por António Cruz Mendes
Vi O Paraíso, Provavelmente, pela 1º vez, numa sessão que contou com a presença de Elia Suleiman. Quando, depois da projecção, ele apareceu para a esperada sessão de perguntas e respostas, vimo-lo exactamente com o mesmo aspecto com que aparece no filme. A mesma roupa, o mesmo chapéu… Parecia que tinha acabado de sair da tela para conversar connosco! Todos os manuais são taxativos sobre esta matéria: não podemos julgar uma personagem de um romance ou de um filme como se de uma pessoa real se tratasse, é uma ficção que só existe no contexto da obra onde aparece. O que importa, antes de tudo, é saber como é que ela foi construída.
Elia Suleiman parece que fez questão em desmentir este axioma. Aliás, para que não restassem dúvidas, o realizador palestiniano que vê o seu projecto recusado na entrevista que decorre em Paris é tratado por “Suleiman” e por “Elia” na que se realiza em Nova Iorque. Portanto, Charlie Chaplin não é Charlot, Jacques Tati não é o Sr. Hulot, mas é mesmo Elia Suleiman, ele próprio, a personagem central do filme que Elia Suleiman realizou.
Resta saber se se trata, de facto, de uma “personagem”. A sua intervenção no decurso da acção é nula. A sua postura típica – de pé, braços cruzados atrás das costas, olhando em frente – é mais a de um espectador do que de alguém que participa nos acontecimentos que nos são dados a ver. Praticamente, não fala. Durante todo o filme, só uma vez lhe ouvimos a voz, quando informa o motorista de táxi de que é palestiniano. “Palestiniano” – na verdade, isso resume-o como personagem deste filme. Aquilo que O Paraíso, Provavelmente quer ser é o resultado do olhar de um palestiniano sobre o mundo. Afinal, talvez, Elia Suleiman, a personagem, seja um pouco mais (e um pouco menos) do que Elia Suleiman, a pessoa que se apresentou no palco do Nimas para conversar sobre a sua obra e sobre a Palestina.
O palestiniano, segundo Suleiman, é um pária. Um estrangeiro na sua própria terra e um estranho em qualquer parte do mundo. Quando ele se apresenta como palestiniano ao motorista de táxi, este trava a fundo como se lhe tivessem dito que transportava um extra-terrestre. E até em Paris, o seu filme é recusado por ser pouco “palestiniano”. O filme de um palestiniano nem palestiniano é.
E, portanto, como pária que é, o olhar de Suleiman sobre aquilo que se passa à sua volta só pode ser o de uma profunda estranheza. Tudo aquilo que vê em Nazaré, em Paris, em Nova Iorque, parece obedecer a uma lógica que o transcende. O seu olhar, por vezes impassível, por vezes perplexo, deslumbrado ou divertido – é sempre um olhar “do exterior” da coisa observada, de alguém que se encontra fora do contexto que poderia dar a essa coisa algum sentido. Esse distanciamento tem um efeito cómico porque, transmitindo-se ao espectador, revela-nos o absurdo de uma certa “normalidade”. Por isso, é tão fácil compará-lo à comicidade que resulta do confronto do Sr. Hulot com as invenções e as convenções dos “tempos modernos”.
O Paraíso, Provavelmente é, assim, simultaneamente, um filme trágico e um filme cómico. Um filme onde uma série de gags irresistivelmente engraçados se sucedem sobre um fundo onde se reflecte a condição trágica de um povo.
E, então, a Palestina, que nos surge sob a forma de uma rapariga-anjo, perseguida no Central Park pela polícia, protectora dos bons costumes, ou no comício onde os aplausos dos espectadores não permitem que os heróis-oradores se façam ouvir? Apesar de tudo, a Palestina resiste e recomenda-se. O limoeiro que ele plantou, regado pelo vizinho que repetidamente se intromete no seu quintal, já está mais crescido; a aguadeira fez progressos no seu processo de ir buscar água à fonte; e os jovens dançam e divertem-se numa discoteca. As cartas dizem que “haverá Palestina”, ainda que isso não seja para os nossos dias.
O filme é dedicado a ela e termina com uma tímida mensagem de esperança.
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