar da responsabilidade de decidir acerca da sua própria vida. No filme, nem Carl, nem Mirene se revelam particularmente interessados em tornarem-se pai ou mãe. Aceitam essa possibilidade apenas por decidirem aceder à vontade dos seus companheiros.
 
O caso de Vicente é diferente e remete-nos para as ideias de Judith Butller acerca de sexo e género. A filósofa americana recusa a distinção entre uma ideia de sexo, que nos remete para o corpo, e uma ideia de género, que nos envia para normas e papéis sociais, ideia que se encontra ainda presente em Simone de Beauvoir, e considera que também o sexo é uma realidade ambígua, fluída e susceptível de variações. Demonstram-no os exemplos de pessoas transgénero, transsexuais ou não-binárias. Ou seja, também a definição de sexo, no entender de Judith Butller, não é neutra, mas resulta de um discurso ideológico que pode e deve ser desconstruído.
 
Todas estas questões perpassam em Tornar-se homem na Idade Média. Há uma obra da artista norte-americana Barbara Kruger onde se lê: “Your body is a battleground”. Essa batalha é travada entre diferentes sujeitos políticos e culturais. Vicente, Carl, André e Mirene enfrentam-na de forma lúcida e autodeterminada. Porém, não o fazem com alegria. Um sentimento de melancolia atravessa todo o filme, que termina com imagens de um mar revolto que se estende até ao infinito. 
 
 
 

domingo, 26 de outubro de 2025

420ª sessão: dia 28 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Esta terça, cinema duplo no Lucky Star – Cineclube de Braga e os Encontros da Imagem

De 23 de setembro até ao final de outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga apresenta, em parceria com os Encontros da Imagem, um ciclo de oito filmes com sessões às terças-feiras na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. Sob o tema Manifestação de Interesse, a edição de 2025 abre espaço à diversidade de linguagens visuais, explorando as transformações sociais, a memória e noções de identidade. Neste espírito, o cineclube junta-se ao programa com uma seleção que dialoga directamente com a proposta do festival. 

Na próxima terça, 28 de outubro, às 21h30, o Cineclube de Braga propõe dois olhares singulares sobre o corpo, a identidade e as formas de resistência contemporânea. Tornar-se Um Homem na Idade Média, de Isadora Neves Marques, e As Fado Bicha, de Justine Lemahieu, aproximam-se no modo como interrogam a norma e as fronteiras do género, transformando o cinema num espaço de reflexão e de liberdade. Justine Lemahieu estará presente na sessão.

Em Tornar-se um Homem na Idade Média, a trama segue dois casais: Mirene e André, Carl e Vicente; que enfrentam desafios relacionados com a fertilidade e o desejo de gerar um filho biológico. O filme reflete sobre a reprodução, a parentalidade e a tecnologia, questionando os limites entre o natural e o artificial. 

Já em As Fado Bicha, Justine Lemahieu segue o duo Lila Tiago e João Caçador, que reconfigura o universo tradicional do fado a partir de uma perspetiva queer e feminista. O documentário acompanha o percurso artístico e pessoal da banda, mostrando como a sua performance subverte convenções e dá voz a novas formas de expressão. Ao cruzar entrevistas, ensaios e atuações, Lemahieu revela o poder do fado como território de resistência e reinvenção. 

Tornar‑se um Homem na Idade Média participou no International Film Festival Rotterdam em 2022, onde foi premiado. O filme As Fado Bicha integrou a Selecção Oficial no IndieLisboa e no Festival Internacional de Cinema Queer Porto. Ambos os filmes, apesar de distintos nas formas, afirmam o cinema como espaço de transformação, onde o corpo e a arte se tornam instrumentos de emancipação e de criação de novas narrativas possíveis.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até terça-feira!
 
 

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

KORA (2024) de Cláudia Varejão + Onde as Ondas Quebram (2024) de Inara Chayamiti



por Jessica Sérgio Ferreiro

Em Transições, última temática lançada pelo festival Encontros da Imagem, apresentamos quatro filmes distribuídos por duas sessões, cada uma composta por uma curta-metragem e uma longa-metragem. A primeira sessão é composta pela curta-metragem KORA de Claúdia Varejão e pelo filme Onde as Ondas Quebram de Inara Chayamiti. Ambos os filmes recorrem a técnicas mistas, combinando fotografia, o arquivo e a imagem contemporânea.

KORA acompanha a presença de mulheres refugiadas que encontraram em Portugal um novo lugar para viver. Cada uma carrega consigo a marca do passado, inscrita no corpo e nas fotografias dos que ficaram para trás, mas, também, no novo retrato seu que conjuga passado e presente num lugar onde tentam reconstruir as suas vidas e encontrar o sentimento de casa.

O filme articula, com delicadeza poética, o íntimo e o político através dos testemunhos de mulheres oriundas da Ucrânia, Afeganistão, Sudão, Rússia e Síria, forçadas por diferentes formas de violência (guerra, discriminação, perseguição à limitação das liberdades individuais e ameaça à integridade física, etc.) a deixar as suas casas, terras e famílias. A partir dessas memórias, constrói-se um olhar que é simultaneamente pessoal e coletivo, revelando o processo de reconstrução do presente a partir da perda e da distância.

Como lembra Georges Didi-Huberman, em A Imagem Sobrevivente[1] (2013), as imagens são “sobreviventes”: guardam as marcas do tempo e são portadoras de memórias. Carregam vestígios do passado, como “sobrevivências” que atravessam o espaço e o tempo e se manifestam quando convocadas. As imagens são impregnadas de memória e possuem uma força simbólica que transcende a sua materialidade e sobrevivem à morte.

No filme Onde as Ondas Quebram, o mar é metáfora dos caminhos navegados que compõem as nossas vidas, bem como dos movimentos migratórios que estão na base da História Humana. Inara Chayamiti através do espólio fotográfico da família, do arquivo e do registo documental, revisita a história dos seus antepassados, de par com a História da comunidade japonesa no Brasil, expondo as dinâmicas coloniais, as políticas migratórias e a exploração dos migrantes, incessantemente desumanizados e tidos como meros “braços”, corpos onde se inscreve a violência estrutural de um sistema arquissecular que tem como fim o aproveitamento económico.

O filme confronta a memória da imigração, muitas vezes “branqueada” nas narrativas de integração, com as tensões da pertença e da identidade (relacional com base na demarcação e hierarquização da diferença), revelando as formas subtis e não-subtis de exclusão e assimilação que atravessam gerações. Assim, através da “imagem sobrevivente” e do testemunho, as memórias familiares tornam-se também memória colectiva das vidas marcadas pela travessia migratória, pela passagem do tempo e pelos caminhos percorridos onde se procura e, porventura, se constrói a casa.

Em suma, a narrativa articula temas como a emigração, o racismo, a xenofobia e a pertença, mas recusando a “exotização” da diferença e a fixidez e homogeneidade (impossível) que se atribui à identidade. Inara Chayamiti filma com proximidade, devolve dignidade e voz a quem habita o espaço, ou a “ponte”, entre dois mundos, demarcados pelas rotas que separam os vários países e suas pretensas identidades. A realizadora é também fruto dessa idas e voltas: “Nipo-brasileira”, encontrou em Braga o lugar que hoje chama de lar. Assim, esta sessão recorda-nos que são as pessoas que compõem os lugares, não como proprietárias, mas como presença viva que os habita e transforma. Os espaços existem através delas e nelas se tornam casa. 

  

[1] Didi-Huberman, G. (2013). A imagem sobrevivente: História da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg (V. Ribeiro, Trad.). Contraponto Editora. (Obra original publicada em 2002)

 

 Folha de Sala