quarta-feira, 15 de maio de 2024

Apresentação de "A Noite do Demónio", por Pedro Favaro

Night of the Demon (1957) de Jacques Tourneur



por João Palhares

Quem foi Jacques Tourneur? Entre as muitas formas que existem para tentar responder a essa pergunta, a melhor, no caso do franco-americano, talvez seja mesmo dar-lhe a palavra. “Eu fui assistente primeiro,” disse ele a Patrick Brion e Jean-Louis Comolli[1], “depois montador. Percebi depressa que mesmo que se seja um bom assistente, temos poucas hipóteses de nos tornarmos realizadores. Aprendi então montagem em Berlim porque me queria absolutamente tornar cineasta, e é bem mais fácil passar de montador a realizador do que virar cineasta depois de se ter sido assistente. Sabem que um assistente muito bom não é necessariamente um bom cineasta e, vice-versa, um realizador não tem as qualidades de organização e precisão de um bom assistente. Um cineasta deve ser sempre um bocado um... inventor. Eu montei quatro ou cinco filmes, os maiores filmes do meu pai: Les Gaités de l’Escadron, As Duas Órfãs, Accusée... levez-vous! e mais uns quantos de cujos títulos me esqueci. Emile Natan, que nessa altura era o chefe, propôs-me então (com uma «cunha» do meu pai) o meu primeiro filme. Eis como comecei.” 

O pai de Jacques Tourneur, nascido Jacques Thomas, era Maurice Tourneur, cineasta francês nascido em 1876 e que trabalhou também na Alemanha e nos Estados Unidos durante a era do cinema mudo, terminando a carreira de novo em França. Viveu quase noventa anos e tem perto de cem créditos em seu nome, tendo sido considerado por Clarence Brown, seu assistente de realização e montador em inúmeros filmes, tão importante para os cineastas americanos como D.W. Griffith. “O meu pai tinha uma particularidade que não estava muito disseminada na altura,” disse Tourneur a Bertrand Tavernier[2], “era apaixonado por todas as investigações científicas, médicas e filosóficas. A biblioteca dele era inacreditável. Ele seguia de forma muito minuciosa todas as descobertas da psicanálise. Foi em casa dele que eu descobri Freud, Jung, Adler ou Havelock Ellis. Eu nunca leio romances. Apenas ensaios, tratados científicos. É muito mais apaixonante.” 

Foi graças a pessoas como Brion, Comolli e Tavernier, mas também Chris Wicking, Pierre Guinle, Simon Mizhari, Philippe Bernert, Charles Higham, Joel Greenberg, Joel E. Siegel, Eric Leguèbe, Jacques Manlay e Jean Ricaud, que hoje sabemos que Tourneur, para se proteger dos produtores e dos técnicos, cortava totalmente o som quando os actores deixavam de falar e se dirigiam para algum sítio abrindo uma porta ou subindo escadas, para haver silêncio completo nessas situações, que iluminava as cenas de forma muitíssimo cuidada e deliberada para permitir que os actores interpretassem sem distracções e quase intimamente, quase em segredo, induzidos pela luz baixa, levando-os às vezes para os locais mais sossegados dos estúdios para poderem ensaiar, que sonhou com um cinema sem estúdios, sem teatro, sem cenas, sem quarta-parede, planos gerais, planos médios “e essa porcaria toda”[3], que achava que os melhores filmes que tinha realizado eram I Walked with a Zombie, Stars in My Crown e O Arrependido, com menções ainda para A Pantera, A Noite do Demónio, O Facho e a Flecha, O Expresso de Berlim, Canyon Passage e Wichita, e que quis a dado momento que a Hammer lhe produzisse “o verdadeiro filme de terror”, que para ele nunca tinha sido feito, sobre a guerra entre os vivos e os mortos. 

Este filme, nunca realizado por ele, fosse em Inglaterra, na França ou nos Estados Unidos, iria chamar-se “Whispers in a Distant Corridor”, e numa das fases de desenvolvimento contava com o magnata Howard Hughes, o terceiro homem mais rico do mundo, e um poeta galês chamado Richard Burton como personagens. Depois de contactar o M.I.T., a Duke University, o Cal Tech e outras universidades americanas e europeias, Hughes incumbia Burton de procurar uma casa assombrada na Escócia para lhe provar que os fantasmas não existiam. Com quatrocentos homens de batas brancas, equipados com computadores de última geração, aparelhos de infra-vermelhos, microscópios acústicos, geradores, gravadores e casas-de-banho portáteis, eles conseguiam finalmente contactar fantasmas e descobriam que esses fantasmas queriam ajudar a humanidade. Abriam também, no entanto, uma brecha e o mundo a três dimensões e de uma só realidade como o conhecemos era invadido por mundos paralelos e pelo “exército dos mortos”. 

Jacques Tourneur acreditava no sobrenatural. Como acreditou Victor Hugo, depois de participar em sessões espíritas organizadas pela Madame Delphine de Girardin, durante o seu exílio na ilha de Guernsey, no Canal da Mancha. “There are more things in Heaven and Earth, Horatio, than are dreamt of in your philosophy,” responde o príncipe dinamarquês ao amigo na quinta cena do primeiro acto de Hamlet, de William Shakespeare, precisamente quando Horatio lhe diz que não acredita em fantasmas. Em A Noite do Demónio, Dana Andrews interpreta um psicólogo céptico e muito prático que é testado e contradito em todas as ocasiões durante a sua investigação e que só mesmo perto do final do filme é que se convence e se consegue livrar do pergaminho amaldiçoado e espoletar outro dos finais sintéticos e fabulosos de Tourneur, para juntar aos de Canyon Passage, Anne of the Indies, Encontro nas Honduras, Wichita, Os Fabricantes do Medo ou Timbuktu, e que só por si mereciam um grande estudo, tal como os de Alfred Hitchcock, Michelangelo Antonioni e John Carpenter. Quantas vezes ou por quanto tempo é que temos de olhar para um corredor até começar a vislumbrar o abismo, esse tal que se diz que nos olha de volta mesmo nos olhos? Dana Andrews, perdido nos seus pensamentos enquanto procura o seu quarto de hotel, imagina ou ouve mesmo uma canção antiga enigmática e fundadora, olha uma e várias vezes para os corredores e até nós pensamos ver sombras ou ouvir sussurros distantes. Pensamos numa epígrafe encontrada no livro fundamental de Chris Fujiwara sobre Tourneur, atribuída a René Descartes. “Não há indicações conclusivas de que a vida acordada possa ser distinguida do sono.” Faz-nos lembrar o mais poético e desesperado “Is all that we see or seem / but a dream within a dream,” de Edgar Allen Poe. As luzes apagam-se e ficamos sozinhos, a fitar as imagens que criámos para nos atormentarmos a nós próprios sob o doce encanto dos pesadelos e que não conseguimos deslindar: um puxão inesperado para dentro duma sala pequena e lotada. Carne solta, pele e músculos saídos. Um crânio a descoberto. Visões em relâmpagos e pouco nítidas que nos fitam quando avançamos num corredor enorme e desolado. E recuamos, sem querer saber se há lá alguma coisa ou não. Sim, “maybe it's better not to know.” E os fantasmas não existem.

[1] in «Cahiers du Cinéma» nº 181, Agosto de 1966.
[2] in «Positif» nº 132, Novembro de 1971.
[3] «Cahiers du Cinéma» nº 181.



domingo, 12 de maio de 2024

343ª sessão: dia 14 de Maio (Terça-Feira), às 21h30


“A Noite do Demónio” de Jacques Tourneur, no cineclube 
 
Este mês de Maio, o Lucky Star – Cineclube de Braga promove um ciclo dedicado a cinema de terror realizado na Europa, com obras do cineasta britânico Terence Fisher, o franco-americano Jacques Tourneur, o francês Georges Franju e o italiano Dario Argento. As sessões realizam-se sempre às terças-feiras às 21h30 no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 
 
O ciclo, intitulado “Europa Terror Expresso - Clássicos do terror europeu”, continua terça-feira à noite com a exibição de A Noite do Demónio de Jacques Tourneur. O filme centra-se nas investigações do psicólogo norte-americano John Holden, que viaja para Inglaterra para assistir a uma convenção sobre fenómenos parapsicológicos quando é informado da morte em circunstâncias misteriosas de um amigo, o Professor Harrington, que planeava expor as actividades de uma seita satânica. 
 
Jacques Tourneur foi um cineasta franco-americano que fez o essencial da sua carreira em Hollywood, embora tenha também trabalhado em França, Itália e Inglaterra. Filho do ilustrador e cineasta Maurice Tourneur e da actriz Fernande Petit, nasceu na cidade de Paris em 1904, e faleceu em Bergerac em 1977. Realizou mais de trinta longas-metragens, devendo-se contar ainda as suas curtas-metragens e o trabalho que fez para a televisão norte-americana. 
 
Na entrada sobre A Noite do Demónio no seu dicionário de cinema, revisto e republicado em dois volumes no final de 2022, o crítico e historiador francês Jacques Lourcelles escreve que “Tourneur regressa à veia das produções Val Lewton, acrescentando-lhe mesmo um aumento de sobriedade, uma inquietude mais gélida, mais abstracta, mais refinada e ainda mais impressionante.” 
 
“Envolto em cepticismo,” continua Lourcelles, “o herói, Holden, vai ver as suas certezas a cair uma a uma, durante um trajecto fantasmagórico que no fim o deixa arquejante e aturdido, não acreditando já mais na ciência do que na magia negra, não acreditando mais no que quer que seja senão nas suas dúvidas, que já não quer de todo tentar esclarecer.” 
 
As sessões do mês de Maio contam com apresentações em vídeo de Cauby Monteiro, Pedro Fávaro e Fernando Costa, integrantes da produtora de cinema brasileira Asilo Febril. 
 
As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça!

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Apresentação de "As 2 Faces do Dr. Jekyll", por Fernando Costa

The Two Faces of Dr. Jekyll (1960) de Terence Fisher



por António Cruz Mendes

Terence Fisher realizou dezenas de filmes protagonizados por uma vasta galeria de conhecidos monstros: Frankenstein, Drácula, o Fantasma da Ópera, a Múmia… Desvalorizados pela crítica quando estrearam, houve quem viesse mais tarde a reconhecer a sua qualidade. 
 
Em As duas faces do Dr. Jekyll, Terence Fisher trouxe para a tela dos cinemas a personagem da bem conhecida novela O Médico e o Monstro. No entanto, o argumento de Wolf Mankowitz é estranho à história escrita por R. L. Stevenson. Nesta, só há protagonistas masculinos mas, no filme, a mulher tem um papel fundamental e, tal como sucede noutras obras de Fisher, o horror associa-se ao erotismo. Muitos recordarão por certo, a volúpia com que, nos seus filmes, jovens donzelas oferecem o seu pescoço aos dentes do Conde Drácula... Neste caso, grande parte da acção decorre em dois cenários contrastantes: o ambiente do laboratório do Dr. Jekyll, sombrio, austero e monocromático, e o da Esfinge, um cabaret onde as cores explodem e reina a liberdade e a devassidão. Estes dois mundos espelham-se no rosto dos protagonistas. O Dr. Jekyll e o Mr. Hyde são encarnados pelo mesmo actor, mas Paul Mason, quando assume o papel do primeiro, aparece-nos com uma cabeleira e sobrancelhas postiças, uma fácies torturada e o rosto sob uma pesada maquilhagem e, quando encarna o segundo, surge-nos despido de todos esses adereços, livre, espontâneo, de olhar fulgurante e sorriso aberto. 
 
O conflito interior do Dr. Jekyll com o seu alterego, Mr. Hyde, tem sido por vezes entendido como exemplificando aquele que opõe o Id ao superego. Para Freud, o Id, fonte de impulsos e desejos inconscientes, busca o prazer imediato. É irracional e amoral. O superego, pelo contrário, encarna os valores socialmente aceites e funciona como um juiz da acção humana. O conflito entre ambos é gerido de uma forma apenas parcialmente consciente pelo ego, que obedece ao “princípio da realidade”, procurando minimizar todas as consequências negativas que possam advir da busca do prazer. Embora a novela de Stevenson tivesse sido escrita muito antes de Freud ter enunciado a sua teoria psicanalítica, esta tese pode corresponder ao facto de, nela, Mr. Hyde ser descrito como um tipo impulsivo e bestial, mas também como sendo muito baixo, de uma altura muito inferior à do Dr. Jekyll, o que se explicaria por o seu ser ter vivido sempre reprimido, impedido de se exercitar livremente. 
 
No filme de Terence Fisher, apesar de Mr. Hyde nos aparecer sob uma forma de um homem atraente e bem-parecido, essa interpretação também é admissível. O diabo tem de saber ser tentador. Porém, As duas faces de Dr. Jekyll pode sugerir-nos outras leituras. Há nele uma nota de crítica social que importa sublinhar, uma denúncia da hipocrisia da puritana sociedade Vitoriana, da qual a Esfinge nos revela uma das suas faces ocultas. Quando Hyde quer conhecer os bas fonds da sociedade inglesa, é Paul Allen, um gentleman na sua aparência, que lhe serve de guia. E pode ser visto ainda como um caso de crime passional. Apesar do seu cinismo e da sua hipocrisia, Kitty está apaixonado por Allen e rejeita tanto os pedidos de ajuda de Jekyll, como os avanços amorosos de Hyde. E este, que a estupra e assassina, acaba por ser o instrumento da vingança de Jekyll. Será, talvez, a necessidade imperiosa de a realizar o que pode explicar que, no conflito interior que o consome, acabe por ser Hyde a levar a melhor. 
 
Enfim, na novela de Stevenson, o honrado Jekyll suicida-se porque percebe que essa é a única forma que lhe permite liquidar o brutal e sádico Hyde que o habita. No filme de Terence Fisher, o final fica em aberto. Diante dos olhos da polícia, Jekyll e Hyde revelam-se como uma só pessoa, mas o autor material dos crimes cometidos praticou-os contra a vontade do homem que têm diante de si. Como irá lidar a Justiça com o seu caso?



domingo, 5 de maio de 2024

342ª sessão: dia 7 de Maio (Terça-Feira), às 21h30


“As 2 Faces do Dr. Jekyll”, para ver na biblioteca 
 
Este mês de Maio, o Lucky Star – Cineclube de Braga promove um ciclo dedicado a cinema de terror realizado na Europa, com obras do cineasta britânico Terence Fisher, o franco-americano Jacques Tourneur, o francês Georges Franju e o italiano Dario Argento. As sessões realizam-se sempre às terças-feiras às 21h30 no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 
 
O ciclo, intitulado “Europa Terror Expresso - Clássicos do terror europeu”, começa terça-feira à noite com a exibição de As 2 Faces do Dr. Jekyll de Terence Fisher. Baseado no célebre livro O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson, o filme troca as voltas à história original e apresenta-nos um Dr. Jekyll bem mais insípido e um Sr. Hyde nada monstruoso fisicamente mas antes esbelto e muito bem sucedido socialmente. 
 
Fisher nasceu a 23 de Fevereiro de 1904, em Maida Vale, e faleceu em Twickenham a 18 de Junho de 1980, aos oitenta anos. Fez perto de sessenta filmes, sendo mais conhecido pelos que realizou para a produtora Hammer, fundada em 1934 por William Hinds e James Carreras, e talvez particularmente pelos ciclos dedicados às personagens do conde Drácula e do barão Frankenstein, interpretadas por Christopher Lee e Peter Cushing. 
 
“O estilo de Fisher é um estilo clássico, equilibrado, por vezes um pouco lento,” escreveu o crítico e historiador francês Jacques Lourcelles sobre o cineasta britânico no seu dicionário de cinema. “Desprovido de exibicionismos e de insistência, ele vai no entanto até ao limite do que se podia tentar, na altura em que cada um dos filmes foi realizado, no domínio do terror visual.” 
 
Falando precisamente sobre As 2 Faces do Dr. Jekyll, de 1960, o crítico espanhol Jesús Cortés escreveu em 2011 que “a variação acometida por Terence Fisher sobre uma das grandes novelas de finais do século XIX, O Médico e o Monstro, escrita por Robert Louis Stevenson em 1886, chega no momento de máxima criatividade do grande cineasta inglês, coincidindo com o apogeu ou o equador dos ciclos sobre outras personagens míticas da literatura fantástica.” 
 
As sessões do mês de Maio contarão com apresentações em vídeo de Cauby Monteiro, Pedro Fávaro e Fernando Costa, integrantes da produtora de cinema brasileira Asilo Febril. 
 
As sessões do Lucky Star ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 1 de maio de 2024

Dina e Django (1981) de Solveig Nordlund



por Estela Cosme

Dina é jovem, sonhadora e meiga, mas sobretudo é rebelde e destemida. Leva ao peito uma chave, tendo sempre consigo o único acesso ao seu mundo interior. Embora esteja apenas a começar a vida, o universo de Dina é bem mais rico que os senhorios da casa onde mora. 

Pouco depois de a conhecermos, vemos Dina de olhos abertos, inquieta numa noite calma, deixando o conforto da cama da avó pela frieza do chão da casa de banho, onde finalmente pode partilhar os seus pensamentos. É através do seu diário, um dos seus poucos pertences nesta casa de estranhos, que obtemos a pista mais importante para desvendar o destino de Dina. 

"Lisboa, 17 de Março de 1974". 

Dina é como todas as jovens da sua idade, com uma tremenda ânsia de experienciar a vida, impaciente por expandir o seu mundo para fora do diário, para fora da cozinha da avó, para fora da janela da escola. O que ela não sabe é que em breve uma rebelião estará à porta do seu liceu no Largo do Carmo. Mas Dina não espera e põe em marcha a sua própria revolução. 

É comum que na nossa sociedade as vivências de adolescentes sejam subestimadas, postas de parte como consequências inconvenientes do crescimento. Um sobressalto em alto mar antes da chegada a bom porto. Mas o filme de Solveig Nordlund mostra precisamente o contrário, focando-se numa história que tem tanto para contar como a de um adulto, inclusive em tempos de mudança. Dina emerge como uma ligação entre o passado e o futuro, ilustrando o quão difícil é viver no intermédio. Pior ainda quando se está a tentar estabelecer uma individualidade, sobretudo uma que resista a um sistema político opressivo. 

A rebeldia de Dina é discreta numa ditadura incessante e cruel, e nada parece causar-lhe grandes problemas, à exceção de uma camisola. É na atenção que os homens mais velhos lhe prestam que ela encontra a sua forma de escapar à monotonia da adolescência, o que lhe trará consequências nefastas. Mas o amor está ao virar da esquina. E os tanques também. 

A vida de Dina muda radicalmente quando conhece Django, tão misterioso como o seu nome, um enigma de casaco de cabedal, com promessas de um amor que ela só conhece das bandas-desenhadas. O começo é o típico mar de rosas até que Django se mostra cada vez mais possessivo. Enquanto as ruas da cidade se enchem de esperança e alívio pelo fim da brutalidade do regime findado, o amor de Dina e Django azeda e complica-se, tornando-se não só violento mas também inquebrável, com um pacto de sangue que manchará as suas vidas para sempre. 

A revolução de Dina e de Django é difícil de presenciar, sobretudo quando entram numa espiral de criminalidade que não se fica apenas pelos roubos e sequestros. É inquietante ver quando Django esconde num cobertor uma espingarda, um dos símbolos da revolução de Abril, desta vez sem cravo, uma mera arma para perpetrar os seus crimes. É ainda mais doloroso ver quando é usada, num momento de pânico, não só por ele, mas também por Dina, já não mais inocente, nem perante a lei nem perante a sua própria consciência. 

Enquanto dorme, Dina agarra a chave que leva ao pescoço. Agarra também a sua ligação ao passado para poder escapar ao presente. Comete por isso mais um ato de rebeldia, tentando assim evitar um destino trágico. Quebra então a sua submissão a Django, mas é tarde demais, e a sua adolescência chega a um fim precoce demais. 

As palavras da sua avó ecoam enquanto vemos o triste desfecho de Dina: “O mais importante é o amor.” Será verdade? 

É o amor que leva Dina algemada a um destino trágico, um efeito da nova liberdade das mulheres, mas também castigo da ditadura dos homens. Vemos a injustiça de um presente aprisionado enquanto se grita por liberdade nas ruas. A sua revolução é uma sem cravos. 

Dina aprende a lição com uma pena demasiado pesada: não há amor sem liberdade. E essa é a chave que devemos levar sempre ao peito.