quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

The Color of Money (1986) de Martin Scorsese



por José Oliveira

Martin Scorsese chegou a filmes como este The Color of Money ou o anterior After Hours passados os anos setenta da autodestruição e da penitência, cargas e voltagens Fullerianas, como quem expurga os pecados pessoais inconfessáveis ou é obrigado a redimir toda uma nação da qual se faz parte inelutavelmente. Salvo uma ou outra excepção – o sonho da magia de Hollywood mesmo que bastante trilhado em Alice Doesn't Live Here Anymore, por exemplo – as batalhas do cineasta e da câmara unos, da montagem visível, dos seus actores e da música como coro – as suas entidades indissociáveis num só ritmo – travaram-se entre as ruas, o lixo mesmo e a sujidade que passa dos passeios ao humano e regressa a eles, e o sagrado, Deus, a fé, a transcendência sempre possível até ao último fôlego – logo desde Who's That Knocking at My Door. Passada a fina linha que separa os sãos dos loucos, os acomodados dos que vão até ao fim do poço, teve, à imagem de Francis Ford Coppola, de fazer supostas encomendas de estúdio para sobreviver e ganhar prestígio. E foi nesse período que utilizando o seu temperamento destravado noutras cambiantes dramáticas e zonas de luz, supostamente mais coloridas e festivas, revelou da complexidade e subtileza das suas preocupações e recursos, chegando mais uma vez à questão do eterno retorno, centro e borda para onde concorrem sempre as quatro entidades referidas. 

«Approach every shot in the same way. Give every shot the same respect. Give every shot your full attention.» Tom Simpson (frase afixada na academia Dynamic Pool, a melhor sala de jogos de Braga e arredores). 

The Color of Money é uma continuação do filme de Robert Rossen que vimos no nosso cineclube aquando dos anos 60 do cinema americano, The Hustler chamado, e é a mais estranha e por isso mesmo plausível das sequelas. Logo na abertura, de rajada seca como as aberturas de Cruise na bola 9, e logo depois da voz de Scorsese enunciar as regras da perdição, damos literalmente de frente com Paul Newman, o Fast Eddie Felson que noutra vida, no filme de Rossen, flirtou com a tragédia e foi engolido com ela, aprendendo o que não se quer nem se deve aprender; no filme que não foi feito, onde passaram esses anos que transformaram um jovem sedento e apaixonado numa raposa cínica, outro tanto se passou, e tudo nos chegará desses anos do meio do caminho nesta obra condensada e faiscante como o jogo oficial em causa, onde Newman se vai tornar Cruise e Cruise se tornará Newman, onde a bela rapariga aprenderá demais, onde o velho e o novo trocam as voltas como a epígrafe Scorcesiana: «Beginning of the beginning of the end of the beginning». 

Então Newman, que certa vez foi como o inocente e soberbo Vincent Lauria de Cruise, metamorfoseou-se num psicólogo de laivos Frankensteineanos, uma espécie de vampiro magnético e de verve irrefutável, caçando esse sangue efervescente no intuito de cozinhar e de apurar o elixir da juventude eterna. Contrabandista de corpo e alma, eterno hustler da vida, planante entre bebidas, fumos vários, mulheres e jovens promessas, utiliza o charme e os infinitos percalços e golpes acumulados para atingir o mais quimérico dos desejos puramente humanos. «Para alguns jogadores a própria sorte é arte», foi a derradeira frase da voz-of de Scorsese, e a sorte é o indefinível que Newman também trata por tu para o desequilíbrio da balança a seu favor. 

Cruise, ele e personagem, produto típico dos anos oitenta e da era Ronald Reagan, coberto de brilhantina como de show-off, é o tipo do salão de jogos que tanto pode arriscar tudo num só golpe como jogar à borla, o jogo pelo jogo, a emoção a jorrar; Newman reconhece esse perigo, o perigo dos desalinhados ou dos não-razoáveis, e começa a deslindar sobre a mente humana, a necessidade de estudar o próximo, os movimentos cruciais e reveladores, enfim, a doutrina dos novos tecnocratas, ultra-sofisticados profetas de um mundo novo porque calibrado infalivelmente pelos números e mercados. E atira ao par – atenção pois a personagem de Mary Elizabeth Mastrantonio não é para preencher a quota sexual feminina mas é o terceiro vértice essencial do estudo sobre o vislumbre e teia do poder e da ganância – que é o dinheiro que conta, que é o melhor quem o tiver mais: A Cor do Dinheiro, a lei do dinheiro. A moral em explanação. O mundo pós-clássico. Da concentração e tensão de Rossen para os raides e flipanços do cineasta e da câmara, da montagem intempestiva, dos seus actores e do coro musical. 

Não há como sair dessa abertura de golpe seco onde o pop multi-estereofónico de Phill Colins transforma o ar do tempo ainda mais rarefeito e confuso, Cruise a confessar que para ele esse jogo são apenas bolas e tacos e Newman a espetar que quem tiver uma especialidade, um dom, como ele, no álcool ou na bola 9, fica rico. E é Newman a estudar Cruise depois de rapidamente ter conquistado a namorada. E daí brotam os jogos de dominação e do ciúme, a perturbação e ânsia sexual, a dependência infantil ou terminal, a ganância e o poder, a escravidão e humilhação, o jogo panorâmico da vida – A Cor do Dinheiro. Jogados tais jogos, esses outros jogos sem desportivismo que aguentam a condição humana e suspendem paradoxalmente a descrença, jogos do namoro ou da guerra do negócio, partem estrada fora para estudarem os movimentos humanos e testarem a paciência, tendo em vista que quem ri por último ri ou enriquece melhor. O dom natural, o intrínseco, prestes a ser dominado e sugado por quem tudo diz saber - The Color of Money é uma tragédia pois no speed e no espectáculo continua a escancarar a nossa corrupção ancestral. E é lá para o meio da viagem que Newman vai revelar que parece que está a ver um filme que já viu – como a pescadinha de rabo na boca. 

E Newman, a máquina, só vai voltar a descarrilar, a sangrar, a ser uma pessoa de carne e osso, no episódio com Forest Whitaker, onde tudo começa a resvalar e onde o filme vira; aí descobre que também pode falhar, ser enganado, volvendo-se e volvendo a narrativa ainda mais complexa – ou decide tornar-se o hustler absoluto ao ser comido por outro, ou finalmente recuperou o prazer de jogar por jogar, abrindo já para o último plano. Essa foi a derradeira lição que entregou ao casal, a partir dessa brecha, cada um sabe de si. E o filme vira mesmo, a moral vira a estética e escuta-se Giuseppe Verdi, os movimentos desenhados pela câmara começam a ser harmónicos e gerais, grandiosos, a começarem do céu para aterrarem na mesa da obsessão, muito lentamente; a namorada vira Newman, entre empresária como os do futebol de hoje e conselheira surda, e o divino parece vir observar momentaneamente o palco, a arena dos duelos à Western que supostamente Scorsese nunca fez, preparando tudo mais uma vez para o fechamento final. 

O que Forest Whitaker proporcionou foi a ascensão, a ressurreição de uma alma penada e vingativa em vida, o Newman que nos anos 60 se perdeu entre anjos trágicos com o olhar preso à morte e o mundo a seus pés, e que na era do Circo ainda aprendeu a última lição e trouxe para junto de si, sem pedir nem comprar, a mulher ideal e o prazer total da fruição de um dom. E Cruise, talvez ainda novo demais, torna-se o pior Newman, o cínico vampiro e escabroso psicólogo, mentindo ao brilho e sensibilidade do seu olhar. Mas Newman é Newman e de novo no auge chama Cruise e a namorada perdida para uma sala íntima, deserta, escondida do mundo, como a casa da paz e do sossego que cada um poderá merecer. O jogo sem o dinheiro nem a sua cor e cheiro. Ambos entregues à sua natureza, ponto de chegada essencial de um road movie que jamais o foi. Eterno retorno e salvação no inferno. Todo e o melhor Scorsese no «I'm back» que fecha outra vez fulgurante para os créditos. Sem dissimulação, nem que seja só nesse pedaço de tempo que não veremos mais. Jovens para sempre. A sagrada frase de Tom Simpson lapidada.

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