segunda-feira, 30 de outubro de 2023

318ª sessão: dia 31 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


“Ilha dos Amores” de Paulo Rocha encerra ciclo de cinema 
 
Durante os meses de Setembro e Outubro, no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe doze longas-metragens e uma curta em parceria com os Encontros da Imagem. O ciclo tem como mote o tema dos Encontros deste ano, “Ensaio para o Futuro”, e é inteiramente dedicado à memória de Carlos Fontes. 
 
O ciclo chega ao fim esta terça-feira à noite, às 21h30, com a exibição de A Ilha dos Amores de Paulo Rocha, o seu grande épico, uma epopeia em nove cantos debruçada sobre a vida de Wenceslau de Moraes, escritor e militar da Marinha Portuguesa que conheceu o Japão em 1889, entre viagens ao serviço da Coroa, instalando-se nesse país que o tinha fascinado 8 anos depois, como cônsul em Kobe. 
 
Explicando o desenvolvimento do seu projecto no Festival de Cannes, em 1982, Rocha disse que “é um projecto que remonta na verdade há catorze anos, antes mesmo da minha ida para o Japão, e cuja realização exigiu uma muito longa preparação, e levantou grandes problemas de ligação entre as diferentes equipas.” 
 
“Mas graças a essa preparação,” prosseguia, “a esse amadurecimento, pude fazer uma rodagem relativamente rápida nos três lugares onde decorre o filme: Portugal (mais de três meses espaçados), o Japão (dezoito dias ao todo) e Macau (três dias). Isso exigiu uma aprendizagem da língua japonesa pelo protagonista Luís Miguel Cintra, um dos maiores actores do teatro português.” 
 
Num texto escrito para a Cinemateca Portuguesa, João Bénard da Costa escreveu que “quando A Ilha dos Amores passou pela primeira vez na Cinemateca (…) abriu um ciclo intitulado “Os Descobrimentos Portugueses e a Europa do Renascimento” (…), escrevi então que essa escolha era duplamente emblemática."
 
“Por um lado”, explicava, “porque nenhum outro filme se conhece que tenha repensado, como este, o cerne da gesta portuguesa de quinhentos, enquanto participação no ideal humanista do Renascimento; por outro, porque nenhum outro filme se conhece onde se tenha tentado, como neste, a fusão entre dois imaginários culturais, dois “maravilhosos”, aparentemente tão distantes como os que dominam os códigos de narratividade e de representação da Europa e do Extremo Oriente.” 
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras pelas 21h30. A entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

Choses secrètes (2002) de Jean-Claude Brisseau



por João Palhares

Há seis anos, uma secretária de Estado francesa disse na rádio, à France Culture, “agradeço à Cinemateca que tenha adiado a retrospectiva Jean-Claude Brisseau”. Com estas palavras todas, sem tirar nem pôr, agradeceu a uma instituição cultural histórica, numa estação de rádio histórica, que não tivesse feito o seu trabalho, que é exibir filmes. A retrospectiva não aconteceu nos meses seguintes e o realizador em questão morreu menos de dois anos depois, a 11 de Maio de 2019. Em Fevereiro de 2020, os Césares não o incluíram no segmento in memoriam, o que não pode ter sido um lapso inocente. Tanto não foi, que não passou despercebido a Maria-Luisa Garcia Martínez, companheira e colaboradora de sempre do cineasta francês, que escreveu entre muitas coisas certeiras, numa carta aberta aos responsáveis pelos Césares, “os grandes profissionais do cinema”, que “fico siderada com a demonstração da vossa idiotice. Tenho de reconhecer que é uma idiotice notável, realmente, uma idiotice cuja profundidade abissal alcança níveis raramente igualados.” 
 
De Brisseau já se disse e escreveu muita coisa, desde que se aproximou de Éric Rohmer nos anos setenta e pareceu seguir os seus passos no controlo dos meios de produção de um filme com a redução da equipa técnica e artística ao essencial. Era admirador incurável de Alfred Hitchcock, de quem conhecia o Psycho de trás para a frente, e sobre quem e sobre o qual podia dissertar durante horas a fio. Deu o nome de um filme fabuloso de um fabuloso desconhecido, Edward Ludwig, à sua pequena companhia de produção, La Sorcière Rouge, título francês de A Lenda do Bruxa Vermelha, um dos filmes preferidos de John Wayne entre os quase duzentos que interpretou. Falou do que sabia e do que viveu como professor em escolas nos arredores de Paris, trabalho a que se teve de dedicar por uns tempos por não conseguir pagar os estudos no IDHEC (Institut des hautes études cinématographiques, escola fundada por Marcel L'Herbier em 1943 e onde estudaram por exemplo Paulo Rocha ou Alain Resnais). Fez três filmes com Bruno Cremer, actor que tinha trabalhado com Pierre Schoendoerffer, Luchino Visconti, William Friedkin ou Claude Sautet, e alcançou um sucesso comercial inesperado e considerável com Noce blanche
 
*

“Depois de todos os vossos recentes discursos muito, muito deontológicos,” desabafa Luisa Garcia na mesma carta, “vocês, totalmente sozinhos, como adultos, mostraram ao mundo inteiro, em directo para a televisão, que os vossos actos, as vossas decisões, a vossa política em suma, não é nem a democracia, nem o reconhecimento do talento artístico. 
 
“Mas não, nem pensar. É como na fábula de La Fontaine: "dependendo de serem poderosos ou miseráveis, os julgamentos do tribunal farão de vocês brancos ou negros."
 
“E sim, dois pesos e duas medidas. As homenagens todas de um lado, e do outro vilipendiam, até mais, limpam a existência. Entendam bem que falo apenas de vocês e das vossas acções, vocês, decisores dos Césares. 
 
“E impeçamos imediatamente os maliciosos, os fabuladores e outros Tartufos. Jean-Claude Brisseau entregou-se à justiça, não houve violação nenhuma, toque nenhum. O julgamento estabeleceu isso. 
 
“Foi o facto de pedir a actrizes perfeitamente avisadas e consentidoras, de fazer ensaios para as cenas eróticas incluídas em Coisas Secretas, que constituiu o assédio sexual pelo qual foi condenado, e pelo qual pagou há quinze anos. 
 
“Eu sei, eu sei, alguns até dizem que torturou meninas, tornou-se quase uma lenda urbana. 
 
“Até há bem pouco tempo, nas altas esferas, o que as pessoas faziam do rabo delas ou do rabo das outras, sinceramente, deixava-vos indiferentes. Simplesmente não se falava disso. 
 
“Mas não, o que vocês fizeram não tem nada que ver com o caso de assédio sexual. E aí, voltamos ao fundamental: houve sempre uma questão de relação de classes entre uma parte da profissão e Jean-Claude Brisseau, sim, de nível mesmo básico. 
 
“Jean-Claude era da classe operária, filho de empregada doméstica; detonado ainda por cima com a sua "pequena Lili "(essa sou eu) proletária imigrada filha de empregada doméstica, e sim, eu também fui empregada doméstica. Uau, o desprezo que recebemos. Fazia-nos rir quase sempre, estávamos tão contentes por fazer cinema.” 
 
*

“Eu sou a morte de tudo e sou o nascimento de tudo,” diz o Bhagavad Chita, texto religioso hindu citado em Coisas Secretas e que lhe dá também o nome, “a palavra e a memória, a constância e a misericórdia. E o silêncio das coisas secretas.” Brisseau não devia ter aberto o portal das coisas secretas, só nos fez perceber uma vez mais que quem trabalha nas margens do que é estipulado socialmente, na vida como no trabalho, sempre sorrateiramente para não se suspeitar que “há algo de podre no reino da Dinamarca”, ou é absorvido pela cultura ou é castigado pelo poder. Percebe-se também que o cinema profissional sempre quis a morte do cinema amador, foi ele que gastou a palavra e a tornou pejorativa. “São amadores”, dizem. E a “tradição de qualidade” do cinema francês, atacada por François Truffaut nos anos cinquenta, continua assim mais viva do que nunca. Não se pode falar de sexo. Não se pode falar da morte. Não se pode questionar o dinheiro nem o poder. Não se pode “ousar”. Brisseau quebrou estas regras todas. E, como o que nos move por estes meses é o futuro, ficamos à espera de um dia em que uma ministra ou um ministro diga à France Culture, se ainda existir, que “agradeço à Cinemateca que tenha realizado a retrospectiva Jean-Claude Brisseau.” E que os Césares se mostrem magnânimos e reconheçam os seus erros. Não se sabe, afinal, se não haverá bárbaros à espreita, prontos a irromper por uma orgia de poderosos ao som de Zadok the Priest de George Handel, hino da Liga dos Campeões desde o início dos anos noventa, e dispostos a decepar cabeças e a usurpar o trono.



quinta-feira, 26 de outubro de 2023

317ª sessão: dia 26 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Épico de Brisseau é o penúltimo filme do Ensaio para o Futuro 

Durante os meses de Setembro e Outubro, no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe doze longas-metragens e uma curta em parceria com os Encontros da Imagem. O ciclo tem como mote o tema dos Encontros deste ano, “Ensaio para o Futuro”, e é inteiramente dedicado à memória de Carlos Fontes. 
 
Perto do final da penúltima semana de Outubro, também penúltima semana do ciclo, exibe-se Coisas Secretas (2002), filme do cineasta francês Jean-Claude Brisseau, amanhã às 21h30. Protagonizado por Coralie Revel e Sabrina Seyvecou, conta a história de duas amigas que decidem escalar a escada social a todo o custo. 
 
Num texto de 2004 publicado no jornal Libération sobre Coisas Secretas, na altura a passar na televisão, o crítico francês Louis Skorecki pergunta “Então e Brisseau? O mínimo que se pode dizer, é que nunca fez de conta que gostava dessa nova vaga que esteve muito tempo proibido de criticar, e que está agora em vias de institucionalização.” 
 
“Brisseau é conhecido na praça de Paris por não saber fechar a boca”, continua ele, “sobretudo nos momentos em que devia, para quem gostava de se juntar ao clã dos iniciados do cinema francês, o que não é verdadeiramente o seu caso. É um caso, Brisseau. Amor excessivo pela verdade e pelo cinema, tudo junto, provoca estragos.” 
 
A páginas tantas do livro de entrevistas a Antoine de Baecque de 2006, L’Ange exterminateur, num excerto traduzido por Bruno Andrade para a FOCO - Revista de Cinema, Brisseau disse que “eu utilizo métodos que não se encaixam com os da maior parte dos outros cineastas, ao recusar os assistentes e os diretores de casting. E é algo frequentemente bastante criticado no meio. Certas pessoas da profissão e eu discutimos bastante sobre essa questão. Diziam-me: “Um filme faz-se com toda uma equipa, é uma catedral, e o metteur en scène é como um arquiteto: ele organiza mas não realiza todas as tarefas...” Seguindo essa concepção, o cineasta está acima de todos, é uma espécie de papá para a equipa do filme.” 
 
“A Christine Gozlan,” prossegue Brisseau, “antiga directora de produção e actual produtora, disse-me um dia a mesma coisa, acrescentando o seguinte: “No cinema francês há um sistema de hierarquia destinado a proteger o metteur en scène. De todo o mundo. Porque os problemas vêm de todo o lado, então colocam-se fusíveis em todo o lado.” Compreendo essa ideia de cinema mas não é a minha, porque para mim, se tudo se passa assim não é o metteur en scène que faz o filme, é a equipa. O metteur en scène diz “sim/não”, dá grandes conselhos, mas não é ele que faz o filme. Mas isso talvez não se possa aplicar aos filmes que têm uma grande amplitude financeira. Neste caso é necessário delegar muito; ora, essa não é a minha maneira de fazer cinema. Num filme eu quero poder mudar as coisas no último instante, quero conhecer verdadeiramente cada membro da equipa, dos actores aos técnicos, e não quero que um ou mais assistentes escolham em vez de mim os actores, os figurantes, os cenários, os posicionamentos.” 
 
As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, durante este ciclo às terças e quintas-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até amanhã!

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Crash (1996) de David Cronenberg



por Vítor Ribeiro

[Um contributo, na subscrição do manifesto assinado pelos editores do À pala de Walsh, na defesa e elogio das edições físicas como um dos caminhos de suporte da cinefilia, da diversidade e da transmissão entre gerações das obras, do reconhecimento dos seus autores, da valorização do cinema e da sua linguagem.] 
 
A cinefilia organiza-se nas nossas cabeças, na nossa memória, mas também precisa de outro espaço, de espaço físico. No armário onde junto os filmes (a maioria em DVD), a disposição faz-se pela ordem alfabética do nome dos realizadores, uma questão de organização, claro, mas também do pagamento da dívida à política dos autores, conforme a prescrição dos Cahiers du Cinéma. A parte superior do armário permite que esta estrutura de arrumação seja questionada, com a introdução dos santinhos no altar: cineastas com quem nos deitamos mais vezes, o que permite uma reaprendizagem das nossas filiações, um conjunto de associações, em que se juntam os irmãos Scorsese e Schrader, ou os camaradas de burlesco Chaplin e César Monteiro. 
 
Fui comparar as durações, da cassete VHS e da cópia exibida no cinema através dos recortes da imprensa que guardara, considerei a velocidade das imagens em movimento do vídeo (25 frames por segundo) quando comparada com os 24 frames por segundo do cinema, e cheguei a uma diferença de dois ou três minutos. 
 
Nesse armário, um dos santinhos é, naturalmente, David Cronenberg, onde se inclui a edição em DVD de Crash (1996), que estreou em sala em Portugal, em Outubro de 1996 e que será reposto no dia 7 de Janeiro. Aficionado de Cronenberg e leitor de Ballard, tenho na memória três peregrinações à sala de cinema ao encontro da carne e da máquina, sendo que a primeira terá sido no Nun’Alvares, maravilhoso cinema de cidade, na Guerra Junqueiro, Porto. Alguns meses depois (não me recordo se a janela para a edição em vídeo era de três ou de seis meses), um amigo que trabalhava num clube de vídeo ficou com o encargo de me avisar da chegada do VHS de Crash
 
Recolhi-me com aquele objecto de desejo no domicílio, mas logo nas primeiras sequências algo de estranho aconteceu: pareciam faltar partes das cenas do filme que tinha na memória. Mas, só tive a certeza, já passada mais de metade da duração do filme, na cena que se segue ao encontro dos corpos de Vaughan e Catherine na lavagem automática do carro dele, da sua cama sobre rodas. No domicílio, na mesma cama onde James e Catherine tinham fantasiado com as cicatrizes do corpo estropiado de Vaughan, Catherine encolhida no seu corpo coberto de escoriações, marcado pelos movimentos maquinais de Vaughan, era afagada pelo toque de James e pela música orquestrada de Howard Shore, a substituir as guitarras metálicas que soaram até aí. Cena lindíssima, expressão de intimidade, que aquela edição havia retalhado, talvez para ocultar os genitais de Deborah Unger sugestionados pela versão integral. 
 
Fui comparar as durações, da cópia exibida no cinema através dos recortes da imprensa que guardara (a internet era ainda pré-histórica e o Google uma quimera), considerei a velocidade das imagens em movimento do vídeo (25 frames por segundo) quando comparada com os 24 frames por segundo do cinema, e cheguei a uma diferença de dois ou três minutos. Cheio de convicção, que devo ter carregado com a indignação de quem não está habituado a viver com a censura, escrevi ao distribuidor da edição em VHS. A responda não demorou, lamentavam o erro, tinham utilizado por acidente uma cópia distribuída no Reino Unido (onde a censura de filmes era, talvez ainda seja, comum), mas iriam repor o filme, com a edição correcta. Algumas semanas depois, chegou pelo correio uma nova cassete VHS, com a metragem certa e uma carta de agradecimento, que guardei, mas não sei onde. 
 
Uma dúzia de anos depois, em Maio de 2009, uma Mostra de Ficção Científica – On the Trek – tão peregrina, que só conheceu uma edição, na Casa das Artes de Famalicão. À boleia da ante-estreia europeia(!) do reboot de Star Trek armado por J. J. Abrams, um panorama de cinco dias estrelado por um Programa Ballard, onde recuperámos uma cópia em película de Crash, também em película, Aparelho Voador a Baixa Altitude (2002), o Ballard das ruínas de Tróia por Solveig Nordlund, Videodrome (1983), um Cronenberg sem a escrita mas com o espírito ballardiano, e uma exposição em diálogo com o CCCB: Centre de Cultura Contemporània de Barcelona. E a fechar a On The Trek, Wall-E (2008). Nos primeiros trinta minutos da mais bonita peça do catálogo Pixar, nas ruínas de um novo mundo, despovoado, em que os arranha-céus são já esculturas cobertas de poeira e de tempo, um robô obsoleto, mas trabalhador, arruma e empilha lixo retirado de uma extensa clareira. 
 
Wall-E vai catando vários objectos que arruma no seu atrelado, memorabilia sentimental organizada em prateleiras (onde ele próprio se arruma no fim do dia de trabalho): cassetes VHS, onde ele revê musicais, que também grava no seu dispositivo, um cubo mágico, talheres, relógios, espanta-espíritos, um globo terrestre, objectos e brinquedos, que ele testa e experimenta, cataloga e organiza. Do ecrã de Wall-E solta-se um pedaço de Hello, Dolly! (1969), o tema “It Only Takes a Moment”: não consigo imaginar maior elogio à materialidade. 
 
in «Crash, uma edição censurada», À Pala de Walsh, 31 de Dezembro de 2020. 
 

[O autor deste texto está a preparar uma análise mais aprofundada sobre Crash, que oportunamente partilharemos, talvez até noutra exibição do filme.]



segunda-feira, 23 de outubro de 2023

316ª sessão: dia 24 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Filme de David Cronenberg na próxima sessão do cineclube 

Durante os meses de Setembro e Outubro, no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe doze longas-metragens e uma curta em parceria com os Encontros da Imagem. O ciclo tem como mote o tema dos Encontros deste ano, “Ensaio para o Futuro”, e é inteiramente dedicado à memória de Carlos Fontes. 
 
A abrir a quarta semana do mês de Outubro, penúltima semana do nosso ciclo, exibe-se Crash (1996), do canadiano David Cronenberg, amanhã às 21h30. Protagonizado por James Spader, Holly Hunter, Elias Koteas, Deborah Kara Unger e Rosanna Arquette, o filme é baseado no romance homónimo de James Graham Ballard, de 1973, publicado entre nós pela Relógio d’Água em 1996 e pela Elsinore em 2016. 
 
Sobre a sua adaptação, Cronenberg disse em 1997 à revista Filmmaker que “é difícil saber como é que se muda em termos da nossa realização. Obviamente, espera-se que se esteja a ficar melhor e mais maduro, mas talvez não. Eu não reli o livro atentamente porque a minha experiência tem sido a de que se tem de estar preparado para trair o livro para lhe ser fiel.” 
 
“Parece um paradoxo,” continuava ele, “mas na verdade não é. Os dois meios são tão diferentes que se tentamos ser literalmente fiéis, falhamos. Portanto temos de nos adaptar a que estamos a fazer uma coisa nova para o grande ecrã que vai ter a sua vida própria e que vai ser filtrada pelo nosso sistema nervoso, pela nossa sensibilidade.” 
 
Numa discussão sobre o seu livro e a actualidade, pela altura da estreia do filme, J.G. Ballard disse que “acho que nos anos noventa nos tornámos muito mais honestos em relação à natureza humana e somos mais abertos à verdade das nossas próprias identidades. Na altura em que escrevi o livro (comecei-o em 1970) a ideia de que as pessoas podiam ter algum tipo de excitação com a ideia de acidentes de carro -- bom, as pessoas simplesmente não conseguiram lidar com isso, acharam que era totalmente insano. Agora as pessoas são muito mais honestas em relação à psicologia de finais do século vinte e, para além disso, conseguem ver a forma como o acidente de carro está incorporado na cultura do entretenimento. Nenhum thriller respeitável de Hollywood tem menos de seis acidentes de carro.” 
 
“E as pessoas percebem a extensão a que a agressão e a libido se incorporam na experiência de conduzir um carro,” prosseguia Ballard. “Qualquer mulher sabe que há por aí imensos homens que não conseguem suportar ser ultrapassados por uma mulher ao volante. Muitos homens acham a condução extremamente competitiva. Obviamente que a experiência de conduzir toca em todos os tipos de tensões agressivas na nossa composição e isso é necessário; afinal, tem de se ser decidido se se faz uma ultrapassagem numa estrada apertada a noventa quilómetros por hora. É preciso canalizar um certo nível de agressão. O meu romance e o filme encaram isso de forma razoável e directa.” 
 
As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, durante este ciclo às terças e quintas-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até amanhã!

sábado, 21 de outubro de 2023

Holy Motors (2012) de Leos Carax



por Alexandra Barros

Holy Motors acompanha Monsieur Oscar desde a sua saída de casa para o trabalho, de manhã, até ao seu regresso a casa, à noite, no fim de uma lista de actuações agendadas para o dia. Mas nem estas casas são a mesma, nem a família da qual se despede de manhã é a mesma para a qual regressa à noite. M. Oscar é actor de uma estranha forma de arte performativa. Percorre Paris, numa limusine guiada por Céline (sua motorista-secretária-amiga), de encontro a diversas situações, onde encarna personagens detalhadamente descritas nas instruções que recebe diariamente. Transforma-se, ora no “camarim” do interior da limusine, ora não se sabe onde: numa mendiga corcunda, num louco que habita os subterrâneos da cidade, num assassino e num assassinado, num actor de motion capture[1] , no pai de uma (filha real?) adolescente, num vingador que confronta uma das outras personagens que o próprio Oscar interpretou antes, num acordeonista, num moribundo, ... Cada uma destas actuações parece ser parte de uma nunca explicada história. Nalgumas situações pensamos estar perante a vida autêntica de M. Oscar, mas logo de seguida somos deixados na dúvida. Tudo é ambíguo. Nunca percebemos o que realmente se passa. Quem o contrata? Para que servem as actuações? Quem é a audiência e como é que assiste às actuações? Porque é que M. Oscar desempenha estes papéis? Apesar do visível cansaço que o “supervisor” lhe aponta, M. Oscar diz continuar a actuar “pela beleza do gesto”. Mas a beleza de tantos e diversos gestos tem o seu preço. Que gestos são afinal os seus? Num encontro fortuito (ou mais uma actuação?) com Eva Grace, uma colega de profissão que há muito não via (e com quem terá tido uma relação amorosa), ela canta as angústias existenciais e questões identitárias que os afligem. 
“Quem éramos nós? 
Quem éramos quando éramos quem éramos, naquela época? 
Em que nos teríamos tornado se tivéssemos agido de outra forma, naquela época? 
Não existem novos começos. 
Alguns morrem, alguns continuam a viver”. 

Terminado o dia de trabalho, e após estacionar a limusine entre muitas outras na garagem Holy Motors, Céline retira a peruca e coloca uma máscara branca, sem expressão, para regressar a casa. As limusines, finalmente sós, conversam entre si: “Shsss! Estou a tentar dormir. / Não tardarás a dormir, quando estiveres destinada à sucata. / Estamos a tornar-nos inadequadas. / Os homens já não querem máquinas visíveis.”  

Nas palavras de Leos Carax: “As limusines estão em total sintonia com os nossos tempos – ao mesmo tempo vistosas e saloias (…). Comovem-me. Estão ultrapassadas, como velhos brinquedos futuristas do passado. Marcam o fim de uma era, a era das máquinas grandes e visíveis.”, “Holy Motors é uma espécie de ficção científica, nas quais humanos e máquinas estão à beira da extinção, escravos de um mundo cada vez mais virtual. Um mundo do qual as máquinas visíveis, as experiências reais e as ações estão gradualmente a desaparecer“, “Na cena em que o Denis Lavant está coberto por sensores brancos ele é um trabalhador especializado em motion capture. Não muito distante de Chaplin em Tempos Modernos – exceptuando o facto de que o homem já não está preso nas engrenagens da máquina mas nas malhas de uma rede invisível.”[2] 

Estranho e enigmático, Holy Motors, como toda a grande arte, presta-se a múltiplas interpretações. Carax novamente: “O filme é simples se se aceitar que não se sabe para onde se vai.”[3] Mais ou menos como a morte, o envelhecimento, a vida.

[1] Processo em que câmeras captam movimentos dos atores, que serão depois processados digitalmente. É muito utilizado em filmes de animação, onde veio substituir as técnicas tradicionais.



quarta-feira, 18 de outubro de 2023

315ª sessão: dia 19 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


“Holy Motors” de Leos Carax é a próxima sessão do cineclube 
 
Durante os meses de Setembro e Outubro, no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe doze longas-metragens e uma curta em parceria com os Encontros da Imagem. O ciclo tem como mote o tema dos Encontros deste ano, “Ensaio para o Futuro”, e é inteiramente dedicado à memória de Carlos Fontes. 

Esta quinta-feira exibe-se a quinta longa-metragem de Leos Carax, Holy Motors, um filme de ficção científica de 2013 com Denis Lavant, Édith Scob, Eva Mendes, Kylie Minogue, Michel Piccoli e o próprio Leos Carax no elenco. Acompanha a vida de um homem chamado Oscar durante 24 horas. 
 
“Durante muito tempo,” disse o cineasta e argumentista francês a Aurélien Ferenczi da revista Télérama em 2012, “fui incapaz de imaginar um projecto estabelecendo regras de antemão («não demasiado caro», «não demasiado complicado», etc.). O que tornava tudo impossível, numa altura em que quase já não tinha aliados (mortos ou chateados) e em que os alfandegários do meio, cada vez mais numerosos, me barravam a passagem.” 
 
“A minha participação no filme Tokyo! libertou-me,” continuava ele. “Era uma encomenda, quarenta minutos num filme a três cineastas, longe de França. Precisei de o imaginar e de o rodar muito rápido. Percebi que era capaz disso, que essa rapidez de traço abria mesmo o meu cinema para outras dimensões. Mas também que isso tinha um preço: o abandono da película pelo digital. Ora, a minha paixão pelo cinema estava – ainda está – tremendamente ligada ao rolar da película, ao motor na câmara. Daí a bizarria em relação a Holy Motors: é uma celebração dos motores e da acção, rodada sem ­câmara (as câmaras digitais são computadores, não são câmaras)."
 
Num texto de 2018 escrito para a FOCO - Revista de Cinema, o crítico brasileiro Matheus Cartaxo disse que “Jorge Luis Borges, em A loteria na Babilônia, fala que dos menores aos mais drásticos eventos da realidade (o grito de um pássaro, as matizes da ferrugem e do pó, a morte de um homem, a escolha do seu executor, enumera o argentino), todos são resultados de decisões feitas através de sorteios, por uma instituição secreta, a Companhia, e colocadas em prática pelos seus agentes, não menos discretos e invisíveis.” 
 
Dois deles poderiam se chamar Céline e Oscar”, continua ele referindo-se às personagens de Holy Motors, “a quem certa vez coube ser coadjuvantes na noite em que, no olhar daquela cantora de jazz, George La Main enxergou toda a tristeza do mundo e a longa jornada de aprendizado que teria pela frente.” 
 
Até amanhã!