quarta-feira, 7 de maio de 2025

Sombras (1959) de John Cassavetes



por Jessica Sérgio Ferreiro
 
O filme Sombras, primeira longa-metragem do então actor John Cassavetes, não foi, nem é, apenas um primeiro filme, foi um gesto inaugural que rompeu com a gramática clássica de Hollywood e demarcou o “cinema de autor” nos Estados Unidos, propulsionando o cinema independente norte-americano. Produzido com escasso financiamento e limitações técnicas, a sua originalidade e estética resulta destes obstáculos e da vontade de fazer filme sobre “pessoas reais”, como proferido por Cassavetes. Filmado com câmara à mão de 16mm (portátil), Sombras rompe com o formalismo convencional do cinema produzido pelos grandes estúdios e deriva para uma abordagem improvisada, crua e intimista, que influenciado pelo neorrealismo italiano e pela estética documental, remete-nos, ainda, para o Direct Cinema americano e, em certa medida, para o Cinema Verité.
 
Poder-se-á deduzir que a experiência de John Cassavetes enquanto actor terá tido, também, um profundo impacto na forma como realizava e orientava as narrativas fílmicas. Ao dar liberdade aos actores para improvisarem os seus diálogos, a narrativa materializa-se e sedimenta-se na relação, ou seja, na interação espontânea e improvisada entre os actores e as suas personagens, como acontece na vida real. Esta espontaneidade acrescenta profundidade e complexidade às personagens interpretadas, bem como ao emaranhado de relações que compõem a sua realidade social – pequenos mundos interiores oprimidos e conspurcados, mas também impelidos e estimulados pelo exterior e pelo “outro”.
 
Assim, num gesto de resistência, Cassavetes optou pelo risco em vez da convenção: preferiu uma narrativa aberta com personagens em constante transformação (os actores não são profissionais e recorrem à improvisação), em vez de uma história formulaica, baseada em arquétipos, lugares-comuns e clichés. Escolheu a imperfeição deliberada em detrimento de uma produção polida e tecnicamente irrepreensível. A versão final de 1959 resultou da regravação de algumas cenas e de uma nova montagem, após o próprio Cassavetes rejeitar a primeira versão — um processo que procurava reflectir o real e a “verdade” emocional, procurando encaixar a individualidade, suas idiossincrasias e fluidez, em contextos socioculturais determinantes e igualmente complexos, marca central de toda a sua obra cinematográfica.
 
A história do filme gira em torno de três irmãos afro-americanos (dois deles de pele clara) que vivem em Manhattan, nos anos 50: Hugh, um cantor de jazz desiludido; Ben, um jovem irreverente e boémio; Lelia, a irmã mais nova que se envolve com um homem branco que desconhece a sua origem racial. A revelação desencadeia uma crise que expõe o preconceito latente na sociedade, mesmo nas camadas mais liberais. A trama não é linear, é construída em torno de episódios e encontros que exploram temas como identificação/pertença e alienação. A dimensão racial é tratada com ambiguidade: os protagonistas, de pele clara, experienciam crises identitárias que põem em causa os próprios limites da perceção social e racial. 
 
 O filme destaca-se, assim, por abordar o racismo e as complexas dinâmicas interpessoais, num país ainda imerso na segregação racial, antes da promulgação do Civil Rights Act de 1964, mas numa época em que a luta contra a segregação já pulsava com força e urgência. Sombras consegue aludir a isto tudo numa narrativa fragmentada, com personagens não unidimensionais e sem rigidez identitária, mas profundamente influenciadas pelo seu contexto, (con)vivências com o “outro” e, ainda, submetidas às imagens dominantes do “ideal” (exemplo: cartaz de Brigitte Bardot que a personagem Lelia observa atentamente).
 
O impacto de Sombras reside tanto na sua forma quanto no seu conteúdo. Do ponto de vista formal, o uso do improviso — especialmente nos diálogos — torna os personagens instáveis, emocionalmente imprevisíveis e, sobretudo, vivas. A câmara à mão, também instável, segue esses impulsos com a fluidez quase documental. No plano temático, o filme propõe uma abordagem subtil e provocadora da questão racial, sobretudo através da performance ambígua da personagem Lelia, à qual se sobrepõe, ainda, a categoria de “mulher”, sua condição, derivas e subversões. O desajuste e o mal-estar em Ben são também gritantes, limitando-se, por vezes, a reagir de forma impulsiva e/ou agressiva ou simplesmente resigna-se à apatia. Hugh, seguro quanto à sua pertença “racial”, esforça-se por corresponder a um ideal de figura paternal e ser capaz de dar suporte emocional, moral e financeiro aos mais novos. Contudo, tem dificuldades em vingar no mundo artístico, devido ao racismo e à cultura de consumo, superficial e chauvinista, que prefere exibições de mulheres seminuas do que à sua performance musical.
 
Assim, as três personagens transitam entre mundos sem verdadeiramente se encaixarem em algum. A crise racial, mas sobretudo existencial, corresponde a crises “identitárias” — pessoal, social e até cinematográfica –, expressadas ou exteriorizadas nos seus constantes reajustes, ou seja, nos reposicionamentos individuais. Em suma, as identidades expressas são meras “sombras”, são situacionais e relacionais, não dependem de uma essência fixa (essa sim “ficcionada”, imaginada, imposta e projectada), mas sim de um âmago em constante construção.
 
Cassavetes rejeita o “panfleto propagandístico” e prefere o incómodo. O racismo não é um “tema” meramente discursivo, é uma presença fantasmática que emerge nos momentos mais mundanos, no quotidiano das personagens. Esse desconforto é amplificado pela estrutura episódica e pela recusa de uma resolução clássica. Sombras termina como começou, com incerteza. O jazz, omnipresente na banda sonora (música de Charles Mingus), não é mero acompanhamento: é a matriz estética do filme. A estrutura narrativa é jazzística — feita de improviso, de rupturas, de variações sobre uma mesma “melodia”. Este estilo musical, que também quebra convenções e privilegia o improviso, faz par e harmonia com os diálogos inventados e com a movimentação da câmara irrequieta, livre e próxima, quase voyeurista, que acompanha os actores sem filtros ou orientações, sem conhecer, ainda, o seu devir. 
 
 

domingo, 4 de maio de 2025

395ª sessão: dia 6 de Maio (Terça-Feira), às 21h30


“Sombras” de John Cassavetes, esta terça-feira no Lucky Star- Cineclube de Braga
 
Para o mês de Maio, o Lucky Star- Cineclube de Braga programou uma pequena retrospectiva do realizador estadunidense John Cassavetes, importante propulsor do cinema independente. As sessões deste ciclo ocorrerão, como habitualmente, às terças-feiras na biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30.
 
Ainda em Maio, realizar-se-ão duas sessões especiais de “Cinema em Revolução”, em parceria com a associação Terminal Complex e no âmbito da exposição “Somos Todos Capitães – 50 anos em Liberdade”. Estas sessões irão ocorrer no gnration, nas duas últimas quintas-feiras do mês, às 20h30.

John Nicholas Cassavetes foi um actor e realizador estadunidense que ficou conhecido como o “pai do cinema independente dos Estados Unidos”. Esta terça-feira, 6 de maio, iniciamos o ciclo com a exibição do filme Sombras (1959).
 
Esta primeira longa-metragem de Cassavetes foi filmada nas ruas de Nova York com uma câmara portátil de 16 mm. A equipa de filmagens era composta maioritariamente por colegas do realizador e voluntários que se ofereceram para ajudar no projeto. As filmagens decorreram na cidade de Nova Iorque, sem autorização para gravar em espaços públicos, o que obrigou toda a equipa e elenco a apressarem-se para captar as cenas antes de serem expulsos pela polícia.
 
Sombras foi incluído no Registo Nacional de Filmes dos Estados Unidos em 1993, pela Biblioteca do Congresso, por ser “cultural, histórica e esteticamente significante”. Devido ao sucesso do filme, o realizador John Cassavetes recebeu várias ofertas de grandes estúdios, o que resultou na realização de dois filmes de estúdio, Too Late Blues (1961) e A Child is Waiting (1963).
 
Com diálogos improvisados, actores não profissionais e uma câmara inquieta, Sombras marca o nascimento do cinema independente americano. John Cassavetes rompe com os padrões de Hollywood para criar um retrato cru e íntimo das relações humanas na Nova Iorque dos anos 1950. Ao som do jazz de Charles Mingus, Sombras mergulha na vida de três irmãos que enfrentam dilemas raciais, afectivos e de identidade. Entre notas dissonantes e silêncios reveladores, Cassavetes constrói um filme tão improvisado quanto a música que o acompanha.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até terça-feira!


quinta-feira, 1 de maio de 2025

A História de Souleymane (2024) de Boris Lojkine



por António Cruz Mendes

Todo o cinema tem uma dimensão política na medida em que nos propõe uma visão do mundo que reflecte interesses, valores e crenças, e recorre a processos retóricos que visam convencer-nos da sua justeza. Apenas existem filmes cuja mensagem política é mais ou menos subliminar e outros onde ela é explícita. Isso pode revelar-se, desde logo, no assunto tratado. É esse o caso de A História de Souleymane. O seu tema é o da imigração, ou melhor, o da condição imigrante e, sobre isso, confrontamo-nos todos os dias com posicionamentos políticos diferentes.

Vivemos todos num mundo cada vez mais pequeno. Chamamos a isso “a globalização”. Sabemos que ela pode assumir diferentes aspectos. Quando falamos de globalização, podemos estar a falar da livre circulação de capitais, de mercadorias ou de ideias. Os meios tecnológicos de que dispomos permitem que ela se faça com uma facilidade e uma rapidez cada vez maior. Mas, podemos estar a falar também dos grandes movimentos migratórios que põem em contacto povos com diferentes costumes e tradições. Confrontamo-nos com as suas consequências, com a forma como ela nos afecta e com as diferentes reacções que suscita. As respostas que lhe damos são necessariamente políticas.

A História de Souleymane é um filme político desde logo pelo seu tema, mas é-o também noutro sentido. O seu final aberto obriga-nos a tomar uma posição: expostas as verdadeiras razões que levaram Souleymane Sangaré a emigrar clandestinamente para França, nós, espectadores, gostaríamos que as autoridades francesas lhe concedessem asilo ou não?

Podemos entender grande parte do filme como um preâmbulo à emocionante cena final onde se vai decidir o seu futuro. Afinal, todas as sequências anteriores, que nos descrevem a violência e a vulnerabilidade da condição do imigrante clandestino e, neste caso, daqueles que trabalham nas plataformas de distribuição da uber (será difícil continuarmos a olhar para essas pessoas com os mesmos olhos depois de temos visto este filme), permanentemente dependentes da boa ou da má vontade de desconhecidos, são uma demonstração prática da força das razões que levam muitas pessoas a suportar essa experiência.

A personagem de Souleymane Sangaré não é interpretada por um actor profissional, mas por alguém que viveu de facto os acontecimentos de que o filme dá conta. Vemo-lo praticamente em todas as cenas. O seu quotidiano decorre num ritmo frenético, a pedalar no meio dos carros, na urgência dos seus contactos com clientes e fornecedores, na corrida para o autocarro que o há-de conduzir ao albergue onde pode dormir, nas fugazes relações que mantém com outros imigrantes ou com Emmanuel, que lhe “aluga” a sua licença de trabalho... O tempo voa, aproxima-se a hora da entrevista com a agente da OFRA e ele tem de memorizar a “história” que lhe poderá dar direito à condição de refugiado.

Entretanto, ficamos a saber dos perigos que enfrentou para poder chegar a França e assistimos à ruptura da sua relação com Kadiatou, a namorada que deixou na Guiné. Depois de conhecida a história de Souleymane, das condições da sua “(sobre)vivência num mundo inóspito” (o tema do ciclo que com este filme se encerra) poderíamos concluir com uma afirmação muito ouvida nos filmes “de tribunal”: “that’s the case”. Cumpre-nos a nós, agora, decidir: Quem merece ser condenado, quem merece o nosso reconhecimento? 

 

 Folha de Sala

domingo, 27 de abril de 2025

394ª sessão: dia 29 de Abril (Terça-Feira), às 21h30


A História de Souleymane esta terça-feira no Lucky Star- Cineclube de Braga
 
Para o mês de abril, o Lucky Star – Cineclube de Braga apresenta um ciclo de cinema intitulado “(Sobre)vivências num Mundo Inóspito. Olhares sobre exclusões e resistências” que conta com a parceria do Fórum Cidadania pela Erradicação da Pobreza – Braga e o projeto Migra Media Acts do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho (CECS). 
 
O ciclo é composto por filmes que representam criticamente a vulnerabilidade humana e as condições político-económicas que a potenciam, dando a conhecer problemáticas e formas de resistência.
 
Este ciclo está, ainda, vinculado ao congresso internacional, no âmbito do projecto Migra Media Acts, intitulado: “Migrações e Comunicação na Era Planetária: Debates e Ações”, que decorre entre o 28 ao 30 de abril, em Braga.

Esta terça-feira, 29 de abril, terminamos o ciclo com a exibição da longa-metragem, A História de Souleymane, de 2024, realizado por Boris Lojkin e o argumento escrito por Delphine Agut.
 
A História de Souleymane retrata dois dias intensos na vida de um jovem guineense que trabalha como estafeta em Paris. Enquanto luta para sobreviver, garantir um lugar para dormir e preparar-se para a entrevista de pedido de asilo, Souleymane enfrenta a pressão de memorizar uma história fabricada que se enquadre nos critérios administrativos. Durante a entrevista, acaba por revelar a sua verdadeira história, expondo as dificuldades enfrentadas pelos migrantes.

O filme é protagonizado por Abou Sangaré, um ator não profissional cuja própria experiência de vida inspirou parcialmente o enredo. Em A História de Souleymane quase todos os atores do filme são amadores, o realizador e a diretora de elenco estiveram bastante tempo junto da comunidade guineense em Paris, onde por meio de uma associação conheceram o Abou Sangare.

O filme recebeu quatro prémios das oito nomeações em diferentes categorias nos Prémios César de 2025, em França. O filme estreou mundialmente na secção Un certain regard do Festival de Cannes em 2024, no qual ganhou três prémios: o Prémio do Júri, o de Melhor Actor e o Prémio FIPRESCI. O filme recebeu ainda dois prémios no European Film Awards.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre. 

Até terça-feira!


quinta-feira, 24 de abril de 2025

O Outro Lado da Esperança (2017) de Aki Kaurismaki



por Alexandra Barros 

O Outro Lado da Esperança é o segundo filme de uma trilogia iniciada com Le Havre (2011) e inicialmente denominada “trilogia dos portos”. Mais tarde, foi convertida para “trilogia dos refugiados” porque o tema se impôs: “Tive de fazer um filme sobre os refugiados porque a situação na Finlândia era o que era”, diz [Kaurismäki], referindo-se à intolerância que os seus compatriotas tiveram para com os 10 mil refugiados aceites pelo país.”
 
O filme cruza a história de um jovem sírio, Khaled, em fuga da guerra que devasta o seu país, com a história de um pequeno empresário finlandês, Wikström, que após uma vida no comércio a retalho de camisas, decide abrir um bar-restaurante, sem qualquer experiência ou competência na área. “Uma decisão muito sábia, porque quando os tempos vão mal os clientes bebem muito e quando vão bem ainda bebem mais.”, diz uma revendedora de vestuário que, dentro do que os tempos difíceis permitem, ajuda Wikström a liquidar a sua mercadoria.
 
Khaled chega a Helsínquia como passageiro clandestino de um navio que transporta carvão. À chegada, numa das mais belas cenas do filme, Khaled brota lentamente do carvão como um gigantesco cogumelo, negríssimo e pontuado apenas pelas duas pintas brancas dos globos oculares. Entretanto, noutra extraordinária cena, Wikström, em profunda crise existencial, larga a aliança de casamento junto ao copo da bebida com que se ocupa a mulher e sai de casa, com uma mala e sem uma palavra. É assim que Khaled e Wikström se colocam em marcha, procurando um outro lado da esperança, que estão longe de avistar.
 
O Outro Lado da Esperança é um filme cujo autor facilmente se adivinha numa qualquer “prova cega”. Tem um bouquet marcado pelas notas características do universo de Kaurismäki, tanto tematicamente e visualmente, como ainda musicalmente. Nos seus filmes, é habitual termos personagens mais ou menos à margem da sociedade, solitários, inadaptados, pessoas vulneráveis e desprotegidas, sujeitas a poderes dominantes, para quem não passam de números, ou maltratadas por outros que, por sua vez, são decerto maltratados. Daí que, nos filmes, paire sempre uma inevitável angústia ou tristeza. O seu bouquet, no entanto, inclui outros traços: um humor inteligente, não espalhafatoso, comunicado de forma impassível ou não sinalizado, e apontado aos absurdos da existência. É particularmente paradigmático deste gosto e aptidão para as situações trágico-cómicas o seguinte diálogo entre Khaled e Mazdak (um outro refugiado sírio, com quem o primeiro faz amizade).
 
Khaled: Pareces feliz e satisfeito.
Mazdak: Finjo. Os melancólicos são os primeiros a ser deportados. 
 
Outro traço característico dos filmes de Kaurismäki são os interlúdios musicais, com predominância de géneros “desusados” como: blues, rockabilly ou tango. Aqui, os “entreactos” são tocados ao vivo, ora por bandas de velhos rockers, em bares, ora por músicos que tocam na rua, na esperança de receber algumas moedas. Estes micro-documentários no interior da ficção são o meio que Kaurismäki diz ter engendrado para dar visibilidade e deixar registo de músicos finlandeses pouco conhecidos. Contudo, é mais do que isso. Para quem anda à deriva ou fustigado por permanentes tempestades, a música, de par com o álcool, é como um porto de abrigo, nos filmes de Kaurismäki.
 
O universo kaurismäkiano tem também cores e interiores muito próprios. Nas paredes são recorrentes os azuis-esverdeados, predominando, desta vez, o azul-petróleo. A disposição do mobiliário, objectos e pessoas remete ora para os quadros do pintor Edward Hopper, ora para os filmes de Yasujiro Ozu, um realizador que muito admira e a quem atribui a responsabilidade por ele próprio se ter tornado realizador. O sentido estético de Ozu é assumidamente fonte de inspiração para Kaurismäki, transparecendo, por exemplo, nos objectos do dia-a-dia que coloca em cena, escrupulosamente escolhidos, em número muito reduzido e dispostos em rigorosas composições visuais.
 
Todavia, o que torna o seu bouquet tão único são os gestos de entre-ajuda, gentileza, coragem ou amor que resgatam as personagens, quando menos esperamos, das torpezas e misérias humanas.
 
Este cocktail de sofrimento, comicidade e humanismo, dirigido tanto ao coração como ao cérebro, pode não ser suficiente para motivar o nosso ingresso numa qualquer instituição dedicada a voluntariado, mas deixa-nos certamente dispostos a fazer melhor. Kaurismäki diz que gosta de pessoas, mas que quanto à humanidade como um todo, não tem tanta certeza. Este paradoxo atravessa as suas obras, onde, por um lado, expõe as injustiças e sofrimentos a que estão sujeitos os homens comuns e, por outro, nos comove com a capacidade desses homens para resistir ao absurdo e crueldade do mundo, com a sua generosidade, altruísmo e solidariedade. Haverá filmes mais apropriados para os tempos que correm? 
 
 

quarta-feira, 23 de abril de 2025

Nha Sunhu (2021) de José Magro



por José Magro
 
 
Optando por dar voz ao realizador, transcreve-se a excelente apresentação da curta-metragem que está disponível no website do Festival Caminhos do Cinema Português:
 
“Como é que o viés do realizador influencia a representação do outro? O cinema documental é uma ferramenta poderosa para retratar o mundo, mas baseia-se numa relação intrinsecamente desequilibrada: segurar a câmara também significa ter poder sobre como o outro é representado. Dadas as variáveis dessa relação desequilibrada, é crucial que nessa representação do outro se proceda a um processo de questionamento (e autoquestionamento) do olhar, ponto de vista e perspetiva. Essa reflexão torna-se ainda mais importante quando existe desigualdade de poder na relação, devido a questões raciais ou a um passado colonial. Numa época em que se tornou essencial para o cinema ouvir e retratar as vozes daqueles historicamente e socialmente sub-representados, é importante que as suas histórias deixem de estar sujeitas apenas ao olhar ocidental e branco, que predomina, e a um sistema onde o direito de estar "atrás da câmara" é preservado e perpetuado. Nha Sunhu é um filme de ficção baseado numa situação real: a exploração de jogadores de futebol africanos no meu país natal, Portugal. Subvertendo as expectativas de uma abordagem documental, a narrativa volta os holofotes para o realizador, questionando o seu papel: quem é que está a contar a história e como é que a história está a ser contada?”.
 

[1] José Magro, https://www.caminhos.info/filmes/27ccp-298_nha-sunhu_jose-magro/?srsltid=AfmBOop1bROBqvdRDePBDm3kr18n6D2JGHMA2b-62EYG3ADi1xHcZF8m, 2021

 

 Folha de Sala