quarta-feira, 9 de novembro de 2016

The New Centurions (1972) de Richard Fleischer


por José Oliveira

The New Centurions é um dos mais belos e comoventes filmes alguma vez feitos sobre a amizade. Logo, uma dolorosíssima visão sobre os trabalhos e a fatalidade da solidão. Se acompanhamos grupos de polícias na cidade dos anjos que escalda, metodicamente e detalhadamente, o que vai sendo cada vez mais apurado e vincado é o tempo a actuar. Amizade, solidão, e logo o medo... porque as coisas passam, envelhecem, desaparecem, tanto a paisagem como as pessoas. E chega a morte, que é a do inesperado final de Roy Fehler, e perfeitamente esperado pois tanto ele como o seu mestre - ou o seu pai, irmão, esse anacrónico e artista Kilvinski que soube desde sempre que a melhor das leis é a do interior - acreditaram demais e amaram demais o que porventura já assim não pode ser sentido pois demasiado já aconteceu por estas terras desde tempos demasiado remotos que vão ser evocados aquando das mais negras dúvidas. Amaram demais e viciaram-se demais no que lhes tocou em sorte, na missão sanguínea, e as duas tornaram-se indestrinçáveis. Quando julgaram que poderiam começar a afastar-se e a viver os contos de fadas que sempre puseram em perspectiva, tombaram. O mais triste dos contos, com a moral que Kilvinski não se lembra na hora do seu apagamento - no mais secreto e justo dos planos sacrificiais - e o mais alegre, num mundo onde em tão violentas crostas e cheiros todos parecem ser igualmente bons, muitas das vezes anjos - ou todos terem as suas razões - todos menos esse mercenário que explora os trabalhadores mexicanos e que arranca do bom Kilvinski a mais enraivecida das justiças. Justiça, que será outra dos centros e demandas, precisamente, sacrificiais. 

Faz sentido que a dupla Irwin Winkler e Robert Chartoff tenha pegado no projecto e o tenha acarinhado tanto como acarinharia os contos Caprianos da saga Rocky ou outras produções com Robert De Niro em deslize, parecendo ser coisas destas em ligação a Paraísos Perdidos o que realmente lhes interessa. Como as afeições alvas de Frank Borzage ou os miminhos das irmãs Gish nos Griffiths, como Pat Garrett & Billy the Kid, Scarecrow ou o Ed Wood de Tim Burton para todo esse amador genial, Richard Fleischer cria, na aparência do género policial cinematográfico com que Kilvinski goza a certa altura para efeitos de realismo e verdade, um grande ciclo que vai do nascimento e aprimoramento ao fim, deixando entrever nas bordas os eternos-retornos e mais uma vez os princípios dos fins. É assim que quando um verde agente diz aos experientes que apenas quer fazer o bem, só obtém destes silêncio, e medo, e muita estupefacção de quem reconhece tais traços e crenças e possivelmente já destino. Numa cena que corta e monta para outros trabalhos, os do casal com Roy que ainda não sabe controlar esse tipo de amor. 

Como Kilvinski, homens sempre à deriva num mar turvo que lhes promete a terra firme, mar de onde não poderão sair pois só nele se espraiam realmente. Um veterano que recolhe as prostitutas da rua e as protege, oferecendo-lhes whisky e leite e tratando-as como rainhas, que se delicia no que elas têm de genuíno e de júbilo em comparação com as aparências do bem e do normal, ficando muitas saudades de ambas as partes, tem obrigatoriamente, na podridão circundante que teima em velar o brilho do mundo, de ser castrado. Que o seu discípulo lhe siga os passos mesmo que o contradiga perto da hora negra por ter descoberto outro tipo de ilhas, são as linhas e os caminhos da tragédia que este filme é. 

Tragédia que Fleischer tece sem exaltações mas como sempre muito naturalmente, muito humanamente. Não imita nada, não copia ninguém, não vai buscar a cinematografias alheias ou a fatos à medida de outras artes ou sociologias, mas observa, toma o pulso, segue, tenta perceber ou aceita o que assim tem de ser. Kilvinski nunca pôde dizer ao seu filho que parasse aquela rotina estupefaciente e voltasse para o lar, mesmo quando esse tocou nas matérias do outro mundo; assim como voltou ao antigo local de trabalho depois do retiro oficial, à sua única família, sem nada para fazer como uma criança que exulta e suplica por brincar com os outros garotos. Essa suspensão, esse calamento. E é este o movimento capital destes Centuriões modernos e de todos os que acreditam numa coisa em algum tempo e lugar, no que quer que seja, na sua arte, até ao fundo, sem freios - a solidão, a saudade que afinal é universal. Faltando o tudo a que se agarrou, não se tendo as bóias ou as margens alternativas, morre-se facilmente.  

É assim, sem efeitos ou enfeites. Secamente. Ao osso. O olhar vazio, a tal moral. 

(texto inédito e que será publicado na próxima edição da Foco – Revista de Cinema)



por João Palhares

Eis-nos chegados e atracados a Richard Fleischer, poeta silencioso das fileiras da RKO, maestro imperturbável mas discreto do grande espectáculo a partir das 20,000 Leagues Under the Sea (1954). Só que rotulá-lo e decifrá-lo, se não é impossível (e bem me quer parecer que sim), é muito difícil. Resta olhar para os seus filmes com vontade de os ver, e arriscar atirar frases e parágrafos na esperança (ou ilusão) de se chegar a algum lado. É o que aqui se vai tentar fazer. 

“Even the romans had centurions to keep the peace. And they were unsupported, unhonored, disliked, just like us. But they held the line, for a while… until Rome was finally overrun by barbarians.” Esta frase aparece a meio do grandioso (do belíssimo, do estratosférico, do…) The New Centurions (1972), dando algumas luzes sobre o que por lá se passa, quando Kilvinski (o personagem de George C. Scott), poucos meses depois da reforma, regressa de uma terrivelmente elíptica estadia em casa da filha e da neta e passa um bocado tão preciso com o antigo colega e amigo, Roy Fehler (o fabuloso Stacy Keach), depois de tantas rondas, turnos e patrulhas partilhadas nas ruas de Los Angeles. Só eles, que viram os olhares estilhaçados das vítimas, horrores domésticos, pesadelos durante a noite, acordados, ora sóbrios ora bêbados, é que percebem que se podem mudar todas as leis para melhorar as percentagens e sondagens do crime – que servirão para ganhar eleições e a adulação barata de certo povo e de certas elites -, “but they can’t get rid of evil”. Eles nunca ouviram falar da “Kilvinski’s law”, que pode também levar o nome de “consciência” e implica saber chegar a um quarteirão com ar de favela e perceber que às vezes é quem é respeitável que tem a culpa no cartório. Como saber que não é preciso levar ninguém para a esquadra certa noite, bastando pagar uma garrafa de whisky e leite às putas que enchem a carrinha da polícia e pedem – só uma o pede, de forma belíssima – palmadas no cu para para ela subirem, contando histórias de banhos de leite macabros em Beverly Hills, decapitações de galinhas feitas só pelo receio de não agradar ao cliente… Acabar a noite a tomar o pequeno-almoço num diner qualquer, sabendo que foram o álcool e os cigarros e as palmadas e os favores oferecidos a esta gente que tornaram as ruas seguras por mais um dia… Sem quotas de encarceramentos, sem vistos nas folhas de apreensão, sem adições no registo criminal. Como manda aquele bichinho na cabeça que tanto importuna ao cair do dia, no breu das várias noites possíveis (das noites do caçador às noites na alma) a perguntar que parte fizemos nós nesta coisa redonda a que chamamos mundo. 

É o mundo de tanta película que rodou, projectou e disparou, serena à volta das mesmas paisagens. De Electra Glide in Blue (1973), de Fort Apache, the Bronx (1981), de Colors (1988) e do tão próximo de nós – só 9 anos nos separam dele -, We Own the Night (2007). As mesmas dúvidas, as mesmas tristezas, os mesmos azares, a mesma solidão, as mesmas viagens ao fundo da alma, as confissões e monólogos regados a whisky que antes nem às paredes se confessavam. Tudo para “hold the line” e “in the line of duty”. 

E entre as tantas prodigiosas sequências deste prodigioso filme, falo agora só de uma, deixando de fora a do hospital, quando Fehler é atingido no estômago e dispara as suas confissões ao amigo Kilvinski, que fora até ali pai e é agora irmão; deixando de fora a do tiro involuntário do polícia ainda verde que se desfaz em pranto à frente do decano parceiro de patrulha que lhe diz que teria feito o mesmo na mesma situação; deixando de fora a da perseguição nos túneis que apagam toda a luz e toda a coragem; e que dizer dos encontros lindíssimos de Fehler com a enfermeira e que abrem caminho para o terrível “Can’t happen now, I was beginning to know…” e para o “Santa Maria, madre de Dios, ruega señora, ruega por nosotros. Ahora y en la hora de la nuestra muerte. Amén” do Sergio de Erik Estrada, que é protagonista de outras tantas prodigiosas sequências? Falo então do plano extraordinário sobre George C. Scott que, pela sua discrição, nem se julga à primeira vista de tanta duração. Conta ele a história de um homem que telefona todos os dias à esquadra de polícia porque está alguém no alpendre. Conta que chegava lá e não via ninguém, mas confortava o homem fingindo que tinha expulsado esse alguém, até ao homem telefonar no dia seguinte e Scott fazer o mesmo que tinha feito no dia anterior. Que será feito desse homem, pergunta ele a Fehler. E a câmara aproxima-se, aproxima-se e sondam-nos os abutres fantasmas dos “dont’s” e das leis da conversa no bar de strip e da filha e da neta de Kilvinski e do polícia reformado que também tem que visitar a esquadra e arranjar um emprego para não ver ninguém no alpendre de sua casa. Volta-se aos grandes monólogos de grandes filmes, num só plano na cara de grandes actores que contam histórias de fins do mundo e nos contaminam só com o seu olhar e com a sua voz… Presos nos olhares e nas vozes, não reparamos em absoluto se há cortes ou se se passa o quê ou o que quer que seja, a não ser aquele pesar na voz e aquele arrependimento de se ter testemunhado novos tempos a destronar outros tempos, novos tempos se calhar nem piores nem melhores, mas em que não há lugar… 

E, “well, here’s to the New Centurions. Let’s hope they do a better job than the old ones.” 

(texto publicado no site À Pala de Walsh, a 17 de Dezembro de 2013)

sábado, 5 de novembro de 2016

33ª sessão: dia 8 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


Do discreto poeta que dá pelo nome de Richard Fleischer (a quem João Bénard da Costa chamou "o realizador do Balouço Vermelho" num muito bonito texto com o mesmo nome) e fazia filmes desde os anos 40, que desde essa altura tinha assinado coisas tão belas como Banjo, Follow Me Quietly, These Thousand Hills, Barabbas ou The Last Run (entre muitas outras grandes e pequenas maravilhas), The New Centurions é o filme que vamos exibir esta Terça-Feira.

Filme nocturno e realista, dará seguimento às questões melancolicamente colocadas em Electra Glide in Blue, filme que exibimos o mês passado. Também sobre polícias, também sobre solidão, também sobre a decadência de valores e da própria sociedade como um triste todo, sentida por quem a olha de muito perto e sofre por dentro.

Claro que nada disto é contado e mostrado como uma oposição simples entre bons e maus valores, mas sim como uma rede complexa de acções e relações. Pois como o próprio Richard Fleischer admitiu à revista espanhola Film Ideal em 1964, "eu não gosto das pessoas que fazem tudo bem, que levam a cabo feitos como se nada fosse. Não acredito que essas pessoas existam no mundo. Gosto de destruir essa pequena ilusão que o público tem de que somos todos ou muito bons ou muito maus. Somos todos um mistura louca de ambas as coisas, e é bom que o público se dê conta dessa realidade."

Para ficarmos por Espanha, Jesús Cortés, que em Março nos apresentou Phantom Lady, escreveu no seu blog que "Poucos filmes do seu tempo o contêm todo.

"Pode-se pensar que era a sina desses anos, em que soavam trovões porque se anunciava uma boa tempestade depois do verão.

"Olhando para a música que passava na rádio, lá estavam as melodias desconcertantes de Transformer, as feias New York Dolls olhavam lascivamente de um sofá, chegava como um boomerang a grande resposta "negra", directamente do continente onde tudo começou, There's a riot goin' on, explodiam sombria ou animadamente Raw power e Maggot brain... mas também floresciam, incólumes, os Tapestry, All the young dudes, American beauty, #1 Record ou Grievous angel.

"Nalgum lugar privilegiado e suficientemente alto para poder entrever ambos os lados da barricada está The new centurions."

No Dictionnaire du Cinéma - Les Films, Jacques Lourcelles escreveu (revelando cenas importantes do filme - deixamos o aviso): "Baseado no romance de Joseph Wambaugh, antigo sargento da polícia de Los Angeles, é um dos filmes policiais mais originais e mais carregados de significado do cinema americano dos anos 70. Fleischer não procura, como Don Siegel com Dirty Harry, criar um novo herói nem cultivar o espectacular. Realista, documental, o filme tenta mostrar o mais concretamente possível a degradação da vida nas cidades e a desmoralização resultante em certos polícias, incapazes de cumprir o seu ofício e conciliar o cumprimento das regras com o controlo da realidade. O veterano mal acredita no seu ofício, mas depois de alguns meses de reforma não consegue suportar a inactividade (e comete suicídio num plano-sequência sublime), enquanto que o seu colega cumpre a sua missão como um desafio permanente que, por fim, irá perder. O pessimismo do filme é profundo e especialmente mais convincente por se exprimir num classicismo perfeito da mise en scène, por uma sucessão de episódios variada cuja balança moral e humana se revela tragicamente negativa. No plano de fundo da acção, há a decadência de uma civilização, tema privilegiado de Fleischer, captado aqui com uma espécie de consciência patética do nada que, melhor do que qualquer discurso que seja, afunda o espectador na inquietação e na perplexidade. Fleischer escolheu como intérpretes dois dos melhores actores do momento, Stacy Keach e George C. Scott, grandes artistas em vez de stars. Tornado ainda melhor pela sua associação, as interpretações deles atestam uma credibilidade realista e um pendor de sobriedade bastante impressionantes. A vontade do realizador em circunscrever o detalhe da acção mais de perto e com uma mobilidade extrema obrigou a equipa técnica, que trabalhava apenas em exteriores reais, a executar proezas, especialmente de iluminação. Invisíveis enquanto tais, elas contribuíram grandemente para dar ao filme a sua força concreta e trágica. Ralph Woolsey descreveu-as num artigo da « American Cinematographer », setembro de 1972, a grande revista americana dedicada aos aspectos técnicos da criação cinematográfica."

Até Terça!

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

The Last Detail (1973) de Hal Ashby



por José Oliveira

Mesmo no contexto do cinema americano dos anos setenta The Last Detail é um petardo austero, vagabundeante, triste e bonito, que pulsa a cada cena, mantendo o seu insólito organismo intacto. Nesta história simples de dois marinheiros que devem levar um terceiro para pagar pelos seus erros de ontem, começa numa condenação, esquece as responsabilidades e o amanhã, para acabar no tipo de desolação que pode ser a machadada final ou uma libertação. Tragédia aguda ou fuga da engrenagem perra da sociedade e das regras, eis a questão complexa que ficará a ecoar. Tecido silenciosamente por um dos mais inclassificáveis realizadores desse período – Harold and Maude, Shampoo ou Coming Home são entre si diferentes como o dia e a noite e completamente nos antípodas do filme que vamos ver – atravessa de vários modos a América, em diferentes temperaturas e entrando nos interiores como raramente se tinha entrado. Jack Nicholson, no auge da sua subtileza, faz par com o estóico Otis Young para acompanhar o perdido Randy Quaid, guiados por uma escrita delicada e contundente do vivido Robert Towne e envoltos na visceral luz de Michael Chapman. Entre o céu e o inferno, aproveitando o aqui e o agora e forçando um pouco de justiça. The Last Detail é um filme belo por isso mesmo e muito mais. 

Belo ainda pela sua progressão lenta e na respiração livre de efeitos programados e habituais da grande indústria. Démarche irrepetível, para a vida. Um road movie a penantes, comboios pegajosos e carreiras feias. Que tristeza toda esta higienização dos transportes do aqui… Uns segundos de acção e já se sabe do que a casa vai gastar, a missão a cumprir, do que o filme vai tratar ou destratar. Estamos numa base da marinha em Norfolk, Virginia, Estados Unidos da América. Um menino de recados procura dois marujos, Buddusky e Mulhall, encontra-os, mas esses crescidos fazendo-se durões ainda pensam ignorar o mestre de armas e a sua imperial ordem. Nada disso: ainda o filme vai na primeira bobine e eles já sabem que terão de levar o marujo Meadows até Portsmouth, no New Hampshire, como prisioneiro. Menos de uma bobine e os três já estão largados aos cães. 

Tudo abriu logo após o genérico com um seco rufar de tambores e as únicas melodias que o irão trilhar e ritmar serão marchas e entoações militares. Vamos ter então um percurso e obra seca, pequena, drenada, essencial. Assim como as sequinhas panorâmicas iniciais pelo átrio, corredores, quartos e gabinete. Para ir já de comparações em riste, secura e filigrana Bressoniana. Ou já que tudo permanece muito americano, tangentes traçadas com navalhas de De Toth ou Siegel. Que se é um filme de estrada o vai ser de modo assaz confinado mesmo que pela aridez da basta paisagem enunciada e prometida. Presos e predispostos de Boston a Nova Iorque e terras de entremeio, mesmo que com semblantes de mauzões. 

(Aparte: Que a navalha herdada pelo tipo de Utah que manobra as rédeas continue a cortar tão afiadamente embora com requintes ou atenções mais dilatadas e mesmo penosas posteriormente à saída da base, tanto representa a diferença entre o cinema americano clássico e aquele em que Ashby trabalhou, como a diferença de mundos, de ar do tempo, pessoas nele e a sociedade que o ata, com certeza bem diferente daquela em que James Stewart andou e respirou. Uma malaise e uma brandura patológica que faz com que as durações estejam necessariamente possuídas de uma dor arrastada. Dores de um certo tempo que não o campo-contra-campo e a os gizares sucintos de outras eras, uma caminhada ao estertor que insufla. Impossibilidade clássica. Nojo televisivo. Continuemos.) 

Fazer isso numa semana e com tudo pago, certos tipos chamariam a tal um doce e o marujo espertalhão Buddusky não vai pensar noutra coisa. Ele que tal como o comparsa Mule não percebe por que raios condenaram um tipo à expulsão e prisão por ter tentado roubar a caixa das esmolas de uma boa samaritana. Anda mal de saúde a justiça por aquelas bandas e as conexões perigosas são coisa universal e fatais para quem nelas se embrulha. Quem assim vai à forca é então Meadows, que é alguém que ou também precisa mesmo de um psiquiatra, como um dos “carrascos” sugere, ou é um burlesco tipo Buster Keaton, ou pura e simplesmente um inocente que se tramou por aquilo que os inocentes sempre se tramam, verdade e solidão. O contrário do bad ass Buddusky, que gosta de fazer mal por fazer, mijar em cima de pessoas, beber à fartazana e enganar a lei que o domina. Mais próximo do indeciso Mule, que tanto gosta da anarquia e diversão que alastra, para no instante seguinte se aprumar, fazer continência e lembrar que ao invés de o trio estar em despedidas de solteiro, antes acompanha um prisioneiro e há que dar valor à seriedade. 

Se The Last Detail tem o horizonte de uma linha ela vai ser torta, chão para descobertas, re-descobertas, oferendas e transformações por mínimas que sejam. Degraus à redenção. Tudo aglutinado por lentos fondus que ainda o escanzela mais, o disseca, como numa operação cadavérica. Mas a empresa é íntima e faz-se íntima, em tantos momentos Ashby pousa a câmara, sai do plateau, manda sair a equipa técnica para uma pausa, e ficam ali só os três marujinhos a ver como podem melhorar a vida de um menino. No fundo, cada um a tentar melhorar a sua vida. Buddusky quer que ele se divirta, apesar do companheiro de incumbência dizer que essa não é a natureza de tal criatura, que não tenha medo de exigir o queijo derretido no hamburguer, que beba até ao estado de vigília e de levitação. Enfim, que assobie às miúdas, que faça amor pela primeira vez, que faça tudo o que os da sua idade têm direito. E que se mantenha fiel a Deus e se zangue com quem o bajular. Buddusky é bruto mas também pode ser justo e verdadeiramente compincha. Também aprende com Meadows e fica a perceber a razão do puto respeitar sempre quem está a fazer o que tem que fazer. Os dois mas principalmente Buddusky querem que ele lute, se faça rijo, homem, cínico talvez, mas não vai ser por isso que a tímida e eterna criança-matulona se vai zangar com eles, antes pelo contrário, e momento de elevada comoção em surdina, os considera como os dois melhores amigos. Assim do pé para a mão, a tal da solidão a trabalhar no invisível carreiro, tal como a formiguinha. E os tambores continuam a rufar.

E Meadows vai queimando etapas à medida que o percurso e o tempo ardem, conhecendo novos continentes e constelações, vai confirmar dentro de si que ali não há carrascos e que se o querem preso, ele vai preso, mesmo contra normais explosões animalescas que de si brotam esporadicamente. Vai despejando litros de cevada alcoolizada, fumando como se não houvesse amanhã, finalmente assobiando meninas. Vai patinar no gelo com graça etérea. Esfumaçar droga. Engatar para ele e para os outros. Entrar na casa de putas. Copular e encantar-se com uma ninfa deslocada. Outro exercício profitable em que no termo do espaço e do tempo passível para algo acontecer, alguma coisa que seja coisa, tal sucedeu e o puto ensanguentado que vai cumprir os oito anos de prisa ou os seis se os ganhar por bom comportamento, já sabe o que o sexo oposto ao seu pode proporcionar, já se sabe fazer respeitar, andar ao cacete com os fuzileiros como acontecia nos filmes de John Ford ou do John Milius e hoje não acontece mais. Caminhada proveitosa e exemplo sem respostas, coração aberto. Triste encanto e desencanto final quiçá como nas redomas, suores e tremores de Thomas Wolfe e Nicholas Ray.

América coberta a luz sufocada, vacilante, algures glauca, apagada. E mais uma vez o cineasta no seu oficinato ama o grão película como ama o som que extravasa a origem, o que jamais é puro exercício fetichista, Ashby é taberneiro e também delicado demais para essas coisas, antes percebe que a imagem como o som não podem ser somente urdidas pelo lixo do meio envolvente que apanham, muito menos pelo profissionalismo nivelador, estando assim atento ao choque e consequências de naturezas antagónicas que no cinema acontece entre a máquina de filmar metálica e fria com a ardente natura. O resultado faiscante disso. A violência do embate. As ondas atordoantes. A harmonia, união ou impossibilidade por denso acordo. Mas tudo pacificado e em certo sentido calmo, tudo em implosão, o que mexe é o organismo interior e nunca o recorte. Zero virtuosismo. Maquinaria, forças da natureza imperiais, o trémulo humano. Há coisas e princípios sobre os quais não podemos fazer batota, questões absolutas, para que algo faça sentido. Algo que seja ainda. 

E a tal máquina vai deixar de estar à primitiva altura de Hawks. Só por uma vez, nesse quadro picado em que o trio cai por terra e não tem muita vontade de se levantar. Tudo se vai apagar em brancos prados sem viva alma, representação de um vazio de vida, procura do que vem, desilusão inescapável para quem foi com muita sede ao cântaro. Passado o calor da dissidência, acontece numa escadaria despida esse doloroso campo/contracampo do último adeus, já em picados e contrapicados, os dois livres em baixo e o condenado na sua passadeira da fama lá nos altos, instante infindável e gelado como a morte. De Frederick Wiseman, o grande documentarista americano, ao fantasista Vincente Minnelli, passando pela sede sem regras de John Cassavetes, todos, em algum momento, mudaram de forma drástica a velocidade e o lugar do olhar, pressentido e percebendo que é o peso do presente a enformar o cinema e jamais o oposto. O tempo que envelhece depressa, o derradeiro Antonio Tabucchi, epígrafe Pessoana ou a corrente deste filme em que o tempo é tudo porque aflige e urge? Apesar de ter passado, passou-se por ele bem. Passou-se. Siga a marinha.

sábado, 22 de outubro de 2016

32ª sessão: dia 25 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Realizado por Hal Ashby, norte-americano que antes de ser assistente de montagem e montador de William Wyler e Norman Jewinson andou de trabalho em trabalho por essa América fora, muito como os seus personagens sem casa que encontram novas famílias, amigos e amantes perdendo-se do caminho e da vida mas sem se perderem a si próprios, The Last Detail é a nossa última sessão de Outubro.

Interpretado por Jack Nicholson, Otis Young e Randy Quaid, o filme atira-se para as ruas retratando uma época difícil e em que tudo parecia estar a ruir, mostrando no entanto que eram possíveis breves momentos de alívio em que se podia respirar e olhar para o amanhã com um sorriso. Por isto tudo e o mais e o resto que se pode ver olhando para The Last Detail, é o filme de tanta generosidade. Podem-no verificar esta Terça-Feira em Braga.

Jean Tulard escreveu no seu Dictionnaire du Cinéma - Les Réalisateurs que Ashby era um "montador honrado (trabalhou muito com Jewinson), passa à realização abordando o problema das relações entre Negros e Brancos em The Landlord. Evoca em seguida os amores de uma velha senhora de setenta anos e de um jovem de vinte anos em Harold and Maude, o seu único sucesso comercial. Podemos chamar a atenção das mulheres sem perder a nossa dignidade ? Era esse o tema de Shampoo. Como é que os antigos soldados da guerra do Vietname conseguem a sua reintegração depois da desmobilização ? Questão à qual Coming Home respondia. Pode-se ser ao mesmo tempo um cantor e combater ao lado dos trabalhadores num período de crise ? É Bound for Glory. Ashby gostava dos temas que incomodavam. Os espectadores, não. Daí os seus falhanços comerciais até Bem-Vindo Mr. Chance, pseudo-sátira da Casa-Branca. De qualquer maneira, faltavam-lhe vigor e talento, ao ponto de se chegar a creditar as qualidades de um thriller sangrento e enérgico como 8 Milhões de Maneiras Para Morrer ao argumentista do filme, Oliver Stone."

Doutra opinião era Jacques Lourcelles, que em Dictionnaire du Cinéma - Les Films e sobre Harold and Maude, dizia que "Hal Ashby mostra habilidade e delicadeza na descrição dos dois protagonistas, na mistura de tons (emoção e troça, humor e morbidez), na condução da história, sólida, sem ser nunca tradicional. Ele pertence a essa raça de realizadores eclécticos e brilhantes, para quem as noções de despojamento e refinação são chinês, que não procuram transformar o chumbo em ouro mas preferem trabalhar directamente sobre o ouro."

Michael Chapman, o director da fotografia verdadeira para com as emoções que se batem no filme, olhou para trás e para The Last Detail, contando que "foi o primeiro filme em que fui Director de Fotografia, e foi o Hal Ashby que me pediu. Tínhamos feito um filme a Leste e usámos o Gordie [Gordon Willis] como cameraman e eu, como operador e conhecia-me daí, e por várias razões o Gordie não o podia fazer e tinha que ser um cameraman da Costa Leste porque os sindicatos estavam separados nesses dias, portanto Haskell [Wexler] ia-o fazer mas não pôde porque não estava no Sindicato da Costa Leste, e ele tinha feito um filme com o Hal. Portanto o Gordie, acho eu, disse ao Hal para ir em frente, usar o Chappie—ele vai-se dar bem—e pediu-me para o fazer, sabendo em parte que eu pelo menos era um óptimo operador. E claro que eu disse que sim, como não, e vi-me… eu devo imenso ao Hal, digo-o a sério. Não havia uma razão racional para me pedir para o fazer em termos de experiência, no máximo só tinha iluminado mesmo alguns anúncios. Mas ele pediu-me e eu disse que sim, assustado, e a pensar que me iam descobrir, sabem, de cada vez que as rushes saíam, eu... eu ficava, oh meu Deus, eles vão descobrir que eu não sei o que estou a fazer e vão-me despedir. E não o fizeram e eu andei à volta e olhei para os locais de filmagem todos em Toronto e em vários sítios andes de filmar.

"Eu vi que uma vez que eram tudo locais reais - acho eu que com uma excepção, um quarto de hotel que construímos - a luz dos próprios locais era muito mais evocativa e carregada emocionalmente do que qualquer coisa que eu pudesse fazer. Portanto deixei-os muito animado porque tinha medo de que se pusesse alguma luz não ia saber o que raio estava a fazer, e deixei estar a luz da casa de banho dos homens na estação de comboios, do bar, do que quer que fosse, do balcão algures em Washington DC, fosse o que fosse. A luz vinha das janelas, a luz estava lá e era evocativa de um sítio real porque era um sítio real, e fiz o mínimo possível para disturbar a realidade daquele sítio, e isso acabou por se tornar uma boa decisão, acho eu, porque a) impediu que eu fosse despedido, e b) como acho que já disse, fez o filme parecer as notícias das nove, o que é mesmo o acertado para o conteúdo emocional desse filme."

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Apresentação de Um Homem Decidido, por Francisco Rocha

Electra Glide in Blue (1973) de James William Guercio



por José Oliveira

Sessão bastante especial esta pois trata-se ainda de recuperar uma obra ímpar dos anos setenta que estranhamente tem sido abafada pelos historiadores, pela crítica e mesmo por Cineclubes ou Cinematecas mais atentas. Electra Glide in Blue criou bastante polémica na altura por supostas posições ideológicas, para hoje se perceber que só falava dos temas mais antigos do mundo: solidão, medo, morte. São polícias e hippies em rota de colisão, poderiam ser índios e cowboys, crentes ou ateus. Trata-se do único filme realizado por James William Guercio, que logo se fartou de tanta ignorância e se virou para a música, colocando como produtor no mapa bandas como os Blood, Sweat & Tears, ou os Chicago. Robert Blake vive o papel da sua vida, num modo de acolher paisagem e homem que de uma assentada une John Ford, Michael Cimino e Clint Eastwood. Vanishing Point, que não passaremos desta vez por questões de timing, é um seu irmão directo e indissociável, e assim recomendamos que o vejam, para uma complitude lógica. John Wintergreen, o nosso guia boquiaberto pela catedral do Oeste no filme que vamos ver, e Kowalski, o escaldado do apocalipse protegido no seu asfalto de 1971, com certeza falam a mesma língua e não vão em cantigas de linguagem. 

O mundo revolucionário, mágico e genial do cinema americano dos anos setenta que orgulhosamente rompeu com os mestres e reduziu a pó o sistema de estúdios. Os que se auto-intitularam mavericks ou rebeldes, os que encheram a pança de estatuetas douradas ou os que garantiram a boa-vida com os incontáveis dólares. Uns não tiveram mais necessidade de voltar a pegar na câmara e quando voltaram a pegar nela já estavam anestesiados, outros venderam a Mãe à custa de santificação. 

Agora e aqui no nosso Cineclube, décadas passadas, tempo para os losers. 1971. 1973. Falo de Richard C. Sarafian, falo de James William Guercio. Arte (coisa!) de rua, mais do lado da rugosidade e do visceral das matérias e dos espíritos do que de algo tematicamente prosaico e higienizado, que jamais o é. Arte do tempo, do tempo perdido, do que dói e daquele que se receia. Longe das perfeições catedráticas, de decorativismos desbotados ou american dream de t-shirt. Vanishing Point. Electra Glide in Blue. Ambos bem mais revisões (lúcidas e sem sugamento) do western por quem sabe que John Ford é a bíblia do cinema americano e do Cinema por homens feito e habitado do que fascinação e utopia à maneira da balada inicial entusiasmante do Easy Rider de Dennis Hopper. 

Tocados pelo absurdo e estupefacção do modo de habitar e de confraternizar moderno, rodam paradoxalmente quase em seco, e se a velocidade e a potência das grandes máquinas podem humilhar os velhos cavalos dos cowboys, os seus condutores estão cada vez mais isolados. Andam e andam e erram e destroem-se na sua tremenda desilusão, talvez porque já são incapazes de encontrarem as mesas de família intimistas e calorosas do citado John Ford ou as tascas habitadas pelos taberneiros profissionais de Howard Hawks. Triste e enigmático efeito ao retardador. 

Vanishing Point ou o percurso pulsional, instintivo, irremediavelmente perdido, irracional e auto destruidor de um ex-, um daqueles seres que jamais descobriu para o que realmente serve e que no fugaz instante de radiação redentora se lhe viu estatelar no rosto o fatalista eclipse. Foi condutor de motos e de carros, foi agente da autoridade, andou pelas guerras tão longe e no filme de Sarafian só quer pôr um automóvel em San Francisco, saindo de Denver, em tempo recorde... nunca se vai saber porquê e o seu rosto impenetrável, desiludido e apaziguado como os muito novos ou os muito velhos não nos vai fornecer chaves. 

E se Sarafian ainda fez belos filmes posteriormente - Man in the Wilderness poderia estar neste ciclo - Guercio fez este Electra e arrumou as botas. Acusado nesses doces anos da contra-cultura e dos hippies de fascista e de reaccionário, foi preciso esperar umas boas décadas para se perceber de que lado estava o filme, o cineasta e o polícia personagem principal a que o incomparável Robert Blake dá presença, voz, olhar, peso cósmico. Esse minorca, inocente apesar de implacável, cavaleiro solitário Blake. De que lado então? Do lado da solidão e as únicas ganas do seu protagonista é assentar o rabo num confortável carro ao invés do banco da motorizada que dá calos, vestir um fato impecável e fechar-se em escritórios. Mas vai ser fácil perceber que tais empresas desejadas nada mais são do que ironia com os pés para a cova. 

Vanishing Point e Electra Glide in Blue são assim as mais belas e dolorosas rimas de um período, belas como o cisne e o canto final, e se o cego locutor da rádio de Vanishing afirma que para o imparável Kowalski a velocidade é a liberdade da alma e que a questão não é quando vai parar, mas sim quem o vai parar, Blake sabe e revela a outro invisual que a solidão mata mais do que uma Magnum .44. 

Lá para o final bifurcante do filme de Guercio, depois de um concerto em que vemos o pequeno agente das leis colocado no seu devido lugar de nada e de quase ninguém, perfeitamente espezinhado por essa massa supostamente feliz, passamos para dentro de um pavilhão. Ali, um monólogo exteriorizado de ressaca e desabafo para com o referido invisual. Num plano afastadíssimo vamos tendo consciência das sombras e das trevas que envolvem e corroem uma alma, de um silêncio na banda som que é sinal de uma consciência terminal interna. Cada vez mais silencioso o corpo de Blake e o movimento fílmico, já a pressentirem a fossilização derradeira. Só depois de algum tempo e de uma provisória paz possível é que a câmara vai avançar muito até a um plano próximo de conjunto, mas...é a impossibilidade de reconciliação, talvez ao mundo e ao próximo, e é de uma temperatura gélida. Tem a mesma função e a mesma força do que os muito grandes planos ao rosto granítico do Kowalski que rasga a América no Vanishing. Ao sangue encarnado que tem que correr já só se sente pedra e gamas de cinzentos a tenderem a negros. 

Em Electra alguém enlouqueceu não porque sim, mas porque assolou um medo terrível de se encontrar sozinho ao acordar e assim ter que atravessar o dia e os restos dos dias. E Kowalski preferiu o mais nefasto dos embates a ter de penar eternamente algo que não confessa, que não pode confessar. 

Comungando espaços desmesurados, de aridez indelimitável, os rostos e os músculos destes por nada românticos parecem sufocar, suam e quase explodem em vivências e em sentimentos que inexplicavelmente os ultrapassam. À prometida liberdade e respiração de "Easy Rider", estas estradas já assim não se reconhecem, nem simbolicamente nem em termos práticos; estes andarilhos já estão presos pelo desbarato dos afectos, adivinhando os computadores e “telemóveis” da alienação perfeita. Dos rasgados horizontes impassíveis e indiferentes de Vanishing até às místicas e esotéricas envolvências Ciminianas de Electra (os grandes pioneiros... Andrew Wyeth... Cimino... até ao nervo estertor de Peckinpah - a mais bela e mais evocativa, bucólica e magoadamente nostálgica via do cinema americano), de uma predestinação até a um acordo calado e interior, ambos os filmes têm a grandeza e a humildade de se instalarem em território sagrado, o do western ou o das fundações de uma nação, para experimentarem ou saberem como se anda lá e o que lá acontece volvida a possibilidade não escassa dos sentimentos e das dádivas. Em Electra, a cena em que chamam “chefe” a Blake e em que todos são índios, num paraíso perdido de uma possível comunhão logo quebrada pela lei sem qualquer grampo de escrúpulos. Em Vanishing, toda a dança sinfónica ou assimétrica das perseguições que a todo o instante pressentem em contra-campo massacres de outros tempos não muito remotos. Os filmes querem saber o que se passa agora nessas antigas terras dos cavalos, gados, onde quando se tinha de ir de um ponto A a um ponto B o sangue podia secar e era questão de vida e de morte e era para sobreviver a todo o custo com possivelmente alguém à espera – isto é, emocionalmente e esteticamente.  

Kowalski – fúria de uma vida de um transcendente Barry Newman – ou amou uma e uma só mulher para uma eternidade qualquer ou a agudez do desespero é tão profunda que as delicadas carnes que se lhe oferecem já não lhe provocam qualquer vontade. O filme em vez de escancarar só escurece e torna dúbios tais retraimentos, o porquê de se entregar a narcóticos e a nadas do que a tais céus. Mumificado ou zombificado, a chama que outras horas tanto ferveu está agora estagnada ou só corre em conformidade com o pé no acelerador que renuncia a acalmias rumo a vislumbres de mortes. Diferente ou não é o John Wintergreen composto por Blake, das poses de garanhão que fode a também perdida puta do povo pretendida boneca, até ao sorriso infantil com que macaqueia jovens belas e frescas, passando pelo sério semblante que é protecção e generosidade, é como o Kowalski de Vanishing, um homem de interior quebrado e convulso mesmo que já de decisão tomada, e a maneira como Guercio o filma na largada, em fragmentos e estilhaços, tal como quando Kowalski é estátua paralisada no imenso meio que é palco privilegiado para a perda, só confirmam uma doença que é tanto primitiva como nascente ou potenciada pelos ares daquele tempo. 

Em Vanishing, diz ainda o speaker, os polícias fascistas perseguem o solitário herói. Em Electra pode-se pegar no discurso iniciático do polícia chefe para com os novatos, em que este lhes chama desde comunistas a fascistas ou a porcos e coisas que tais, para se perceber que aquele polícia solitário e também o seu amigo que se mata porque não parece muito mais alegre, podem tanto ser vítimas dos hippies maus como de outros maus quaisquer que gravitem ao seu lado de gravata. Preto e branco estilhaçado, maniqueísmos estilhaçados. Genuíno gesto emancipador. 

Cena final de Electra que fala com a de Vanishing e assim perscruta os podres desta monstruosa sociedade que corrompe o mundo por indiferença, mundo que é belo como belas são as montanhas escarpadas aos ventos e aos pós do Monument Valley, cena final: Robert Blacke não morre com um brutal tiro de caçadeira de um alternativo, morre é de Solidão. De uma indizível solidão, muito muito mas mesmo muito mais mortal do que qualquer arma de morte. Assim como Kowalski se decide entregar no altar de uma humanidade que só o lixou, indo ao encontro de pérfidos monstros metálicos. 

À imensa fragilidade destes frágeis (e extremamente fortes) seres em derrapagem (ou já com aquelas certezas e convencimentos do que não pode ser de outro modo e assim mesmo é sem dúvidas) estruturas e construções formais que assentes em princípios sólidos e claros, e assim muito clássicos e nunca gritados apesar das ousadias, tantas vezes vibram e tremem por essa moral de nunca impôr egos e sim buscar justos caminhos precisamente nos caminhos percorridos, geograficamente e interiormente, sendo certeza bem material e visível essa operação do olhar e do acolhimento e colhimento de uma fria câmara a tão preciosos e raros sentimentos. Em Electra a sequência da perseguição ao grupo motard é perfeitamente funcional e até banal, mas isto e outros despachos servem apenas para franquear vias a desgraças irreparáveis e comoventes. Uma construção que tudo absorve. Sem ilusões. 

E assim...uma singular singeleza. E assim...John Ford e Eastwood. Tão singular que teve de ser apagada. Resíduos ou pedras no sapato que arriscavam revelar a outra face da moeda que se quer sempre escondida – basta ler o supracitado puteiro demagógico de Peter Biskind sobre tal década. 

Na indiferença e imperturbabilidade dos olhares finais de Vanishing e de posteriores rituais funéreos, ou na estrada que distende e dilata e eterniza os tempos em Electra, só se acentua o inescapável: esses pontos perdidos nos cosmos que somos nós. A qualquer momento vencemos montanhas, a qualquer momento trememos. Bem-aventurados os que dispensam as pobres palas dos pobres burros e ousam olhar para os lados.