quinta-feira, 30 de outubro de 2025

As Fado Bicha (2024) de Justine Lemahieu


por Estela Cosme
 
À primeira vista, nada sobre o fado é revolucionário. Intrinsecamente apelidado de tradição centenária, é difícil de imaginá-lo fora das casas de fados habituais, sem as convenções predefinidas que o acompanham, sem as amarras que o atam ao passado. Até que um dia o fado seguiu-se com a palavra “bicha”, e as nossas suposições foram postas em causa. Tudo graças ao poder e ao talento do duo Fado Bicha (ou As Fado Bicha), composto por Lila Fadista e João Caçador, cujo projeto demonstra que o revolucionário tem sempre origem no tradicional, pois só depois de olhar ao que já existe é que podemos criar algo novo. E por muito que possa incomodar aos mais conservadores, o que brilha tem sempre o seu lugar na ribalta (e no "zeitgeist" cultural português).
 
Mas o que este grupo tem de revolucionário não é só consequência dos elementos visuais arrojados, embora estes dissolvam a tradicional binariedade de género. Para além de cantarem sobre histórias e experiências da comunidade LGBTQIA+, o revolucionário existe também devido à vulnerabilidade que tanto João como Lila incutem àquilo que tocam e cantam. Porque não existe algo mais vulnerável que a verdade, coisa que o duo transmite com clareza e com compromisso sempre que pisam os palcos. O documentário As Fado Bicha vai ainda mais longe e mostra-nos que essa veracidade existe porque é o espelho da honestidade a que assistimos nos camarins. Quer se estejam a maquilhar a si próprios, ou a maquilhar-se um ao outro, Lila e João demonstram uma franqueza que só se poderia capturar num novo tipo de fado. E por isso o tiveram que reinventar.
 
Este novo fado pode não agradar aos saudosistas e aos tradicionalistas. A mudança é inimiga da preservação, mas só com ela é que pode haver uma evolução do género musical e da nossa cultura. “Não há mudança sem desconforto” afirma João Caçador no documentário, defendendo que o trabalho da banda é necessário para que o fado evolua para novas formas de se expressar, e para ter novas coisas que expressar também.
 
A música não existe num vácuo e deve moldar-se aos ventos de mudança que existem na sociedade portuguesa. Abrir as portas do fado a questões emergentes de identidade, de sexualidade e de expressão não só enriquece o género como traz um novo público que o quer ouvir e aplaudir. Num mundo em que nos encostam à parede para sermos quem querem que nós sejamos e não quem realmente somos, o fado não é só destino e passado. O fado é ação e mudança também. E se algo está mal, muda-se. 
 
 
 

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