sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Margot (2022) de Catarina Alves Costa



por Virgílio Oliveira e Jessica Sérgio Ferreiro

Vigarizaram-nos de forma inenarrável ao ensinar-nos sobre a África “portuguesa”. Fizeram-nos aprender os rios, as vias-férreas o nome das províncias e os nomes das respetivas capitais, e dramaticamente não nos ensinaram nada sobre os afetos. A dada altura, quando nos é mostrado um excerto de um filme feito pelo Estado Novo, com aquela voz de timbre e tom decentes e que era indubitavelmente reconhecida como voz da propaganda, quase que choramos de raiva. Choramos porque os desordeiros têm a mania de ordenar os outros. A instrumentalização das imagens das danças Mapiko, que Margot recolheu dos Maconde, é desvirtuada por uma narração sobranceira e preconceituosa. 

Margot Dias (1908 - 2001) foi uma pianista alemã e etnomusicóloga que, juntamente com o antropólogo Jorge Dias, realizou várias missões etnográficas em África durante a ocupação colonial, confrontando-se com problemas ético-políticos inerentes ao sistema colonial e que, por conseguinte, afectavam o trabalho de campo e a relação que mantinha com a comunidade Maconde, especialmente após o Massacre de Mueda, em 1960. 

O filme começa com a entrevista que a realizadora fez a Margot em 1996, esta já com 88 anos. Várias passagens dos diários de Margot são lidos por esta, à medida que também nos conta as suas memórias de África. Catarina Alves Costa recorre aos diários de campo de Margot para nos narrar (em voz-off) as imagens que Margot registou, proporcionando-nos profundidade e complexidade aos apontamentos ou fragmentos vídeo-sonoros que isolam as práticas musicais e ritualísticas, ou seja, dão-nos uma visão do que ficou fora do campo de imagem. Assim, é nos dado a conhecer o contexto político-social da altura, bem como as impressões pessoais de Margot acerca da sua relação com as comunidades e das circunstâncias vividas. 

Partimos/transitamos, deste modo, entre a crítica a um regime de pensamento e de representação, que podemos classificar de “ocidental” (modo de fazer ciência), que tem o “outro” e a sua cultura como objecto de estudo. A obsessão em dissecar, descrever e compreender as práticas e hábitos culturais do “exótico”, bem como registar, guardar e conservar os objectos retirados do seu contexto, usos e simbolismo, está patente nas estantes do Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa, que as imagens atuais, captadas por Catarina Alves Costa, nos mostram das máscaras, usadas no rito de iniciação Likumbi, e dos vasos de barro escuro e de desenhos brancos. Em contraponto, vemos as filmagens antigas de Margot que nos esclarecem sobre a origem e função destes objectos e rituais, de par com a música e os instrumentos musicais tradicionais, mas que revelam o mesmo interesse pelo desvendar dos segredos do “outro”[1] (ex: rituais de iniciação feminina, normalmente velada). 

Catarina Alves Costa revisita todo o material recolhido e viaja até Moçambique, como Margot fizera décadas antes, para devolver as imagens e registos sonoros que a musicóloga Margot Dias registou do povo Maconde para a Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português, ou seja, para o Estado Novo, levando-nos a problematizar posicionamentos ético-políticos. 

Assim, Margot representa o sujeito colonial e encarna as “crises” da antropologia na época colonial e pós-colonial. Não obstante, o filme não se contenta com uma visão simples polarizada de Margot e do próprio trabalho antropológico, demonstrando e comprovando as ambivalências e complexidades intrínsecas ao ser(-se) humano. A leitura dos diários revela-nos o olhar crítico que Margot e Jorge já tinham da violência colonial, da desigualdade e falta de respeito para com os africanos. Percebemos, ainda, a relação emocional estabelecida entre as várias pessoas envolvidas nos estudos das missões etnográficas e a importância desta para Margot. 

Catarina Alves Costa percorre os locais e pisadas de Margot, na expectativa de, porventura, reencontrar pessoas que a tenham conhecido, para recolher, por sua vez, memórias acerca da destemida investigadora, e, em jeito de retorno, talvez reencontrar-se a si mesma, enquanto antropóloga, mulher e pessoa. Assim, à medida que a investigadora mostra aos moçambicanos de Hoje, as imagens do seu passado e sua cultura, são reativadas memórias, partilhas e emoções. A importância em descolonizar a cultura e o pensamento são evocadas pelos jovens músicos de origem Maconde que tentam recuperar as artes musicais do seu povo, bem como a emergência em resgatar a sua cultura e identidade, perdida gradualmente ao longo dos vários conflitos (guerra colonial e Guerra Civil Moçambicana) e do subsequente êxodo rural para as cidades, mas, também, em prol de uma cultura-mundo (conceito de Gilles Lipovetsky, entenda-se, cultura hegemónica como a cultura de consumo e das indústrias culturais). 

*

Assim, este filme leva-nos numa viagem pelo tempo, revisitando modos de vida que coabitavam com o passado colonial, para chegar à actualidade, composta pelos mesmos “lugares de memória” de outrora, estando, contudo, em cena, novos atores e costumes, salvaguardando-se o arquivo e a memória partilhada entre dois povos. 

Este documentário revela, ainda, a importância do trabalho etnográfico desenvolvido e do cinema como “lugar de memória viva”, que poderíamos precipitada e erradamente julgar como uma forma de mortificar a memória. Neste gesto que Margot, de forma pioneira, iniciou e que Catarina perpetua, a memória do passado, presente e futuro continuarão a nutrir os imaginários dos que virão depois, como é tão bem declarado por um escultor de estatuetas na segunda metade do filme. 

O filme termina com o fim da missão etnográfica e a despedida de Margot, “forçada” a deixar Moçambique devido à intensificação das tensões entre o poder colonial e as forças de libertação, pois sabemos que os Maconde, situados no planalto a norte e sul do rio Rovuma, foram guerrilheiros importantes, existindo um bairro específico para estes em Maputo (e que Catarina visita). Depois do Massacre de Mueda em 1960, em que centenas de trabalhadores (Maconde) das produções de algodão reclamavam por melhores condições de trabalho, foram assassinados pelas autoridades portuguesas, acontecimento dramático que teve impacto na relação que Margot tinha com a comunidade. Apesar de ter sido bem recebida e integrada quando voltou sozinha em 1961 a relação altera-se, como a própria narra emocionada na entrevista com Catarina, referindo a gentileza e o tacto com que foi tratada, relendo o momento em que lhe fizeram uma pulseira de barro e lha colocaram, como tipicamente fazem as mulheres Maconde quando vão pela primeira vez buscar barro. Contudo, o início do conflito armado (indícios que por vezes se notam quando surgem, inadvertidamente, no campo de imagem de Margot, uma ou outra AK-47, por entre aqueles que executam danças tradicionais) e a desconfiança ou, melhor, as precauções que os Maconde tomam em relação a Margot Dias, talvez por ordem da FRELIMO, impossibilitam o seu trabalho etnográfico e obrigam-na a regressar à metrópole. 

Em suma, o que a Catarina consegue é fazer um extraordinário filme que nos conta a história toda, alinhando os sucessivos apontamentos e registos que Margot deixou para a memória do futuro.

[1] Como o filósofo e escritor da Martinica Édouard Glissant acusa, defendendo o direito à opacidade.




quarta-feira, 16 de outubro de 2024

364ª sessão: dia 17 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Moçambique em foco esta semana no cineclube 
 
Durante o mês de Outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe catorze filmes em parceria com os Encontros da Imagem, com sessões às terças e quintas-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. O ciclo adopta um termo cunhado pelo poeta e ensaísta Édouard Glissant, intitulando-se “Cinema Todo-Mundo - colonialismo e a memória do futuro”. 
 
Esta quinta-feira exibe-se Margot de Catarina Alves Costa, antropóloga e realizadora portuguesa. Realizou vários documentários etnográficos, lecciona e desenvolve investigação na área do cinema e da antropologia. É, ainda, autora do livro Cinema e Povo. Representações da cultura popular no cinema português (2021) e estará presente nesta sessão. 

Em Margot, o passado colonial é explorado a partir do trabalho da etnomusicóloga alemã Margot Dias, realizado, entre 1958 e 1961, na região de Mueda, em Moçambique. Os registos das práticas culturais dos Maconde são revisitados pela realizadora que se desloca até Moçambique para os partilhar com a comunidade, num gesto de restituição da memória, procurando, por sua vez, testemunhos acerca da passagem de Margot.

"Foi um filme que comecei a trabalhar há muitos anos," disse Alves Costa sobre o seu filme em entrevista ao diário 7MARGENS no ano passado, "ainda quando trabalhava no Museu de Etnologia, então dirigido por Joaquim Pais de Brito e surgiu a ideia de fazer um guia dos filmes da Margot Dias. Nesta altura, conheci o trabalho dela e nunca mais deixei de pensar no assunto. Sonorizei para um DVD os seus arquivos para a Cinemateca e a ideia do filme foi surgindo. Já sabia tantas coisas sobre aquela história.

Quando lhe perguntaram na mesma entrevista como foi o encontro com Margot Dias, a realizadora respondeu que "foi uma pessoa com uma capacidade enorme para mudar a sua vida já numa fase madura. Foi inicialmente pianista e começou a dedicar-se à Antropologia quando conheceu Jorge Dias. Era uma pessoa muito fascinada por África. O filme conta um pouco a história do trabalho destes investigadores durante a guerra colonial, onde se cruzavam personagens complexas e não tanto os bons e os maus. Ela filmou o povo da etnia “Makonde”, no Norte de Moçambique e procurei ir à procura da forma como essas pessoas olham para esta história. É um filme com várias camadas e muito pessoal. Também entro no filme…"
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, durante este ciclo às terças e quintas às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Quinta!

KARINGANA os mortos não contam histórias (2020) de Inadelso Cossa



por Jessica Sérgio Ferreiro

Inadelso Cossa é um jovem realizador e produtor moçambicano, nascido em 1984, que conta com várias metragens que se focam, principalmente, nas memórias e pós-memórias da guerra colonial e da guerra civil moçambicana, tal como a curta-metragem Uma memória quieta (2014), que retrata a violência exercida pela PIDE em Moçambique, a longa de documentário Uma memória em três atos (2017), sobre o trauma pós-colonial e o esquecimento ou as rasuras da memória e, ainda, a sua mais recente longa de ficção As Noites ainda cheiram a Pólvora (2024), ainda a correr os festivais. 

Em KARINGANA os mortos não contam estórias (2020), o protagonista chega ao que nos parece uma terra desertificada. Trazido por um carroceiro e seu burro, relembra-nos o Caronte que transporta os mortos para o submundo. O protagonista chega, assim, à sua terra natal, à aldeia desaparecido depois da guerra colonial e da Guerra Civil Moçambicana, que durou 16 anos e teve início 2 anos após a Independência. Tema, o qual, o filme anterior Kuxa Kanema – O nascimento do cinema, exibido nesta sessão explora. 

O protagonista de KARINGANA os mortos não contam estórias, procura o velho Yamba para que lhe devolva a memória de um passado que esqueceu, ou seja, que não viveu, mas que sente no âmago do seu ser, um vazio que o desterro deixou antes do seu nascimento e da tomada de consciência na linha do tempo presente. Este exílio refere-se ao trauma da guerra e seus refugiados, ao stress pós-traumático, bem como todas as marcas que deixou naqueles que herdaram as dores que os seus ascendentes emanavam, expressavam ou reprimiam, refere-se assim à pós-memória e, em específico, à pós-memória do trauma. Em suma, a personagem principal procura entender a história do seu país e forjar a sua identidade, fora da linha de tempo a que pertence e da qual não é possível retirar-se. 

“Karingana wa Karingana” é uma expressão dos Ronga de Moçambique, similar a “era uma vez”, diz respeito à prática cultural de contar estórias (oralmente), ao conhecimento imbuído nas fábulas, nos contos e na poesia, ou seja, é o reportório cultural de um povo, a memória incorporada e a História Oral de um povo. Karingana é a prática através da qual a herança cultural é transmitida de geração em geração. Contudo, a necessidade do protagonista ouvir as estórias do velho Yamba não pode ser satisfeita, porque o velho sábio está surdo e mudo, de olhos inflamados e vidrados, preso no passado que o trauma lhe traz de volta à retina incansavelmente. A repetida ocorrência vívida e literal do trauma que surge na consciência pelo inconsciente do velho é declarada pelo protagonista/narrador que encontra o velho Yamba num canto escuro de um quarto/sala, em silêncio, com o olhar fixo num horizonte que não conseguimos ver, uma realidade paralela, um passado longínquo, incrustado na mente do velho sábio que já não pode contar estórias. 

Assim, como o olho gasto do velho Yamba que, através de uma visão esférica e constrita, revive as memórias traumáticas que lhe surgem no interior da mente e do olhar, o protagonista procura na sua câmara de filmar de 8mm, no arquivo e no cinema em geral, imagens do passado e do que dele restou. Olhar, o qual, nos é mostrado através de uma lente grande-angular, quase de olho-de-peixe, dando-nos a impressão de que também estamos a espreitar pelo ocular do visor da câmara de filmar, como o protagonista, tentando captar o passado (registado), surgindo as imagens de arquivo dos refugiados de guerra, mas também da bela mulher (Kaila) que se banhava nas águas calmas do rio, mas que já desaparecera com a possibilidade do sonho do protagonista se poder juntar a ela (morte da utopia). 

Esta procura do passado no que ficou registado dele e no acto de filmar o que dele restou no presente, não nos permite, contudo, aceder ao que o velho Yamba vivenciou, viu e vê na solidão do seu silêncio, pois, como a reaparição do trauma, mesmo que literal, é o atraso próprio do trauma e da sua re-ocorrência (reviver do trauma por aquele que sofre de stress pós-traumático) na linha de tempo presente que não nos permite testemunhar o próprio tempo e o que já aconteceu, muito menos participar ou alterar o passado que teima, também, em assombrar os contemporâneos que são os herdeiros da memória coletiva de um povo que sofreu. Não obstante, o esforço do protagonista na luta contra o tempo, através da sua máquina de filmar (câmara como arma) não é totalmente mal-sucedida. É no silêncio e no deserto das ruínas do passado, que a câmara de filmar do protagonista captou, que encontramos o indizível, o irrepresentável (como o próprio afirma no final: “Qual estória narrar?” Como representar o que não se vivenciou, o passado insondável e complexo? Como representar o irrepresentável, a violência e o terror?). 

O velho Yamba, de par com a bela jovem – o fantasma de Kaila, poderão significar, também, todos aqueles que pereceram na guerra e aqueles que já se foram e não puderam contar as suas estórias ou curar-se do trauma do terror, pois os mortos não dizem poesia, nem ouvem poesia. Os mortos não contam estórias.



Kuxa Kanema - O Nascimento do Cinema (2003) de Margarida Cardoso



por António Cruz Mendes

Margarida Cardoso, nascida em Tomar, viveu em Moçambique até aos 12 anos de idade. Regressada a Portugal, estudou cinema e comunicação visual na escola António Arroio e trabalhou como assistente de realização, anotadora e fotógrafa de cena com vários realizadores (Joaquim Leitão, João Botelho, Luís Galvão Teles, Luís Filipe Rocha...) e iniciou a sua carreira como realizadora em 1996. 

Kuxa Kanema, a sua segunda longa-metragem, uma montagem de imagens de filmes produzidos pelo INC intercalada por depoimentos de pessoas que estiveram envolvidas na sua realização, pode ser abordada a partir de diferentes linhas de leitura. 

Numa primeira abordagem, é um documentário que começa por nos informar das condições de vida do povo moçambicano, sobretudo nas zonas rurais, à data da independência. A imagem das palhotas, das crianças descalças, da ausência de estruturas básicas de saúde e educação, revelam uma situação de subdesenvolvimento económico fundado numa agricultura de subsistência. Mas dá-nos também notícia das esperanças emancipadoras despertadas pela independência, bem patentes nas imagens dos grandes comícios e do entusiasmo despertado pelas palavras de Samora Machel. E, depois, das consequências da guerra de agressão perpetrada pela África do Sul e pela Rodésia, mais tarde prolongada pela guerra civil desencadeada pela RENAMO, os “bandidos amados” de que nos fala a propaganda oficial. Acontecimentos trágicos que fizeram de Moçambique um dos países mais pobres do mundo. 

Ao mesmo tempo, o filme de Margarida Cardoso documenta a história do INC, criado logo após a independência e produtor de um jornal cinematográfico de actualidades, meio imprescindível de comunicação num contexto caracterizado por uma taxa de alfabetização muito baixa. O filme fala-nos do seu nascimento, do voluntarismo dos intervenientes e da criação necessariamente apressada dos recursos técnicos e humanos indispensáveis ao seu funcionamento, do acolhimento entusiasta das unidades móveis que se deslocavam às aldeias para aí projectar os filmes realizados. E, depois, a sua decadência, vítima das circunstâncias da guerra (salas de cinema destruídas, unidades móveis impedidas de se deslocarem com segurança) e, por fim, do advento da televisão como meio privilegiado da comunicação social. 

Mas, o filme de Margarida Cardoso pode ainda ser lido como uma reflexão acerca dos vínculos que relacionam o cinema com o poder e, neste caso, com o poder político. “Captar as imagens do povo e devolvê-las ao povo” era o lema do projecto do INC. Mas, esse processo teria que ter necessariamente um programa director. O que filmar? Que critérios deveriam presidir às filmagens? Quando Jean-Luc Godard, de visita a Moçambique, propôs que os meios de que dispunha fossem oferecidos à população para que ela os pudesse usar como entendesse, essa proposta “maluca” foi rejeitada pelo governo. As autoridades moçambicanas nunca poderiam abdicar completamente da sua supervisão sobre a actividade cinematográfica. Não havia, é certo, tal como nos é dito, uma “comissão de censura” e a liberdade dos realizadores era considerável. Mas, todos tinham consciência do significado político das suas opções e acabavam por ser eles próprios, a submeter-se a uma espécie de auto-censura. Não havia, nem nunca poderia haver, filmagens que, face a dilemas inevitáveis, pudessem assumir uma posição neutral. O que filmar? Como filmar? Qualquer opção que fosse tomada reflectiria necessariamente uma determinada perspectiva dos acontecimentos vividos. E isso tornou-se ainda mais patente num cenário de guerra de agressão e de guerra civil. Era inevitável tomar partido e, a partir de certa altura, essa obrigação foi-se traduzindo numa mensagem cada vez mais maniqueísta, mais simplista, mais distante da realidade. 

De certa forma, a história contada em Kuxa Kanema confunde-se com a história de Moçambique. O estado de abandono das suas instalações do INC, parcialmente destruídas por um incêndio e, desde então, nunca recuperadas, as bobinas enlatadas que apodrecem ao abandono, guardadas por funcionários que, inactivos, esperam o dia da sua reforma, podem também ser vistas como a metáfora de um sonho que se perdeu nas encruzilhadas da história. Neste sentido, o filme de Margarida Cardoso é também um acto de resistência. Ao ressuscitar desse cemitério as imagens de um tempo de grandes esperanças, ele recorda-nos que a crença num mundo melhor é, em última análise, imorredoura.



sábado, 12 de outubro de 2024

363ª sessão: dia 15 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Moçambique em foco esta semana no cineclube 
 
Durante o mês de Outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe catorze filmes em parceria com os Encontros da Imagem, com sessões às terças e quintas-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. O ciclo adopta um termo cunhado pelo poeta e ensaísta Édouard Glissant, intitulando-se “Cinema Todo-Mundo - colonialismo e a memória do futuro”. 
 
Terça-feira à noite exibir-se-ão então dois filmes: Kuxa Kanema: O Nascimento do Cinema de Margarida Cardoso, importante cineasta portuguesa que realizou vários documentários e longas de ficção que exploram a temática colonial e pós-colonial, como Banzo, Yvone KaneCosta dos Murmúrios e Natal de 71. E a curta-metragem KARINGANA os mortos não contam estórias de Inadelso Cossa, jovem realizador moçambicano que conta várias metragens que se focam, principalmente, nas memórias e pós-memórias da guerra colonial e da guerra civil moçambicana.. 
 
Kuxa Kanema centra-se no Instituto Nacional de Cinema e no “cinema ambulante” implementados pelo governo moçambicano após a independência. A crença na possibilidade de uma política diferente, erigida sobre valores da liberdade e igualdade, uniu vários realizadores que aspiravam ver crescer Kuxa Kanema, o cinema de todos para todos. 

"Eu não fiz nada específico para voltar a África," disse Margarida Cardoso numa mesa-redonda de 2010 com Ana Paula Ferreira e a escritora Lídia Jorge, "aconteceu um dia ter ido lá, por questões de trabalho e, claro que aqui há uma grande diferença, eu voltei ao território da minha infância, Moçambique, e não fui recebida no aeroporto por um grupo de ninjas que me atacaram e que me fizeram fugir e eventualmente poderia nunca mais ter voltado a Moçambique. Porque eu sei que há muitas coisas que quero procurar. Sempre tive a fantasia de que as poderia encontrar, a essência do que se passou lá, que mal destruiu a minha narrativa. Houve qualquer coisa que a destruiu e o que a destruiu foi o mal. E eu sempre tive essa fantasia de que ia chegar lá e que me iria sentir melhor comigo mesmo se fisicamente eu fosse encontrar os traços e a razão daquele mal. Ele tinha que lá estar, ele tinha que lá estar, eu tinha a certeza. Mas, mesmo assim, tive a sorte de realmente não ser mal recebida, no sentido em que a questão não é ser mal recebida pelo ataque dos ninjas de que eu estava a falar, é só uma metáfora, porque, na realidade, hoje em dia, toda a minha relação com Moçambique, tem a ver com toda essa possibilidade de trazer os fantasmas e de os colocar lá, porque eles são meus, não estavam lá, eu levei-os para lá, levei-os e segui-os e eles puderam andar"
 
Em KARINGANA, Inadelso Cossa explora a pós-memória e a história oral – Karingana, a arte de contar estórias ou a História Oral de um povo. A personagem principal, de volta à sua aldeia natal, procura saber o que aconteceu, mas encontra o único habitante mudo, entorpecido pelo trauma da guerra, restando-lhe apenas o cinema para lhe dar respostas. 
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, durante este ciclo às terças e quintas às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Nome (2023) de Sana Na N'Hada



por Jessica Sérgio Ferreiro

Nome (2023) de Sana Na N’Hada, similarmente ao filme Acto dos Feitos da Guiné (1979) de Fernando Matos Silva, exibido na sessão anterior, é um trabalho de memória, de reflexão sobre o passado. Contudo, este filme não reflecte apenas sobre as consequências do colonialismo e das inevitáveis lutas de libertação, mas, e sobretudo, foca-se nas aspirações frustradas da luta pela liberdade e igualdade. Assim, este filme permite dar continuidade à história que Fernando Matos Silva nos contou em Acto dos Feitos da Guiné, a partir de uma visão de dentro, do olhar guineense e de alguém que esteve envolvido nas lutas de libertação e que viu e assiste às transformações que Guiné-Bissau sofreu. 

Sana Na N’Hada, como contou na entrevista à Films en Bretagne – Union des professionnels, no 12 de março de 2024, Nome é uma síntese do que aconteceu durante e depois da guerra pela Independência da Guiné, tendo-se inspirado em muitas das suas memórias pessoais, recorrendo ainda à memória do aquivo, composta de imagens e sons captados pelo realizador e seus colegas durante o conflito até ao momento que a independência fora declarada. Alguns excertos destes filmes foram usados por Fernando Matos Silva no filme Acto dos Feitos da Guiné de 1979/80. 

Sana Na N’Hada foi recrutado, ainda na sua adolescência, para ensinar a ler aqueles que não sabiam (como decretara Amílcar Cabral) numa aldeia onde se juntavam pessoas que lutavam pela independência. Sem a possibilidade de frequentar o curso para se especializar e tornar-se professor no Conacri, foi para um hospital de campanha para frequentar um estágio de enfermagem promovido pelo Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Por não ter idade e constituição suficiente para dar apoio no campo de batalha, foi enviado para Cuba em 1967 aos 17 anos, após terminar o liceu, juntamente com Flora Gomes, Josefina Lopes Crato e José Bolama, para aprender cinema no Instituto Cubano de Artes e Indústrias Cinematográficas. Voltaram em 1972 para registar o nascimento da Guiné livre, como desejava Amílcar Cabral, enquanto disseminariam, também, imagens da causa anticolonial e sensibilizariam a comunidade internacional. Após a independência Sana Na N’Hada co-fundou e foi eleito director do Instituto Nacional de Cinema e Audiovisual da Guiné-Bissau (INCA), em 1978. Infelizmente cerca de 60 por cento dos arquivos fílmicos foram danificados, devido à não conservação por parte das autoridades responsáveis. 

Os arquivos são usados em diversos momentos de Nome (2023), mesclando ficção e real, enriquecendo esteticamente e narrativamente o filme, conjugando os diferentes planos através de raccords que casam a estória, os elementos visuais e auditivos ficcionais com os do arquivo. 

Sana Na N’Hada proporciona-nos uma visão decolonial do conflito armado, onde as tradições, mitos e rituais dão profundidade à estória, expresso no espírito que anda em torno das personagens fulcrais do filme, como por exemplo: o menino Raci. Este tem o dever de construir um bombolom, como seu pai, a fim de restituir o equilíbrio na aldeia e dar descanso à sua alma. Este instrumento de percussão é um elemento crucial, pois era através deste que os guineenses convocavam as pessoas para reuniões secretas e alertavam a aproximação do conflito armado. O realizador, na entrevista dada, referiu que se inspirou na sua própria infância e vida da aldeia na criação da personagem Raci

Através de aspectos culturais específicos da Guiné é nos possível compreender os distúrbios que o domínio colonial e a guerra causou no “mundo antigo”, cujos ancestrais e espíritos deambulam errantes à volta dos vivos, por não respeitarem as tradições e os rituais antigos (como, por exemplo, os respeitantes aos funerais), testemunhando a destruição de um país que continuará a “corromper-se”, entregue às ambições materiais e à vanidade do homem “pequeno”, bem como aos “senhores” que a luta pela independência de uma nova Guiné queria anular, como referido no filme pelos guerrilheiros do PAIGC: “Na Guiné livre nunca mais terá senhores, nem brancos, nem pretos”. 

Assim o destino da Guiné-Bissau encontra-se personificado na personagem Nome (cujo nome significa “homónimo” em Crioulo da Guiné), denominação, a qual, encontra semblante nos companheiros de guerrilha oriundos de diferentes regiões, etnias e línguas da Guiné, sendo referido o equivalente nos grupos étnicos-linguísticos dos Manjacos, Balantas e Fulas. Assim, Nome (“o meu nome é o teu nome”) significa que existe apenas uma Guiné, que pertence a todos, por igual, sem fracções nem divisões, que segue unida na mesma direção sob os mesmos princípios e valores. Contudo, como alerta o espírito errante (ou o Deus Nindo[1], referido algumas vezes no filme), estará a Guiné “preparada para tanta felicidade?”. 

O primeiro aviso é feito quando observa Nome a escapulir-se de noite, com intuito de se juntar aos movimentos de libertação para fugir às suas responsabilidades com Nambú que engravidou, sussurrando-lhe: “(...) está lua cega, o Mundo está cego, não te deixes cegar” ou, ainda, quando Raci termina a construção do bombolom na floresta, diz: “conseguiu que a voz saísse de dentro da árvore e criou um mundo dentro de outro mundo, será isto a utopia? Nunca desistir? Estará a Guiné preparada para tanta felicidade?”. Aqui podemos relacionar o “mundo dentro de outro mundo”, ao conceito do Todo-Mundo, de Édouard Glissant e que dá nome a este ciclo de cinema, ou seja referente à ideia de um Mundo plural, anti-universal e anti-colonial, constituído por vários mundos e culturas que se relacionam em igualdade, sem a existência de comunidades subalternas. Sendo a Guiné um país pluricultural, dentro de um continente africano imenso e diverso que, por sua vez, está dentro de outro Mundo global. O qual se constituiu por meio da dominação e do estabelecimento de assimetrias o dividem em partes desiguais. Noutros momentos, o deus/espírito errante questiona: “Porque as pessoas se tornam tão más?” 

Seguimos a história da Guiné no pós-independência, acompanhando o percurso de Nome que, corrompido e corroído pelo amargor, se tornou num “homem mau” e ambicioso. Sob pretexto de ser compensado pelos seus esforços na guerra, quebra os princípios e valores que o PAICG defendia durante o conflito armado e procura aceder a um estatuto social elevado. Por conseguinte, Nome torna-se um homem da cidade. A aldeia, suas tradições e as árvores de grandes raízes ficam para trás. Nome consegue transformar-se num “Senhor” que atravessa e ocupa, com autoridade, os antigos edifícios e palácios, ou seja, os lugares de poder deixados pela administração colonial portuguesa. Da mesma forma, seguem os seus antigos companheiros de luta que, graças a Nome, obtêm uma posição de privilégio e a “sua parte” do negócio, roubando os bens e recursos que pertencem ao povo guineense. Apenas um dos antigos combatentes (), ferido em guerra, não se junta a Nome e seus comparsas, vigiando-os e acusando-os de ter traído o próprio país e a missão a que se tinham prometido. A personagem renega Nome (homónimo = Tó) e diz-se chamar doravante Tótala (que significa ninguém ou aquele que não tem nome). A personagem encontra-se numa cadeira de rodas, veste-se e usa o mesmo tipo de chapéu e óculos que Amílcar Cabral, relembrando esta figura e tudo o que defendia. A personagem é assassinada no final, como foi o líder da luta, significando, assim, o prenúncio do fim do sonho, da possibilidade de um país livre, cuja política assentaria nos princípios da igualdade, ou seja, denuncia o fim da utopia e sentencia todos os “espíritos”, que acreditaram na luta pelo bem-comum e se sacrificaram na guerra, à errância e à desonra, ao esquecimento. 

Não obstante, Sana Na N’hada deixa-nos um momento de esperança, figurados na personagem Nambú, antiga namorada de Nome que ficou muda (significando o silêncio associado ao trauma da violência da guerra e que Sana Na N’Hada se conteve de representar e que considera, de qualquer forma, irrepresentável), depois de lhe terem tirado o bebé durante as convulsões da guerra, e na personagem Quiti, antiga guerrilheira que salvou e adoptou a filha de Nambú e Nome. A criança representa o futuro e esperança da Guiné que sobreviveu graças ao amor de duas mães que lhe deram dois nomes diferentes, indicando-nos, de retorno, que sobrevive a possibilidade de um entendimento conjunto, se assim o entendermos: Poderá o amor salvar o mundo? Questão que nos impele a perguntar também: Poderá o cinema salvar o mundo?

[1] Nindo é um deus “Bijagó”, ligado à natureza que criou o primeiro homem. Este não deverá quebrar as regras ancestrais sob risco de causar desgraças.




quarta-feira, 9 de outubro de 2024

362ª sessão: dia 10 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Guiné-Bissau em foco esta semana no cineclube 

Durante o mês de Outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe catorze filmes em parceria com os Encontros da Imagem, com sessões às terças e quintas-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. O ciclo adopta um termo cunhado pelo poeta e ensaísta Édouard Glissant, intitulando-se “Cinema Todo-Mundo - colonialismo e a memória do futuro”. 
 
Esta quinta-feira exibe-se Nome de Sana Na N’Hada. Nascido em 1950, este cineasta guineense juntou-se à Guerra da Independência aos treze anos, sendo enviado quatro anos depois para Cuba junto a Flora Gomes e outros para aprender cinema e documentar a luta do povo da Guiné, a pedido do líder revolucionário Amílcar Cabral.

A sessão será de entrada gratuita para todo o público e conta com o apoio da Alliance Française e do Institut Français du Cinéma. 
 
“Nome” é o jovem oriundo de uma pequena aldeia que se junta ao grupo de guerrilheiros da PAIGC para combater as forças portuguesas. As representações ficcionais da luta fazem-se acompanhar de imagens de arquivo dos confrontos, captadas nos anos setenta por Na N’Hada, durante a guerra colonial. A estória prossegue após a independência com o retorno de “Nome”, onde nos deparamos com as incertezas, instabilidades e desvios que caracterizam a fragilidade de um “novo” país que, liberto, procura definir-se, mas que se encontra embrenhado nos modos e estruturas de funcionamento herdados da colonização.

"É revoltante," desabafou Sana Na N'Hada recentemente em entrevista à RTP África. "Tudo o que está a acontecer na Guiné-Bissau. Tudo, desde o fim da guerra até agora, bom ou mau, é da nossa responsabilidade. A única coisa que nos juntava e a única coisa que nos juntou até hoje foi a Guiné-Bissau. Antes, o desígnio era a edificação da Guiné-Bissau. Hoje, temos a Guiné. A minha questão para este filme é a que faço todos os dias: será que é essa a Guiné-Bissau que estou a sentir, que estou a ver e a ouvir, pela qual lutámos?"
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, durante este ciclo às terças e quintas às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Quinta!