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quinta-feira, 29 de maio de 2025

Noite de Estreia (1978) de John Cassavetes



por António Cruz Mendes
 
Com Noite de Estreia, encerramos o ciclo que dedicamos a John Cassavetes. Do realizador, já nos deu conta Jessica Ferreiro na Folha de Sala que redigiu para Sombras, onde nos chama a atenção para o lugar ocupado por ele no chamado “cinema independente” americano: os seus filmes são de baixo orçamento, dispensam grandes recursos técnicos e afastam-se dos cânones dominantes em Hollywood para nos oferecer uma imagem crua da vida de pessoas comuns. Um pequeno grupo de actores e de figurantes repete-se em várias das suas obras, o que contribui também para que todas elas compartilhem um evidente “ar de família”.
 
O filme que apresentamos hoje debruça-se sobre o mundo do teatro, da vida das pessoas que lhe dão forma – dramaturgos, encenadores, actores e daqueles que mais de perto os acompanham. Algumas cenas decorrem no palco. A câmara, fixa e em posição frontal, oferece-nos então a perspectiva do espectador. Outras vezes, perscruta os bastidores, aproxima-se das personagens e sonda o seu multifacetado mundo interior.
 
Mas, aqui, queria sobretudo destacar o papel de Gena Rowlands, que morreu há dez meses com 94 anos de idade e que foi uma atriz excepcional. Neste ciclo que dedicamos a Cassavetes pudemos vê-la em Rostos e em Uma mulher sob influência e, agora, podemos comprovar de novo a sua excelência em mais um filme do seu marido.
 
Em Noite de estreia, Gena Rowlans interpreta um duplo papel, como Virgínia e como Myrtle Gordon. Virgínia é a personagem central de uma peça de teatro, “A segunda mulher”, escrita por Sarah Goode e encenada por Many Victor. É ela que, vendo arrefecer a paixão que já sentiu pelo seu companheiro, decide visitar o seu primeiro marido, agora casado com uma outra mulher, de quem teve vários filhos. A presença de Myrtle no boçal e confuso meio doméstico onde é introduzida é patética. A sua juventude e as suas paixões inscrevem-se num passado que ela percebe já não ser recuperável. E a mesma intuição está presente em Myrtle que, na peça, contracena com Maurice, o seu próprio marido. Ficção e realidade confundem-se. Quando se ensaia a cena em que ele a esbofeteia, quem é que a agride de facto?
 
Sabemos da importância do Actors Studio na formação de muitos actores, nos Estados Unidos. Inspirado no “método” de Stanislavski, aí desenvolvido por Lee Strasberg, pretende-se que os actores não se limitem a “representar”, usando técnicas convencionais, mas se fundam com a personagem que interpretam, descobrindo neles próprios o tipo de afinidades que as caracterizam. Myrtle sabe que, interpretando Virgínia, é a perda da sua própria juventude que terá de assumir. Virgínia colar-se-á à sua própria pele e mostrá-la-á aos olhos do seu público como a “velha” que Sarah Goode já é e que ela recusa com todas as suas forças poder vir a ser. Assim, a sua interpretação torna-se impraticável, os ensaios decorrem de uma forma caótica, a tensão entre a actriz, a autora e o encenador evolui num crescendo e, à medida que se aproxima da noite de estreia, adivinha-se um estrondoso fracasso.
 
O acidente que vitima uma sua admiradora vai potenciar esta situação. O fantasma da jovem atropelada surge à actriz sob a forma da jovem Myrtle e, por fim, tudo se decide num combate mortal entre as duas. Só assassinando esse fantasma Myrtle poderá encarnar Virgínia.
 
Finalmente, chega a noite de estreia. Myrtle chega ao teatro destroçada, mas, com a ajuda de muito café, consegue recompor-se. No palco, ela e Maurice improvisam. Perante o desconforto de Sarah Goode e o olhar irónico de Many Victor, afastam-se do guião e transformam “A segunda mulher” numa comédia. O público reage efusivamente. O teatro que, afinal, é fingimento, venceu. 
 
 

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Uma Mulher Sob Influência (1974) de John Cassavetes



por Catarina Bernardo 

Uma Mulher sob Influência não é apenas um drama sobre saúde mental, mas também é um retrato devastador da fragilidade humana diante das expectativas sociais. Sobre como a sociedade não consegue lidar com aqueles que fogem aos padrões vigentes.
 
O filme leva-nos a conhecer Mabel, uma mulher incompreendida por aqueles que a rodeiam, que tenta corresponder ao papel de esposa e mãe ideal, construídos socialmente. Ao longo do filme, a protagonista sente-se cada vez mais sufocada por um ambiente que exige contenção, normalidade e obediência.
 
Cassavetes tentou criar um retrato humano e autêntico de uma mulher vista como “louca” por aqueles que lhe são próximos. Na verdade, é uma mulher sensível, generosa e amorosa, cuja instabilidade emocional é uma consequência das pressões sociais e que piora, ao longo do filme, devido à falta de compreensão e sensibilidade da sua família.
 
O realizador mostra-nos como as emoções e as relações humanas são complexas e não lineares, compostas por sentimentos contraditórios, gestos ambíguos e com falhas frequentes de comunicação. A forma como os personagens ao redor de Mabel (incluindo o marido, Nick) lidam com a sua saúde mental, revela a profunda falta de ferramentas emocionais com que muitas pessoas enfrentam a diferença. Nick ama Mabel, mas a sua reação é marcada pela impulsividade, censura ou repreensão e, por vezes, violência emocional. O filme mostra que a verdadeira "doença" pode estar numa sociedade incapaz de escutar, acolher e aceitar a fragilidade do outro.
 
Quanto a instabilidade emocional de Mabel se acentua, é internada num hospital psiquiátrico durante seis meses, não apenas como medida terapêutica (ineficaz), mas também como gesto de silenciamento por parte de sua família. O internamento não consegue ajudar Mabel, nem as suas dificuldades são compreendidas pelos demais. Este serve apenas para afastá-la, de modo a preservar, de certa forma, a imagem da família. O realizador retrata este aspecto para fazer uma crítica ao modo como as instituições, as pessoas e a sociedade, em geral, encara a doença psiquiátrica, sendo, por isso, incapaz de compreender, oferecer apoio e ajudar ativamente. As soluções simplistas e desumanizadoras, como o confinamento, parecem servir apenas para afastar a pessoa com doença psiquiátrica para não perturbar a convivência familiar e em sociedade.
 
A crítica proposta pelo diretor ressalta a tendência da sociedade em excluir ou reprimir o indivíduo, ao invés de enfrentarem as questões emocionais e psicológicas de maneira saudável. Esse afastamento reflete a recusa em lidar com a complexidade da saúde mental em prol de um padrão normativo estabelecido que define o que é ser “normal”.
 
No desfecho do filme, ao retornar do hospital psiquiátrico, Mabel emerge sem a espontaneidade que anteriormente a definia. Sua identidade foi gradualmente apagada durante o período de internação, levando-a a uma condição de subordinação. Essa transformação simboliza a perda da autenticidade e da liberdade emocional, resultante da tentativa de controlo e exclusão promovida pela sua família.
 
Cassavetes optou por uma mise-en-scène naturalista, trazendo um estilo mais cru e realista que resulta numa autenticidade emocional que se distancia do típico filme clássico de Hollywood. O filme tem aparência documental devido ao uso de câmara à mão e do recurso aos planos longos. O facto de utilizar bastante luz natural nas cenas, transmite uma sensação claustrofóbica e íntima do ambiente doméstico. A proximidade da câmara nos rostos dos atores, uma característica marcante nos filmes de Cassavetes, contribui para intensificar essa sensação de intimidade e desconforto.
 
Inicialmente, John Cassavetes tinha escrito e idealizado esta obra para ser uma peça de teatro, que seria interpretado por sua esposa, Gena Rowlands. No entanto, ela considerou que não seria uma boa ideia, pois a carga emocional da personagem Mabel seria tão intensa que se tornaria desgastante ter de interpretá-la diariamente. A própria atriz chegou a comentar que, após as gravações do filme, precisou de uma pausa para recuperar do impacto emocional causado pelo papel.
 
Apesar do filme parecer improvisado em algumas partes, os atores seguiram o guião. No entanto, os gestos, o silêncio e as pausas ao longo do filme transmitem uma sensação de improvisação e uma profunda sensibilidade emocional. 
 
 

quarta-feira, 14 de maio de 2025

Rostos (1968) de John Cassavetes



por Alexandra Barros
 
Segundo a sabedoria popular, quem vê caras não vê corações. Neste filme, porém, é através dos rostos que Cassavetes procura captar e revelar o que se passa nos corações. O que querem mostrar as suas personagens e o que querem elas que não se veja?
 
Pertencentes à classe média da América dos anos 60, vivem em casas grandes, profusamente decoradas e perfeitamente apetrechadas com os objetos e equipamentos vinculados ao “greatAmerican Way of Life. Têm bons carros, conforto material e financeiro e, nalguns casos, cargos sonantes. Procuram projetar uma imagem de sucesso através da “qualidade de vida” que alcançaram. Bebem muito, cantam, dançam e riem espalhafatosamente, ostensivamente. Mas as risadas hiperbólicas são, em grande medida, auto-ilusões. Richard, Jeannie, Maria e os que os rodeiam, não riem porque estão felizes. Riem para não se confrontarem com o facto de se sentirem inadequados, inseguros, incapazes de comunicar, receosos de amar, sós. Tendo crescido numa sociedade dominada pelo consumismo, terão acreditado que a felicidade lhes seria proporcionada pelos bens materiais que o poderoso marketing se vai encarregando de impor.
 
O que lhes falta então? Estar bem consigo próprios, com os outros e com a vida, em geral. Querem ser acarinhados, desejados, admirados, mas começam a aperceber-se que aquilo que alcançaram ao longo da vida de pouco lhes serve para obter o que realmente desejam. São estes desejos, angústias e conflitos interiores que interessam a Cassavetes. Para os revelar, procura registar com a câmara os trejeitos involuntários, as micro-expressões, tudo o que não pode deixar de irromper na superfície das personas que todos criamos para interagir com os outros nas mais variadas circunstâncias: no trabalho, em eventos sociais ou mesmo na intimidade. Hoje, esta dissociação entre quem queremos parecer e quem realmente somos está mais exposta do que nunca nas redes sociais, com curadoria cuidada de perfis e publicações, para transformar os seus utilizadores nas pessoas sensíveis, engajadas, divertidas, corajosas, informadas, inteligentes, ou seja lá o que for que dê likes e aprovação.
 
Acerca de Cassavetes, diz-se muito que amava os atores. Sendo um realizador devotado à exploração da natureza humana, Cassavetes procurava obter performances que fossem, de alguma forma, reveladoras. O que lhe interessava era, essencialmente, o que os atores, através das personagens que encarnavam, lhe poderiam dar, e como é que ele, por sua vez, poderia transmitir essas revelações aos espectadores. Por isso, os atores tinham liberdade para improvisar e interpretar as personagens como entendessem. Por isso, os seguia com a câmara na mão e, tantas vezes, preenchia o ecrã com os seus rostos. Neste filme, esses grandes planos estão provavelmente mais presentes do que em qualquer outro. O título do filme evoca, aliás, a importância destes close-ups. Cada rosto é simultaneamente um “palco” para a imagem que a personagem quer projetar e uma janela (mais ou menos) mal fechada para o que lhe vai na alma.
 
Richard e Maria formam o casal que está no centro do filme. Estão perdidos individualmente e estão perdidos um para o outro, cada um acantonado nos seus egoísmos e nos seus descontentamentos. Farto do seu dia vazio fora de casa, Richard quer-se deitar e quer, principalmente, o consolo da intimidade física. Maria, farta do seu dia vazio em casa, quer sair para ver um filme: “Hoje há um filme de Bergman aqui perto.”, ao que Richard responde: “Esta noite não me apetece ficar deprimido”. Instantes depois confrontar-se-á com uma evidência: ele e Maria estão tão deprimidos quanto as personagens dos filmes de Bergman.
 
Esta referência a Bergman num filme que é ele próprio bergmaniano não é o único momento de metacinema de Rostos. Richard, presidente de administração de uma empresa de investimentos financeiros, é responsável por selecionar filmes em que vale a pena investir. No início do filme, ele e outros membros da indústria do cinema preparam-se para ver um filme, que será submetido ao seu julgamento. Quando o visionamento arranca, o título Rostos enche o (nosso) ecrã, criando uma justaposição ambígua entre o filme a que estamos a assistir e o filme-dentro-do-filme, sujeito à avaliação de Richard. Esta inside joke evoca os problemas que o próprio Cassavetes teve com os estúdios de Hollywood, nomeadamente a proscrição após os confrontos com o produtor do seu filme anterior. 
 
Produzido pelo próprio realizador e amigos, e com baixo orçamento, Rostos foi feito graças à dedicação e boa vontade dos atores e técnicos que nele trabalharam. Foi aclamado pela crítica e recebeu vários prémios em festivais de cinema, tendo até sido nomeado para três Óscares, os prémios mais importantes do sistema que o rejeitara. É unanimemente considerado um dos mais icónicos filmes de Cassavetes e, em 2011, foi selecionado para preservação no National Film Registry dos EUA, pela sua relevância cultural, histórica e estética. 
 
 

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Sombras (1959) de John Cassavetes



por Jessica Sérgio Ferreiro
 
O filme Sombras, primeira longa-metragem do então actor John Cassavetes, não foi, nem é, apenas um primeiro filme, foi um gesto inaugural que rompeu com a gramática clássica de Hollywood e demarcou o “cinema de autor” nos Estados Unidos, propulsionando o cinema independente norte-americano. Produzido com escasso financiamento e limitações técnicas, a sua originalidade e estética resulta destes obstáculos e da vontade de fazer filme sobre “pessoas reais”, como proferido por Cassavetes. Filmado com câmara à mão de 16mm (portátil), Sombras rompe com o formalismo convencional do cinema produzido pelos grandes estúdios e deriva para uma abordagem improvisada, crua e intimista que, influenciado pelo neorrealismo italiano e pela estética documental, remete-nos, ainda, para o Direct Cinema americano e, em certa medida, para o Cinema Verité.
 
Poder-se-á deduzir que a experiência de John Cassavetes enquanto actor terá tido, também, um profundo impacto na forma como realizava e orientava as narrativas fílmicas. Ao dar liberdade aos actores para improvisarem os seus diálogos, a narrativa materializa-se e sedimenta-se na relação, ou seja, na interação espontânea e improvisada entre os actores e as suas personagens, como acontece na vida real. Esta espontaneidade acrescenta profundidade e complexidade às personagens interpretadas, bem como ao emaranhado de relações que compõem a sua realidade social – pequenos mundos interiores oprimidos e conspurcados, mas também impelidos e estimulados pelo exterior e pelo “outro”.
 
Assim, num gesto de resistência, Cassavetes optou pelo risco em vez da convenção: preferiu uma narrativa aberta com personagens em constante transformação (os actores não são profissionais e recorrem à improvisação), em vez de uma história formulaica, baseada em arquétipos, lugares-comuns e clichés. Escolheu a imperfeição deliberada em detrimento de uma produção polida e tecnicamente irrepreensível. A versão final de 1959 resultou da regravação de algumas cenas e de uma nova montagem, após o próprio Cassavetes rejeitar a primeira versão — um processo que procurava reflectir o real e a “verdade” emocional, procurando encaixar a individualidade, suas idiossincrasias e fluidez, em contextos socioculturais determinantes e igualmente complexos, marca central de toda a sua obra cinematográfica.
 
A história do filme gira em torno de três irmãos afro-americanos (dois deles de pele clara) que vivem em Manhattan, nos anos 50: Hugh, um cantor de jazz desiludido; Ben, um jovem irreverente e boémio; Lelia, a irmã mais nova que se envolve com um homem branco que desconhece a sua origem racial. A revelação desencadeia uma crise que expõe o preconceito latente na sociedade, mesmo nas camadas mais liberais. A trama não é linear, é construída em torno de episódios e encontros que exploram temas como identificação/pertença e alienação. A dimensão racial é tratada com ambiguidade: os protagonistas, de pele clara, experienciam crises identitárias que põem em causa os próprios limites da perceção social e racial. 
 
 O filme destaca-se, assim, por abordar o racismo e as complexas dinâmicas interpessoais num país ainda imerso na segregação racial, antes da promulgação do Civil Rights Act de 1964, mas numa época em que a luta contra a segregação já pulsava com força e urgência. Sombras consegue aludir a isto tudo numa narrativa fragmentada, com personagens não unidimensionais e sem rigidez identitária, mas profundamente influenciadas pelo seu contexto, (con)vivências com o “outro” e, ainda, submetidas às imagens dominantes do “ideal” (exemplo: cartaz de Brigitte Bardot que a personagem Lelia observa atentamente).
 
O impacto de Sombras reside tanto na sua forma quanto no seu conteúdo. Do ponto de vista formal, o uso do improviso — especialmente nos diálogos — torna os personagens instáveis, emocionalmente imprevisíveis e, sobretudo, vivas. A câmara à mão, também instável, segue esses impulsos com a fluidez quase documental. No plano temático, o filme propõe uma abordagem subtil e provocadora da questão racial, sobretudo através da performance ambígua da personagem Lelia, à qual se sobrepõe, ainda, a categoria de “mulher”, sua condição, derivas e subversões. O desajuste e o mal-estar em Ben são também gritantes, limitando-se, por vezes, a reagir de forma impulsiva e/ou agressiva ou simplesmente resigna-se à apatia. Hugh, seguro quanto à sua pertença “racial”, esforça-se por corresponder a um ideal de figura paternal e ser capaz de dar suporte emocional, moral e financeiro aos mais novos. Contudo, tem dificuldades em vingar no mundo artístico, devido ao racismo e à cultura de consumo, superficial e chauvinista, que prefere exibições de mulheres seminuas do que à sua performance musical.
 
Assim, as três personagens transitam entre mundos sem verdadeiramente se encaixarem em algum. A crise racial, mas sobretudo existencial, corresponde a crises “identitárias” — pessoal, social e até cinematográfica –, expressadas ou exteriorizadas nos seus constantes reajustes, ou seja, nos reposicionamentos individuais. Em suma, as identidades expressas são meras “sombras”, são situacionais e relacionais, não dependem de uma essência fixa (essa sim “ficcionada”, imaginada, imposta e projectada), mas sim de um âmago em constante construção.
 
Cassavetes rejeita o “panfleto propagandístico” e prefere o incómodo. O racismo não é um “tema” meramente discursivo, é uma presença fantasmática que emerge nos momentos mais mundanos, no quotidiano das personagens. Esse desconforto é amplificado pela estrutura episódica e pela recusa de uma resolução clássica. Sombras termina como começou, com incerteza. O jazz, omnipresente na banda sonora (música de Charles Mingus), não é mero acompanhamento: é a matriz estética do filme. A estrutura narrativa é jazzística — feita de improviso, de rupturas, de variações sobre uma mesma “melodia”. Este estilo musical, que também quebra convenções e privilegia o improviso, faz par e harmonia com os diálogos inventados e com a movimentação da câmara irrequieta, livre e próxima, quase voyeurista, que acompanha os actores sem filtros ou orientações, sem conhecer, ainda, o seu devir.