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quarta-feira, 10 de outubro de 2018

The Salt of the Earth (2014) de Juliano Ribeiro Salgado e Wim Wenders



por Carlos Melo Ferreira

Talvez não tenhamos ainda a noção plena de que Wim Wenders, um dos fundadores do Cinema Novo Alemão dos anos 60 (ver "Fassbinder e o futuro", de 17 de Junho de 2012, e "Palavra e pensamento", de 12 de Outubro de 2013), tem uma importante vertente documental na sua já impressionante obra. O Sal da Terra/The Salt of the Earth, co-realizado com Juliano Ribeiro Salgado (2014), vem recordar de maneira feliz o seu lado documentarista no cinema, pois permite-lhe uma reflexão dupla sobre a imagem, a do cinema e sobretudo a da fotografia por intermédio da personagem central e motora, o famoso fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado. 

Vamos por partes. Depois de filmes iniciais justos e muito bons, Wim Wenders dispersou-se um tanto na beleza das imagens por si própria, sem grande recuo, o que, aliás, fez o sucesso dos seus filmes desde As Asas do Desejo/Der Himmel über Berlin (1987), justamente um filme notável pela ligação que estabelece entre imagens e sons. Pese embora a minha admiração por esse e outros filmes subsequentes, não devo esconder que é nos seus filmes iniciais que ainda hoje descubro o seu melhor.

Posto isto, O Sal da Terra agora estreado entre nós é um projecto consequente com o seu anterior Pina (2011), sobre a famosa e entretanto desaparecida bailarina e coreógrafa Pina Bausch (1940-2009), pois se trata de um filme sobre um criador artístico visual, um fotógrafo, e um fotógrafo famoso. O assunto permite ao cineasta, acolitado pelo filho mais velho do fotógrafo, ao recapitular com este a sua vida e a sua obra produzir sobretudo pela palavra do fotógrafo uma reflexão muito produtiva sobre a imagem da fotografia na história e sobre a própria história. 

De facto, Sebastião Salgado foi uma testemunha privilegiada dos últimos 40 anos da história mundial, presente com a sua máquina fotográfica nos locais e momentos em que a história recente mais doeu: no Sudeste Asiático, em África (pela qual não esconde a sua preferência), na ex-Jugoslávia, na América Latina, mas também na Sibéria, na fronteira com o Ártico, no seu próprio país, o Brasil. Conhecendo já a obra do fotógrafo, o que mais me interessa no filme é o que ele nele diz sobre si próprio e em especial sobre as suas fotografias, o espaço, o tempo e as circunstâncias em que foram tiradas. 

Arte visual, a fotografia é uma "arte muda" (se me é permitida a redundância), e o que o filme de Wim Wenders e Juliano Ribeiro Salgado permite e procura é a palavra do fotógrafo Sebastião Salgado sobre as suas fotografias, as suas séries temáticas. Casando bem a vida profissional e a vida pessoal do protagonista, o filme destaca-se sobretudo por ser uma lição de fotografia e sobretudo de história sobre os conturbados anos que a Sebastião Salgado foi (como a nós) dado viver. 

Ora esta reflexão, este esclarecimento do fotógrafo sobre o seu trabalho, é acompanhado por um bom exercício cinematográfico dos realizadores que, estabelecendo de maneira muito clara a diferença entre a fotografia e o cinema, permite através deste questionar aquela. Pese embora uma ou outra ingenuidade, como a dobragem com som ambiente de fotografias antigas, O Sal da Terra cumpre bem uma função reflexiva de segundo ou terceiro grau, dando à pessoa física do fotógrafo o destaque visual e sonoro que ele merece sem se coibir (pelo contrário) de mostrar as suas fotografias e de, a esse propósito, explorar o contraste do preto e branco e da cor

Que dessa forma nos seja permitido recapitular 40 anos de história, e da história mais trágica da humanidade, não dissociando o local do global, é um dos méritos principais do filme, em especial para uma época que, pressionada pelo presente, tende a esquecer o passado mais próximo, contudo dele indissociável. Por ser ele próprio fotógrafo, e fotógrafo de mérito, Wim Wenders sai-se bastante bem neste filme em que não receia mostrar-se a si próprio em diálogo com o protagonista. Que em conclusão se expresse confiança no ser humano, contudo responsável por tantas e tão selvagens destruições, sem convencer fica bem.

in «O poder da imagem», Some like it cool, 12 de Abril de 2015.

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Der Amerikanische Freund (1977) de Wim Wenders



por João Palhares

Wim Wenders é o realizador mais famoso e mais projectado internacionalmente do chamado “Novo Cinema Alemão”, do qual também fazem (ou fizeram) parte Rainer Werner Fassbinder, Hans-Jürgen Syberberg, Margarethe von Trotta, Werner Herzog, Harun Farocki, Werner Schroeter, Volker Schlöndorff, Alexander Kluge, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet. Se sempre houve uma preferência quase por qualquer um dos outros representantes desse movimento da parte de quem escreve estas linhas, a verdade é que Wenders tem pelo menos uma obra-prima, O Estado das Coisas (1982), deambulação muitíssimo atmosférica por Sintra e pelas paisagens de fim do mundo da série B e do cinema independente norte-americanos (não faltando um cameo de Roger Corman - o rei dos independentes), sobre uma produção muito acidentada de um remake de O Mais Perigoso Homem Vivo (1961) de Allan Dwan e que à melhor maneira dos métodos de outro produtor independente, Paulo Branco, usou meia equipa técnica de uma produção anterior (O Território de Raúl Ruiz) e serviu também para abastecer Jim Jarmusch de película para filmar trinta minutos de Stranger than Paradise (1984), então uma curta, envolvendo ainda a Zoetrope de Francis Ford Coppola que na altura produzia Hammett (1982), também realizado por Wim Wenders. 

Há algo que passa dessas atmosferas e desses fins de mundo para O Amigo Americano através da música de Jürgen Knieper (que também assinou a banda-sonora de O Estado das Coisas), das belas imagens de Robby Müller e da curiosidade inocente e muito receptiva de Wim Wenders. O pintor com a pala no olho direito de Nicholas Ray encurvado num parapeito para ouvir melhor o Tom Ripley de Dennis Hopper, Ray e Hopper a percorrerem aquela estrada aérea de Nova Iorque, a doença sanguínea do personagem de Bruno Ganz a corroê-lo aos poucos por dentro e a torná-lo cada vez mais virado para o crime e para o uso das armas. É vê-lo percorrer o metro de Paris com uma mão a segurar um lenço contra a cara e outra no bolso do casaco a empunhar a arma que Gérard Blain lhe tinha dado, primeiro vidrado na sua missão e depois desobedecendo a todas as regras e condutas profissionais que o francês lhe tinha recomendado. Jean Eustache com uma mala de médico a tratar de Ganz no balcão de um bar parisiense, Fuller e o seu imortal charuto a percorrerem um comboio numa missão de reconhecimento, etc, etc. 

Dando a palavra ao José Oliveira, que escreveu sobre o filme em 2009 para o seu raging-b, há “um interesse pelas texturas e pela peculiaridade de cada lugar, pela singularidade, mesmo que enquadradas, sempre, pelo Cinema. E um interesse genuíno pelas personagens, aqui não há bonecada para ninguém. Mas o que acho essencial, e que me há-de tocar sempre nestes filmes iniciais de Wenders, é esta inocência das situações presentes a cada cena (que pode ser um encontro entre Ganz e Eustache num bar parisiense), esta inocência das coisas, das imagens, esta abstração temporal, esta fascinação absolutamente assumida pelos lugares, pela maneira americana e pelos mitos. Daí uma poética realmente sentida e uma ausência de qualquer pompa ou pretensão. Nada de saudosismo, antes uma melancolia preciosa e tocante. O cinema e só o cinema e a vontade de viajar e de deixar entrar mundos. Der Amerikanische Freund tem a força e a candura das coisas inatacáveis e cristalinas, é um produto do amor e isso basta-lhe.”