por João Palhares
“Cada um tem a sua própria versão do que foi o 25 de Abril”, atirou decidida e acertadamente Mário Fernandes no Fundão, penso que nos Encontros Cinematográficos de 2015. Sem ter em conta todos aqueles que não tenham tido um dia particularmente movimentado ou cheio de acontecimentos por estarem em casa descansados e alheados às revoluções (grupo muito variado e que inclui tanto os maiores misantropos como aqueles que acham que as revoluções são um problema dos outros), os dias de Abril não foram um regalo e uma celebração para toda a gente. Pedro Costa já disse várias vezes que, para Ventura, o 25 de Abril foi um pesadelo, que ele “ chega a Portugal em 1972, encontra trabalho bem pago, dão-lhe um contrato. Julga que se vai safar. Depois vem a Revolução e ele conta-me a história secreta dos imigrantes cabo-verdianos na Lisboa do pós-25 de Abril, a história que ninguém ainda contou. Eles tiveram muito medo de serem expulsos ou de acabarem na prisão. Barricaram-se. Nessa altura eu estava na rua, era adolescente. Durante a rodagem, fui procurar um álbum de fotos das manifestações do 1º de maio com aqueles milhares de pessoas em festa, e é incrível: não se vê um único preto. Onde estava eles? Ventura contou-me que estavam todos juntos, aterrados de medo, escondidos no Jardim da Estrela, a temer pelo futuro. Contou-me como a polícia militar, em plena euforia, partia à noite para os bairros de lata para “caçar pretos”. Parece que os amarravam às árvores para se divertirem.”[1]
Foi também muito diferente para quem o viu dos bastidores, para os exilados, para os combatentes, para os proprietários, para os retornados. Mas “a própria versão” tem ainda mais ramificações, passa também pela reconstituição dos factos, por saber quem tinha razão durante o PREC, se a revolução saiu gorada, se se cumpriram as promessas de Abril, que mão tiveram os americanos na contra-revolução, quem foram os responsáveis pelos atentados bombistas a sedes de partidos de esquerda, no Norte, e pelas ocupações e queimas de terrenos, no Sul, o que aconteceria se Ramalho Eanes não tivesse impedido o golpe militar de 25 de Novembro? Otelo esteve ou não envolvido nos recrutamentos das milícias das FP-25? Em Gestos & Fragmentos, filme que hoje veremos, Eduardo Lourenço diz que a revolução foi “à portuguesa, fez-se tudo num dia”. Não o diz (ou não me parece que o diga) no sentido que costumamos dar à expressão, o de despachar e fazer às três pancadas, mas no de um gesto impulsivo muito nosso e que atalha por todas as burocracias e entraves possíveis, o de uma disposição hercúlea para trabalhar durante horas a fio quando se tem um objectivo em mente (capacidade talvez muito adormecida nos tempos que correm). Só se pode supor que nesse caso a disposição foi tanta que não foram deixadas as provas que o “jornalista americano” de Robert Kramer quer encontrar para escrever o seu All the President's Men passado em Portugal. O nosso país talvez seja muito elusivo, tão elusivo que os representantes da CIA não conseguiam apresentar um relatório minimamente consistente para os Conselheiros Nacionais de Segurança do seu país durante os anos do Estado Novo ou durante a Revolução.
Portanto, a divisão entre as cenas com o intelectual e o revolucionário portugueses (os únicos que se encontram e discutem entre si, apesar da conversa ser dominada pela retórica e pelo carisma de Otelo) e as do jornalista americano não são de todo uma simples ilustração da oposição entre o real e a ficção, ainda que possa ter nascido com essa intenção, mas da impossibilidade de atravessar certos labirintos da realidade só com a lógica e com a razão, ou da diferença muito complexa entre o pensamento português e o americano, menos prendado para as poesias da acção. O uso dos quartetos de cordas finais de Ludwig van Beethoven (quando tinha de encostar os ouvidos ao piano para ouvir a vibração das cordas na madeira e conseguir compor) como única banda-sonora não é inocente, como não é inocente a encenação do refúgio de Kramer nas paisagens iniciais de Little Sister, de Raymond Chandler, cujo mítico personagem, Philip Marlowe, também acaba certas travessias e investigações em resignação absoluta, sonhando às vezes com a solução final e absoluta do "grande sono", ainda o único remédio conhecido para a impiedade dos homens.
Portanto, a divisão entre as cenas com o intelectual e o revolucionário portugueses (os únicos que se encontram e discutem entre si, apesar da conversa ser dominada pela retórica e pelo carisma de Otelo) e as do jornalista americano não são de todo uma simples ilustração da oposição entre o real e a ficção, ainda que possa ter nascido com essa intenção, mas da impossibilidade de atravessar certos labirintos da realidade só com a lógica e com a razão, ou da diferença muito complexa entre o pensamento português e o americano, menos prendado para as poesias da acção. O uso dos quartetos de cordas finais de Ludwig van Beethoven (quando tinha de encostar os ouvidos ao piano para ouvir a vibração das cordas na madeira e conseguir compor) como única banda-sonora não é inocente, como não é inocente a encenação do refúgio de Kramer nas paisagens iniciais de Little Sister, de Raymond Chandler, cujo mítico personagem, Philip Marlowe, também acaba certas travessias e investigações em resignação absoluta, sonhando às vezes com a solução final e absoluta do "grande sono", ainda o único remédio conhecido para a impiedade dos homens.
[1] in «Guarda a minha fala para sempre», Expresso-Actual de 25 de Novembro de 2006. Curiosa data, por sinal.