segunda-feira, 31 de outubro de 2016
quarta-feira, 26 de outubro de 2016
The Last Detail (1973) de Hal Ashby
por José Oliveira
Mesmo no contexto do cinema americano dos anos setenta The Last Detail é um petardo austero, vagabundeante, triste e bonito, que pulsa a cada cena, mantendo o seu insólito organismo intacto. Nesta história simples de dois marinheiros que devem levar um terceiro para pagar pelos seus erros de ontem, começa numa condenação, esquece as responsabilidades e o amanhã, para acabar no tipo de desolação que pode ser a machadada final ou uma libertação. Tragédia aguda ou fuga da engrenagem perra da sociedade e das regras, eis a questão complexa que ficará a ecoar. Tecido silenciosamente por um dos mais inclassificáveis realizadores desse período – Harold and Maude, Shampoo ou Coming Home são entre si diferentes como o dia e a noite e completamente nos antípodas do filme que vamos ver – atravessa de vários modos a América, em diferentes temperaturas e entrando nos interiores como raramente se tinha entrado. Jack Nicholson, no auge da sua subtileza, faz par com o estóico Otis Young para acompanhar o perdido Randy Quaid, guiados por uma escrita delicada e contundente do vivido Robert Towne e envoltos na visceral luz de Michael Chapman. Entre o céu e o inferno, aproveitando o aqui e o agora e forçando um pouco de justiça. The Last Detail é um filme belo por isso mesmo e muito mais.
Belo ainda pela sua progressão lenta e na respiração livre de efeitos programados e habituais da grande indústria. Démarche irrepetível, para a vida. Um road movie a penantes, comboios pegajosos e carreiras feias. Que tristeza toda esta higienização dos transportes do aqui… Uns segundos de acção e já se sabe do que a casa vai gastar, a missão a cumprir, do que o filme vai tratar ou destratar. Estamos numa base da marinha em Norfolk, Virginia, Estados Unidos da América. Um menino de recados procura dois marujos, Buddusky e Mulhall, encontra-os, mas esses crescidos fazendo-se durões ainda pensam ignorar o mestre de armas e a sua imperial ordem. Nada disso: ainda o filme vai na primeira bobine e eles já sabem que terão de levar o marujo Meadows até Portsmouth, no New Hampshire, como prisioneiro. Menos de uma bobine e os três já estão largados aos cães.
Tudo abriu logo após o genérico com um seco rufar de tambores e as únicas melodias que o irão trilhar e ritmar serão marchas e entoações militares. Vamos ter então um percurso e obra seca, pequena, drenada, essencial. Assim como as sequinhas panorâmicas iniciais pelo átrio, corredores, quartos e gabinete. Para ir já de comparações em riste, secura e filigrana Bressoniana. Ou já que tudo permanece muito americano, tangentes traçadas com navalhas de De Toth ou Siegel. Que se é um filme de estrada o vai ser de modo assaz confinado mesmo que pela aridez da basta paisagem enunciada e prometida. Presos e predispostos de Boston a Nova Iorque e terras de entremeio, mesmo que com semblantes de mauzões.
(Aparte: Que a navalha herdada pelo tipo de Utah que manobra as rédeas continue a cortar tão afiadamente embora com requintes ou atenções mais dilatadas e mesmo penosas posteriormente à saída da base, tanto representa a diferença entre o cinema americano clássico e aquele em que Ashby trabalhou, como a diferença de mundos, de ar do tempo, pessoas nele e a sociedade que o ata, com certeza bem diferente daquela em que James Stewart andou e respirou. Uma malaise e uma brandura patológica que faz com que as durações estejam necessariamente possuídas de uma dor arrastada. Dores de um certo tempo que não o campo-contra-campo e a os gizares sucintos de outras eras, uma caminhada ao estertor que insufla. Impossibilidade clássica. Nojo televisivo. Continuemos.)
Fazer isso numa semana e com tudo pago, certos tipos chamariam a tal um doce e o marujo espertalhão Buddusky não vai pensar noutra coisa. Ele que tal como o comparsa Mule não percebe por que raios condenaram um tipo à expulsão e prisão por ter tentado roubar a caixa das esmolas de uma boa samaritana. Anda mal de saúde a justiça por aquelas bandas e as conexões perigosas são coisa universal e fatais para quem nelas se embrulha. Quem assim vai à forca é então Meadows, que é alguém que ou também precisa mesmo de um psiquiatra, como um dos “carrascos” sugere, ou é um burlesco tipo Buster Keaton, ou pura e simplesmente um inocente que se tramou por aquilo que os inocentes sempre se tramam, verdade e solidão. O contrário do bad ass Buddusky, que gosta de fazer mal por fazer, mijar em cima de pessoas, beber à fartazana e enganar a lei que o domina. Mais próximo do indeciso Mule, que tanto gosta da anarquia e diversão que alastra, para no instante seguinte se aprumar, fazer continência e lembrar que ao invés de o trio estar em despedidas de solteiro, antes acompanha um prisioneiro e há que dar valor à seriedade.
Se The Last Detail tem o horizonte de uma linha ela vai ser torta, chão para descobertas, re-descobertas, oferendas e transformações por mínimas que sejam. Degraus à redenção. Tudo aglutinado por lentos fondus que ainda o escanzela mais, o disseca, como numa operação cadavérica. Mas a empresa é íntima e faz-se íntima, em tantos momentos Ashby pousa a câmara, sai do plateau, manda sair a equipa técnica para uma pausa, e ficam ali só os três marujinhos a ver como podem melhorar a vida de um menino. No fundo, cada um a tentar melhorar a sua vida. Buddusky quer que ele se divirta, apesar do companheiro de incumbência dizer que essa não é a natureza de tal criatura, que não tenha medo de exigir o queijo derretido no hamburguer, que beba até ao estado de vigília e de levitação. Enfim, que assobie às miúdas, que faça amor pela primeira vez, que faça tudo o que os da sua idade têm direito. E que se mantenha fiel a Deus e se zangue com quem o bajular. Buddusky é bruto mas também pode ser justo e verdadeiramente compincha. Também aprende com Meadows e fica a perceber a razão do puto respeitar sempre quem está a fazer o que tem que fazer. Os dois mas principalmente Buddusky querem que ele lute, se faça rijo, homem, cínico talvez, mas não vai ser por isso que a tímida e eterna criança-matulona se vai zangar com eles, antes pelo contrário, e momento de elevada comoção em surdina, os considera como os dois melhores amigos. Assim do pé para a mão, a tal da solidão a trabalhar no invisível carreiro, tal como a formiguinha. E os tambores continuam a rufar.
E Meadows vai queimando etapas à medida que o percurso e o tempo ardem, conhecendo novos continentes e constelações, vai confirmar dentro de si que ali não há carrascos e que se o querem preso, ele vai preso, mesmo contra normais explosões animalescas que de si brotam esporadicamente. Vai despejando litros de cevada alcoolizada, fumando como se não houvesse amanhã, finalmente assobiando meninas. Vai patinar no gelo com graça etérea. Esfumaçar droga. Engatar para ele e para os outros. Entrar na casa de putas. Copular e encantar-se com uma ninfa deslocada. Outro exercício profitable em que no termo do espaço e do tempo passível para algo acontecer, alguma coisa que seja coisa, tal sucedeu e o puto ensanguentado que vai cumprir os oito anos de prisa ou os seis se os ganhar por bom comportamento, já sabe o que o sexo oposto ao seu pode proporcionar, já se sabe fazer respeitar, andar ao cacete com os fuzileiros como acontecia nos filmes de John Ford ou do John Milius e hoje não acontece mais. Caminhada proveitosa e exemplo sem respostas, coração aberto. Triste encanto e desencanto final quiçá como nas redomas, suores e tremores de Thomas Wolfe e Nicholas Ray.
América coberta a luz sufocada, vacilante, algures glauca, apagada. E mais uma vez o cineasta no seu oficinato ama o grão película como ama o som que extravasa a origem, o que jamais é puro exercício fetichista, Ashby é taberneiro e também delicado demais para essas coisas, antes percebe que a imagem como o som não podem ser somente urdidas pelo lixo do meio envolvente que apanham, muito menos pelo profissionalismo nivelador, estando assim atento ao choque e consequências de naturezas antagónicas que no cinema acontece entre a máquina de filmar metálica e fria com a ardente natura. O resultado faiscante disso. A violência do embate. As ondas atordoantes. A harmonia, união ou impossibilidade por denso acordo. Mas tudo pacificado e em certo sentido calmo, tudo em implosão, o que mexe é o organismo interior e nunca o recorte. Zero virtuosismo. Maquinaria, forças da natureza imperiais, o trémulo humano. Há coisas e princípios sobre os quais não podemos fazer batota, questões absolutas, para que algo faça sentido. Algo que seja ainda.
E a tal máquina vai deixar de estar à primitiva altura de Hawks. Só por uma vez, nesse quadro picado em que o trio cai por terra e não tem muita vontade de se levantar. Tudo se vai apagar em brancos prados sem viva alma, representação de um vazio de vida, procura do que vem, desilusão inescapável para quem foi com muita sede ao cântaro. Passado o calor da dissidência, acontece numa escadaria despida esse doloroso campo/contracampo do último adeus, já em picados e contrapicados, os dois livres em baixo e o condenado na sua passadeira da fama lá nos altos, instante infindável e gelado como a morte. De Frederick Wiseman, o grande documentarista americano, ao fantasista Vincente Minnelli, passando pela sede sem regras de John Cassavetes, todos, em algum momento, mudaram de forma drástica a velocidade e o lugar do olhar, pressentido e percebendo que é o peso do presente a enformar o cinema e jamais o oposto. O tempo que envelhece depressa, o derradeiro Antonio Tabucchi, epígrafe Pessoana ou a corrente deste filme em que o tempo é tudo porque aflige e urge? Apesar de ter passado, passou-se por ele bem. Passou-se. Siga a marinha.
sábado, 22 de outubro de 2016
32ª sessão: dia 25 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30
Realizado por Hal Ashby, norte-americano que antes de ser assistente de montagem e montador de William Wyler e Norman Jewinson andou de trabalho em trabalho por essa América fora, muito como os seus personagens sem casa que encontram novas famílias, amigos e amantes perdendo-se do caminho e da vida mas sem se perderem a si próprios, The Last Detail é a nossa última sessão de Outubro.
Interpretado por Jack Nicholson, Otis Young e Randy Quaid, o filme atira-se para as ruas retratando uma época difícil e em que tudo parecia estar a ruir, mostrando no entanto que eram possíveis breves momentos de alívio em que se podia respirar e olhar para o amanhã com um sorriso. Por isto tudo e o mais e o resto que se pode ver olhando para The Last Detail, é o filme de tanta generosidade. Podem-no verificar esta Terça-Feira em Braga.
Jean Tulard escreveu no seu Dictionnaire du Cinéma - Les Réalisateurs que Ashby era um "montador honrado (trabalhou muito com Jewinson), passa à realização abordando o problema das relações entre Negros e Brancos em The Landlord. Evoca em seguida os amores de uma velha senhora de setenta anos e de um jovem de vinte anos em Harold and Maude, o seu único sucesso comercial. Podemos chamar a atenção das mulheres sem perder a nossa dignidade ? Era esse o tema de Shampoo. Como é que os antigos soldados da guerra do Vietname conseguem a sua reintegração depois da desmobilização ? Questão à qual Coming Home respondia. Pode-se ser ao mesmo tempo um cantor e combater ao lado dos trabalhadores num período de crise ? É Bound for Glory. Ashby gostava dos temas que incomodavam. Os espectadores, não. Daí os seus falhanços comerciais até Bem-Vindo Mr. Chance, pseudo-sátira da Casa-Branca. De qualquer maneira, faltavam-lhe vigor e talento, ao ponto de se chegar a creditar as qualidades de um thriller sangrento e enérgico como 8 Milhões de Maneiras Para Morrer ao argumentista do filme, Oliver Stone."
Doutra opinião era Jacques Lourcelles, que em Dictionnaire du Cinéma - Les Films e sobre Harold and Maude, dizia que "Hal Ashby mostra habilidade e delicadeza na descrição dos dois protagonistas, na mistura de tons (emoção e troça, humor e morbidez), na condução da história, sólida, sem ser nunca tradicional. Ele pertence a essa raça de realizadores eclécticos e brilhantes, para quem as noções de despojamento e refinação são chinês, que não procuram transformar o chumbo em ouro mas preferem trabalhar directamente sobre o ouro."
Michael Chapman, o director da fotografia verdadeira para com as emoções que se batem no filme, olhou para trás e para The Last Detail, contando que "foi o primeiro filme em que fui Director de Fotografia, e foi o Hal Ashby que me pediu. Tínhamos feito um filme a Leste e usámos o Gordie [Gordon Willis] como cameraman e eu, como operador e conhecia-me daí, e por várias razões o Gordie não o podia fazer e tinha que ser um cameraman da Costa Leste porque os sindicatos estavam separados nesses dias, portanto Haskell [Wexler] ia-o fazer mas não pôde porque não estava no Sindicato da Costa Leste, e ele tinha feito um filme com o Hal. Portanto o Gordie, acho eu, disse ao Hal para ir em frente, usar o Chappie—ele vai-se dar bem—e pediu-me para o fazer, sabendo em parte que eu pelo menos era um óptimo operador. E claro que eu disse que sim, como não, e vi-me… eu devo imenso ao Hal, digo-o a sério. Não havia uma razão racional para me pedir para o fazer em termos de experiência, no máximo só tinha iluminado mesmo alguns anúncios. Mas ele pediu-me e eu disse que sim, assustado, e a pensar que me iam descobrir, sabem, de cada vez que as rushes saíam, eu... eu ficava, oh meu Deus, eles vão descobrir que eu não sei o que estou a fazer e vão-me despedir. E não o fizeram e eu andei à volta e olhei para os locais de filmagem todos em Toronto e em vários sítios andes de filmar.
"Eu vi que uma vez que eram tudo locais reais - acho eu que com uma excepção, um quarto de hotel que construímos - a luz dos próprios locais era muito mais evocativa e carregada emocionalmente do que qualquer coisa que eu pudesse fazer. Portanto deixei-os muito animado porque tinha medo de que se pusesse alguma luz não ia saber o que raio estava a fazer, e deixei estar a luz da casa de banho dos homens na estação de comboios, do bar, do que quer que fosse, do balcão algures em Washington DC, fosse o que fosse. A luz vinha das janelas, a luz estava lá e era evocativa de um sítio real porque era um sítio real, e fiz o mínimo possível para disturbar a realidade daquele sítio, e isso acabou por se tornar uma boa decisão, acho eu, porque a) impediu que eu fosse despedido, e b) como acho que já disse, fez o filme parecer as notícias das nove, o que é mesmo o acertado para o conteúdo emocional desse filme."
Até Terça-Feira!
"Eu vi que uma vez que eram tudo locais reais - acho eu que com uma excepção, um quarto de hotel que construímos - a luz dos próprios locais era muito mais evocativa e carregada emocionalmente do que qualquer coisa que eu pudesse fazer. Portanto deixei-os muito animado porque tinha medo de que se pusesse alguma luz não ia saber o que raio estava a fazer, e deixei estar a luz da casa de banho dos homens na estação de comboios, do bar, do que quer que fosse, do balcão algures em Washington DC, fosse o que fosse. A luz vinha das janelas, a luz estava lá e era evocativa de um sítio real porque era um sítio real, e fiz o mínimo possível para disturbar a realidade daquele sítio, e isso acabou por se tornar uma boa decisão, acho eu, porque a) impediu que eu fosse despedido, e b) como acho que já disse, fez o filme parecer as notícias das nove, o que é mesmo o acertado para o conteúdo emocional desse filme."
Até Terça-Feira!
quarta-feira, 19 de outubro de 2016
Electra Glide in Blue (1973) de James William Guercio
por José Oliveira
Sessão bastante especial esta pois trata-se ainda de recuperar uma obra ímpar dos anos setenta que estranhamente tem sido abafada pelos historiadores, pela crítica e mesmo por Cineclubes ou Cinematecas mais atentas. Electra Glide in Blue criou bastante polémica na altura por supostas posições ideológicas, para hoje se perceber que só falava dos temas mais antigos do mundo: solidão, medo, morte. São polícias e hippies em rota de colisão, poderiam ser índios e cowboys, crentes ou ateus. Trata-se do único filme realizado por James William Guercio, que logo se fartou de tanta ignorância e se virou para a música, colocando como produtor no mapa bandas como os Blood, Sweat & Tears, ou os Chicago. Robert Blake vive o papel da sua vida, num modo de acolher paisagem e homem que de uma assentada une John Ford, Michael Cimino e Clint Eastwood. Vanishing Point, que não passaremos desta vez por questões de timing, é um seu irmão directo e indissociável, e assim recomendamos que o vejam, para uma complitude lógica. John Wintergreen, o nosso guia boquiaberto pela catedral do Oeste no filme que vamos ver, e Kowalski, o escaldado do apocalipse protegido no seu asfalto de 1971, com certeza falam a mesma língua e não vão em cantigas de linguagem.
O mundo revolucionário, mágico e genial do cinema americano dos anos setenta que orgulhosamente rompeu com os mestres e reduziu a pó o sistema de estúdios. Os que se auto-intitularam mavericks ou rebeldes, os que encheram a pança de estatuetas douradas ou os que garantiram a boa-vida com os incontáveis dólares. Uns não tiveram mais necessidade de voltar a pegar na câmara e quando voltaram a pegar nela já estavam anestesiados, outros venderam a Mãe à custa de santificação.
Agora e aqui no nosso Cineclube, décadas passadas, tempo para os losers. 1971. 1973. Falo de Richard C. Sarafian, falo de James William Guercio. Arte (coisa!) de rua, mais do lado da rugosidade e do visceral das matérias e dos espíritos do que de algo tematicamente prosaico e higienizado, que jamais o é. Arte do tempo, do tempo perdido, do que dói e daquele que se receia. Longe das perfeições catedráticas, de decorativismos desbotados ou american dream de t-shirt. Vanishing Point. Electra Glide in Blue. Ambos bem mais revisões (lúcidas e sem sugamento) do western por quem sabe que John Ford é a bíblia do cinema americano e do Cinema por homens feito e habitado do que fascinação e utopia à maneira da balada inicial entusiasmante do Easy Rider de Dennis Hopper.
Tocados pelo absurdo e estupefacção do modo de habitar e de confraternizar moderno, rodam paradoxalmente quase em seco, e se a velocidade e a potência das grandes máquinas podem humilhar os velhos cavalos dos cowboys, os seus condutores estão cada vez mais isolados. Andam e andam e erram e destroem-se na sua tremenda desilusão, talvez porque já são incapazes de encontrarem as mesas de família intimistas e calorosas do citado John Ford ou as tascas habitadas pelos taberneiros profissionais de Howard Hawks. Triste e enigmático efeito ao retardador.
Vanishing Point ou o percurso pulsional, instintivo, irremediavelmente perdido, irracional e auto destruidor de um ex-, um daqueles seres que jamais descobriu para o que realmente serve e que no fugaz instante de radiação redentora se lhe viu estatelar no rosto o fatalista eclipse. Foi condutor de motos e de carros, foi agente da autoridade, andou pelas guerras tão longe e no filme de Sarafian só quer pôr um automóvel em San Francisco, saindo de Denver, em tempo recorde... nunca se vai saber porquê e o seu rosto impenetrável, desiludido e apaziguado como os muito novos ou os muito velhos não nos vai fornecer chaves.
E se Sarafian ainda fez belos filmes posteriormente - Man in the Wilderness poderia estar neste ciclo - Guercio fez este Electra e arrumou as botas. Acusado nesses doces anos da contra-cultura e dos hippies de fascista e de reaccionário, foi preciso esperar umas boas décadas para se perceber de que lado estava o filme, o cineasta e o polícia personagem principal a que o incomparável Robert Blake dá presença, voz, olhar, peso cósmico. Esse minorca, inocente apesar de implacável, cavaleiro solitário Blake. De que lado então? Do lado da solidão e as únicas ganas do seu protagonista é assentar o rabo num confortável carro ao invés do banco da motorizada que dá calos, vestir um fato impecável e fechar-se em escritórios. Mas vai ser fácil perceber que tais empresas desejadas nada mais são do que ironia com os pés para a cova.
Vanishing Point e Electra Glide in Blue são assim as mais belas e dolorosas rimas de um período, belas como o cisne e o canto final, e se o cego locutor da rádio de Vanishing afirma que para o imparável Kowalski a velocidade é a liberdade da alma e que a questão não é quando vai parar, mas sim quem o vai parar, Blake sabe e revela a outro invisual que a solidão mata mais do que uma Magnum .44.
Lá para o final bifurcante do filme de Guercio, depois de um concerto em que vemos o pequeno agente das leis colocado no seu devido lugar de nada e de quase ninguém, perfeitamente espezinhado por essa massa supostamente feliz, passamos para dentro de um pavilhão. Ali, um monólogo exteriorizado de ressaca e desabafo para com o referido invisual. Num plano afastadíssimo vamos tendo consciência das sombras e das trevas que envolvem e corroem uma alma, de um silêncio na banda som que é sinal de uma consciência terminal interna. Cada vez mais silencioso o corpo de Blake e o movimento fílmico, já a pressentirem a fossilização derradeira. Só depois de algum tempo e de uma provisória paz possível é que a câmara vai avançar muito até a um plano próximo de conjunto, mas...é a impossibilidade de reconciliação, talvez ao mundo e ao próximo, e é de uma temperatura gélida. Tem a mesma função e a mesma força do que os muito grandes planos ao rosto granítico do Kowalski que rasga a América no Vanishing. Ao sangue encarnado que tem que correr já só se sente pedra e gamas de cinzentos a tenderem a negros.
Em Electra alguém enlouqueceu não porque sim, mas porque assolou um medo terrível de se encontrar sozinho ao acordar e assim ter que atravessar o dia e os restos dos dias. E Kowalski preferiu o mais nefasto dos embates a ter de penar eternamente algo que não confessa, que não pode confessar.
Comungando espaços desmesurados, de aridez indelimitável, os rostos e os músculos destes por nada românticos parecem sufocar, suam e quase explodem em vivências e em sentimentos que inexplicavelmente os ultrapassam. À prometida liberdade e respiração de "Easy Rider", estas estradas já assim não se reconhecem, nem simbolicamente nem em termos práticos; estes andarilhos já estão presos pelo desbarato dos afectos, adivinhando os computadores e “telemóveis” da alienação perfeita. Dos rasgados horizontes impassíveis e indiferentes de Vanishing até às místicas e esotéricas envolvências Ciminianas de Electra (os grandes pioneiros... Andrew Wyeth... Cimino... até ao nervo estertor de Peckinpah - a mais bela e mais evocativa, bucólica e magoadamente nostálgica via do cinema americano), de uma predestinação até a um acordo calado e interior, ambos os filmes têm a grandeza e a humildade de se instalarem em território sagrado, o do western ou o das fundações de uma nação, para experimentarem ou saberem como se anda lá e o que lá acontece volvida a possibilidade não escassa dos sentimentos e das dádivas. Em Electra, a cena em que chamam “chefe” a Blake e em que todos são índios, num paraíso perdido de uma possível comunhão logo quebrada pela lei sem qualquer grampo de escrúpulos. Em Vanishing, toda a dança sinfónica ou assimétrica das perseguições que a todo o instante pressentem em contra-campo massacres de outros tempos não muito remotos. Os filmes querem saber o que se passa agora nessas antigas terras dos cavalos, gados, onde quando se tinha de ir de um ponto A a um ponto B o sangue podia secar e era questão de vida e de morte e era para sobreviver a todo o custo com possivelmente alguém à espera – isto é, emocionalmente e esteticamente.
Kowalski – fúria de uma vida de um transcendente Barry Newman – ou amou uma e uma só mulher para uma eternidade qualquer ou a agudez do desespero é tão profunda que as delicadas carnes que se lhe oferecem já não lhe provocam qualquer vontade. O filme em vez de escancarar só escurece e torna dúbios tais retraimentos, o porquê de se entregar a narcóticos e a nadas do que a tais céus. Mumificado ou zombificado, a chama que outras horas tanto ferveu está agora estagnada ou só corre em conformidade com o pé no acelerador que renuncia a acalmias rumo a vislumbres de mortes. Diferente ou não é o John Wintergreen composto por Blake, das poses de garanhão que fode a também perdida puta do povo pretendida boneca, até ao sorriso infantil com que macaqueia jovens belas e frescas, passando pelo sério semblante que é protecção e generosidade, é como o Kowalski de Vanishing, um homem de interior quebrado e convulso mesmo que já de decisão tomada, e a maneira como Guercio o filma na largada, em fragmentos e estilhaços, tal como quando Kowalski é estátua paralisada no imenso meio que é palco privilegiado para a perda, só confirmam uma doença que é tanto primitiva como nascente ou potenciada pelos ares daquele tempo.
Em Vanishing, diz ainda o speaker, os polícias fascistas perseguem o solitário herói. Em Electra pode-se pegar no discurso iniciático do polícia chefe para com os novatos, em que este lhes chama desde comunistas a fascistas ou a porcos e coisas que tais, para se perceber que aquele polícia solitário e também o seu amigo que se mata porque não parece muito mais alegre, podem tanto ser vítimas dos hippies maus como de outros maus quaisquer que gravitem ao seu lado de gravata. Preto e branco estilhaçado, maniqueísmos estilhaçados. Genuíno gesto emancipador.
Cena final de Electra que fala com a de Vanishing e assim perscruta os podres desta monstruosa sociedade que corrompe o mundo por indiferença, mundo que é belo como belas são as montanhas escarpadas aos ventos e aos pós do Monument Valley, cena final: Robert Blacke não morre com um brutal tiro de caçadeira de um alternativo, morre é de Solidão. De uma indizível solidão, muito muito mas mesmo muito mais mortal do que qualquer arma de morte. Assim como Kowalski se decide entregar no altar de uma humanidade que só o lixou, indo ao encontro de pérfidos monstros metálicos.
À imensa fragilidade destes frágeis (e extremamente fortes) seres em derrapagem (ou já com aquelas certezas e convencimentos do que não pode ser de outro modo e assim mesmo é sem dúvidas) estruturas e construções formais que assentes em princípios sólidos e claros, e assim muito clássicos e nunca gritados apesar das ousadias, tantas vezes vibram e tremem por essa moral de nunca impôr egos e sim buscar justos caminhos precisamente nos caminhos percorridos, geograficamente e interiormente, sendo certeza bem material e visível essa operação do olhar e do acolhimento e colhimento de uma fria câmara a tão preciosos e raros sentimentos. Em Electra a sequência da perseguição ao grupo motard é perfeitamente funcional e até banal, mas isto e outros despachos servem apenas para franquear vias a desgraças irreparáveis e comoventes. Uma construção que tudo absorve. Sem ilusões.
E assim...uma singular singeleza. E assim...John Ford e Eastwood. Tão singular que teve de ser apagada. Resíduos ou pedras no sapato que arriscavam revelar a outra face da moeda que se quer sempre escondida – basta ler o supracitado puteiro demagógico de Peter Biskind sobre tal década.
Na indiferença e imperturbabilidade dos olhares finais de Vanishing e de posteriores rituais funéreos, ou na estrada que distende e dilata e eterniza os tempos em Electra, só se acentua o inescapável: esses pontos perdidos nos cosmos que somos nós. A qualquer momento vencemos montanhas, a qualquer momento trememos. Bem-aventurados os que dispensam as pobres palas dos pobres burros e ousam olhar para os lados.
sábado, 15 de outubro de 2016
31ª sessão: dia 18 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30
A nossa próxima sessão é bastante especial pois trata-se ainda de recuperar uma obra ímpar dos anos setenta que estranhamente tem sido abafada pelos historiadores, pela crítica e mesmo por Cineclubes ou Cinematecas mais atentas. Electra Glide in Blue criou bastante polémica na altura por supostas posições ideológicas, para hoje se perceber que só falava dos temas mais antigos do mundo: solidão, medo, morte. São policias e hippies em rota de colisão, poderiam ser índios e cowboys, crentes ou ateus. Trata-se do único filme realizado por James William Guercio, que logo se fartou de tanta ignorância e se virou para a música, colocando como produtor no mapa bandas como os Blood, Sweat & Tears, ou os Chicago. Robert Blake vive o papel da sua vida, num modo de acolher paisagem e homem que de uma assentada une John Ford, Michael Cimino e Clint Eastwood. Fundamental.
Francisco Rocha, criador e autor do blog My Two Thousand Movies, um dos maiores e mais honestos cinéfilos do planeta e arredores e um dos maiores fãs de Electra Glide in Blue (que diz ser sobre a "queda do sonho americano"), vai apresentar o filme em vídeo.
James William Guercio, no fim do comentário áudio do DVD de Electra Glide in Blue debruçou-se sobre ele e sobre a canção que escreveu de propósito para o filme, Tell Me, dizendo que "a América é um grande sonho mas o Vietname foi um período muito duro e pensar nisso também é portanto, a meu ver, não era um filme fascista e eu falei a respeito disso aos europeus, que pensavam isso, mas eu não achava que era o que este filme significava, para mim. O que ele significava, para mim, era a nobreza da experiência americana e, sabem, pessoas como o meu pai que trabalharam a vida inteira e é por isso que deviam ouvir a letra, "digam-me que não é tarde demais". Era de pensar que isso ia juntar as pessoas e era o que eu queria fazer. Mas era uma história policial bem modesta."
James William Guercio, no fim do comentário áudio do DVD de Electra Glide in Blue debruçou-se sobre ele e sobre a canção que escreveu de propósito para o filme, Tell Me, dizendo que "a América é um grande sonho mas o Vietname foi um período muito duro e pensar nisso também é portanto, a meu ver, não era um filme fascista e eu falei a respeito disso aos europeus, que pensavam isso, mas eu não achava que era o que este filme significava, para mim. O que ele significava, para mim, era a nobreza da experiência americana e, sabem, pessoas como o meu pai que trabalharam a vida inteira e é por isso que deviam ouvir a letra, "digam-me que não é tarde demais". Era de pensar que isso ia juntar as pessoas e era o que eu queria fazer. Mas era uma história policial bem modesta."
Olivier Père, o director artístico do Festival de Locarno e programador da Cinemateca Francesa, talvez quem mais tenha ajudado a re-descobrir este filme esquecido (de que revela o final, neste excerto - fica o aviso), confessou que "entre os « road movies » mais ou menos directamente gerados pelo sucesso de Easy Rider (A Estrada Não Tem Fim, Corrida Contra o Destino), há um que pode ser visto como o contraponto exacto do filme sobrevalorizado de Dennis Hopper. Electra Glide in Blue (nome das grandes cilindradas pilotadas pelos motociclistas da polícia) na verdade tem como herói um polícia íntegro, idealista até à ingenuidade, percorrendo as estradas do Arizona na sua moto. Ele é interpretado pelo estranho Robert Blake, que 25 anos mais tarde assombrará a Lost Highway de David Lynch, e cuja pequenez é objecto de vários gags visuais no filme. Um inquérito rotineiro sobre um suicídio duvidoso fá-lo-á tomar consciência da corrupção geral que reina na polícia. Aos heróis traficantes de droga sucede-se um polícia que terá uma morte simétrica às de Easy Rider, fuzilado na estrada por hippies. Electra Glide in Blue é o único filme do produtor musical James William Guercio, cinéfilo que só jura por Ford e A Desaparecida. Quando recebe carta branca para realizar um filme de baixo orçamento, Guercio aproveita para assinar um western moderno, entre respeito fetichista e re-leitura crítica. Contrariamente a outros filmes populares dos anos 70 (Zabriskie Point, por exemplo), Guercio não quer dinamitar as mitologias americanas, mas pô-las à prova com os tempos modernos e continuar a engrandecê-las no plano cinematográfico. Ele torna as paisagens fordianas e reproduz os enquadramentos e as cores d'A Desaparecida (com a cumplicidade de Conrad Hall, um dos maiores directores de fotografia da sua geração), enquanto que os interiores adquirem uma autonomia estética com um tratamento visual oposto. As rupturas no tom também se multiplicam ao longo da estória, do humor à ultra violência com uma perseguição manchada de sangue quase surrealista. Guercio está muito mais próximo de Michael Cimino que de Dennis Hopper. A ironia pós-moderna e uma certa excentricidade não chegam a esconder a melancolia profunda e a nostalgia apaixonada do cinema primitivo americano.
"É por todas estas razões que Electra Glide in Blue é um objecto atípico, um verdadeiro hapax. Guercio não filmará mais nada depois deste filme, acusado de fascismo na sua estreia (porque o personagem principal é um polícia e porque os hippies são descritos como ectoplasmas nada simpáticos) depois caído no esquecimento (apesar da selecção oficial no Festival de Cannes) até Vincent Gallo ou os Daft Punk o citarem como uma influência maior (ver The Brown Bunny ou os robots de couro preto a errar no deserto de Electroma)."
Até Terça-Feira!
quarta-feira, 12 de outubro de 2016
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