quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

A Tragédia de Bushidō (1960) de Eitarō Morikawa





Por Catarina Bernardo

Considerado uma obra de arte por ser o único filme do realizador, A Tragédia de Bushidô (1960) transporta-nos para um Japão onde fortificava um sistema baseado no código samurai, no qual, sempre que um senhor feudal morria, um samurai era escolhido para ser executado, permitindo-lhe assim acompanhar o seu mestre na morte e preservar a honra do clã. Com uma narrativa repleta de tragédia e crítica social, Eitaro Morikawa explora o conflito entre o tradicional e o moderno, e revela a impiedade de um sistema fundamentado na lealdade absoluta, que, no final, beneficia apenas aqueles que estão no topo da hierarquia social.

A história passa-se no Japão feudal e acompanha Iori, um jovem samurai de 16 anos, que recebe a ordem de cometer seppuku (suicídio ritual) para seguir o seu senhor na morte, um costume tradicional para preservar a honra do clã. Criado por sua cunhada Oko, esposa de seu irmão mais velho, Iori encontra nela uma figura materna e, ao mesmo tempo, uma presença ambígua dentro do código moral da época. Diante da iminente execução do jovem, Oko faz um pedido ao marido: passar a última noite com Iori para lhe ensinar os prazeres da vida antes que ele morra. Essa decisão gera um intenso conflito emocional e moral, acentuando as contradições do samurai.

Na manhã seguinte, no entanto, um decreto inesperado chega à família: a ordem de suicídio de Iori foi revocada por proibição do seppuku. O jovem, que até então havia aceitado o seu destino como inevitável, agora vê-se perdido diante de uma vida que já havia aceitado abandonar. A narrativa desenrola-se em torno da desconstrução da obediência cega à tradição e do impacto psicológico desse sistema, mostra como a honra e a obediência absoluta podem resultar em consequências trágicas.

O filme questiona se a honra imposta pelo samurai realmente glorifica os seus seguidores ou se apenas perpetua um ciclo de sofrimento e obediência irracional. A história de Iori torna-se, assim, uma metáfora sobre a brutalidade de um sistema que valoriza o sacrifício acima da vida.

A Tragédia de Bushidô é uma obra visualmente rigorosa que revoluciona a estética tradicional do jidai-geki e abandona a grandiosidade épica a favor de uma mise-en-scène intimista e opressiva. O filme utiliza enquadramentos geométricos e uma iluminação contrastada para enfatizar a rigidez do código de honra samurai e transforma o espaço fílmico numa prisão visual para os personagens.

O uso da luz e da sombra remete ao expressionismo, criando um ambiente de clausura. Os interiores são filmados com profundidade dramática, onde portas deslizantes e biombos não apenas dividem os personagens, mas também simbolizam barreiras morais e psicológicas intransponíveis. Os cortes secos e a montagem económica reforçam a rigidez da narrativa, sem excessos melodramáticos, apenas a dureza do destino e das tradições.

O movimento de câmara é contido, refletindo o peso das decisões impostas pelo samurai. No entanto, quando há deslocamentos são milimetricamente calculados e podem sugerir a tensão interna dos personagens. As cenas do pôr-do-sol, especialmente as que envolvem Oko e Iori, são carregadas de uma sensualidade reprimida, com sombras projetadas sobre os corpos num jogo de iluminação que sugere tanto desejo quanto inevitabilidade.

No fim, A Tragédia do Bushidô é uma experiência estética que ultrapassa o seu enredo, utiliza cada enquadramento, cada sombra e cada composição para reforçar a tensão entre a tradição e o desejo, ordem e desobediência. O filme é uma pintura fílmica da repressão, onde a beleza das imagens contrasta com a brutalidade do destino de seus personagens.

 

 Folha de Sala

domingo, 16 de fevereiro de 2025

384ª sessão: dia 18 de Fevereiro (Terça-Feira), às 21h30


Mestre Eitarō Morikawa na próxima sessão do Lucky Star – Cineclube de Braga

Para o mês de fevereiro, o Lucky Star – Cineclube de Braga preparou dois ciclos de cinema com um total de onze filmes, os quais serão exibidos às segundas e terças. O ciclo regular do cineclube, com as habituais sessões às terças-feiras, é dedicado aos filmes de “Mestres Japoneses Desconhecidos”. 
 
O segundo ciclo resulta da parceria com o XI Festival Convergências e é reservado ao cinema português e galego. Este ciclo procura diluir fronteiras e promover o encontro através dos vários pontos de convergência históricos e socioculturais representados no cinema de ambos os lados da raia. As sessões deste ciclo ocorrerão às segundas-feiras, nas três primeiras semanas do mês, às 21h30, também, na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Nesta terça-feira, 18 de fevereiro, será exibido A Tragédia de Bushidō (1960) de Eitarō Morikawa, às 21h30, terceiro filme do ciclo de cinema "Mestres Japoneses Desconhecidos", dedicado a realizadores japoneses pouco divulgados fora do Japão.
 
Os filmes escolhidos para este ciclo foram realizados entre os meados dos anos 50 e inícios da década de 60, abrangendo, assim, a “Era Dourada” do cinema japonês. Findada a ocupação e controlo americano no Japão, inclusive na produção cinematográfica, a partir de 1952, as obras fílmicas realizadas asseveraram o estatuto do cinema japonês no Mundo, ocupando-se de temas histórico-políticos e socioculturais de maneira crítica e, por vezes, provocadora, distinguindo-as dos demais cinemas e cuja estética é igualmente interessante.
 
Em A Tragédia de Bushidō (1960), Iori, um jovem de 16 anos, de modo a honrar o clã de samurais a que pertence, vê-se obrigado a praticar seppuku após o falecimento do seu soberano. Frente ao trágico fim do jovem samurai, a cunhada, por compaixão, oferece-se para lhe ensinar os desejos carnais, pedindo ao seu marido que lhe conceda uma noite com Iori. Contudo, após o acto consumado, um decreto é emitido no dia seguinte, apanhando de surpresa todos os concernidos.
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30, segundas e terças, durante o desenvolvimento destes dois ciclos. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça!

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

383ª sessão: dia 17 de Fevereiro (Segunda-Feira), às 21h30


Última sessão de filmes portugueses e galegos com presença de realizador - Festival Convergências
 
Para o mês de fevereiro, o Lucky Star – Cineclube de Braga preparou dois ciclos de cinema com um total de onze filmes, os quais serão exibidos às segundas e terças. O ciclo regular do cineclube, com as habituais sessões às terças-feiras, é dedicado aos filmes de “Mestres Desconhecidos Japoneses”. O segundo ciclo resulta da parceria com o XI Festival Convergências e é reservado ao cinema português e galego. As sessões deste ciclo ocorrerão às segundas-feiras, nas três primeiras semanas do mês, às 21h30, também, na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Esta segunda-feira, 17 de fevereiro, serão exibidos dois filmes no âmbito do Festival Convergências: O Documento (1974) de Enrique Baixeras, primeiro filme falado em galego apreendido pela polícia franquista e perdido durante décadas, seguido por Terra de Abril (1977) de Anna Glogowski e Philippe Costantini, contando-se com a presença deste último que apresentará o seu filme.

O Documento (1974) é uma das primeiras tentativas para criar um cinema galego. Rodado em 16mm, é o primeiro filme totalmente falado na língua galega. Sob este pretexto o filme foi confiscado pela polícia e proibido pelo regime ditatorial de Franco, razão pela qual esteve perdido durante décadas. A narrativa de O documento é uma adaptação do conto A lus do candil de Ánxel Fole.
 
Terra de Abril (1977) retrata os preparativos para a comemoração pascoal e a encenação teatral de um Auto da Paixão de Cristo. O filme tem carácter etnográfico e inspirou-se no trabalho do antropólogo Jorge Dias. A cinematografia oscila entre a imagem a cores, correspondente aos festejos, e à imagem a preto e branco para representar o quotidiano dos habitantes de Vilar de Perdizes em tempos de eleições, ainda, no rescaldo do fim da ditadura e marcado pela forte emigração de pessoas desta região.

(Philippe Costantini e Anna Glogowski foram alguns dos realizadores estrangeiros a filmar em Portugal após o 25 de abril. Costantini foi ainda responsável pelo som de MÁSCARAS de Noémia Delgado).
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30, segundas e terças, durante o desenvolvimento destes dois ciclos. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até segunda-feira!

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

O Som do Nevoeiro (1956) de Hiroshi Shimizu



Por Alexandra Barros
 
Que forças impelem as nossas ações? Como são determinados os nossos destinos? O Som do Nevoeiro tem como fio condutor a história de um amor condenado, mas estas questões existencialistas, a complexidade do comportamento humano e as dificuldades de compreendermos os outros e a nós mesmos tecem o subtexto do filme. Porque é que as personagens fazem o que fazem? Porque se sacrificam, porque hesitam, porque se conformam, porque agem de forma absurda, porque morrem? Agem compelidas pela paixão, pelo medo, pelo dever, pela cobardia, pela honra, por altruísmo, por egoísmo? Adivinhamos os seus conflitos interiores, a tensão entre sentimentos, mas nunca sabemos verdadeiramente o que acaba por determinar as suas escolhas. Possivelmente uma observação, umas palavras, um acaso, aparentemente inócuos, mas que se cravam com tal força na alma que a passam a dominar.
 
Neste filme, cada frase, cada expressão do rosto, cada gesto que se afigura significativo, tanto pode ser revelador como lançar dúvidas sobre o que demos, antes, por adquirido. As dissonâncias comportamentais, expressas ou lidas nas entrelinhas, ficam por explicar, enigmas abertos à interpretação pessoal. O grande cinema (ou melhor, de forma geral, a grande arte) é assim, convoca múltiplas leituras. Hiroshi Shimizu conjuga esta impossibilidade de ver uma pessoa na sua totalidade - os mistérios humanos - com belíssimas imagens de uma paisagem montanhosa, sempre em mutação. Raramente a montanha se dá a ver claramente. Ora vislumbramos apenas o pico, pairando sobre camadas densas de bruma, ora entrevemos pequenas áreas da encosta entre um manto irregular de nevoeiro, ora adivinhamos os traços montanhosos por trás de uma leve névoa.
 
Esta montanha é onde o professor de botânica Kazuhiko Onuma se refugiou do Japão tumultuoso do pós-guerra, dedicando-se ao estudo das plantas que aí vivem. Acompanha-o Tsuruko, a assistente, com quem tem uma relação extraconjugal. Na iminência de ser visitado pela mulher (Katsuyo), Onuma espera que a presença de Tsuruko instigue Katsuyo a dar o passo que o próprio evita dar. Apesar de ele assegurar a Tsuruko que o divórcio é inevitável, porque o casamento sempre foi de fachada, sem amor, e porque as divergências entre ambos são demasiado fortes, teme ser ridicularizado pela sociedade por se separar agora quando já tem uma filha. Tal como previsto, Katsuyo confronta-o com a traição, mas inesperadamente ele nega a relação, explicando que Tsuruku só ali está para fazer as compras e organizar a documentação. Tsuruko parte furtivamente, alegando (numa carta) que o faz para salvar o professor Q de um eventual destino trágico. Mas não terá sido a vacilação do professor, ou o “És uma indecente!” atirado por Katsuyo, o verdadeiro catalisador da partida? Os seres humanos procuram justificações tão mais enobrecedoras para os seus gestos quanto mais indizíveis são as suas reais motivações.
 
E que alegado destino trágico é aquele a que se refere? Será porventura o mesmo que Aiko (uma mulher num triângulo amoroso idêntico ao de Tsuruko) terá escolhido para si e para o amante, como fuga a um sufoco de idêntica irresolução? Aiko reprova a atitude passiva de Tsuruko e a sua submissão às (in)decisões do professor: “As mulheres devem construir a felicidade pelas suas próprias mãos”. Porém, também ela é incapaz de alcançar a felicidade que persegue. Aiko cruza-se com Onuma e Tsuruko, na cabana florestal onde estes habitam, porque procurou a montanha para deambular livremente com o seu amante. Imersos na tranquilidade e beleza da floresta aos pés da montanha, Onuma, Tsuruko e Aiko conseguem alhear-se, ainda que efemeramente, dos dilemas que os atormentam e desfrutar de fugidios momentos de felicidade. Tsuruko considera a floresta tão maravilhosa que julga ser o local ideal para morrer. Um paraíso. Ao escutar tais palavras, uma tristeza insólita assoma ao rosto de Aiko, mas a chegada do professor interrompe os seus pensamentos. Numa cena premonitória, o professor exibe dois peixes e explica que após pescar o primeiro, aquele que o acompanhava ficou triste e também se deixou pescar. Aiko exibe agora uma euforia, que não deixa de ser notada pelo professor, e que Tsuruko atribui ao facto de ela saber o que quer da vida. Essa invejada determinação e alegria é, no entanto, como se virá a revelar, um enganador canto do cisne.
 
Esta incoerência entre aquilo que as personagens exteriorizam e a sua vida interior, ou entre o que proclamam e o que fazem, emerge recorrentemente no filme. Onuma reprova a mulher por negligenciar a filha para se dedicar à política, mas vive na montanha, isolado da família, e dedicando-se exclusivamente aos seus interesses científicos. Assegura a Tsuruko que o seu casamento sem amor foi um fracasso em todos os sentidos, mas após a morte da mulher, lastima-se da falta que esta lhe faz: “Perder uma esposa é como se nos roubassem a nossa outra metade”. Em contrapartida, ao reencontrar Tsuruko, casada com outro homem, mostra-se conformado e até satisfeito com o que a vida lhes destinou. Crê que o amor que partilham é eterno por ser impossível, e que provavelmente não resistiria às dificuldades inerentes a uma vida a dois. Tsuruko não concorda. Onuma é um homem pacificado, mas para Tsuruko, a dor da perda persiste. Comprazer-se com as memórias, revisitando anualmente a montanha, é quanto basta a Onuma. Tsuruko não poderia viver noutro lugar, mesmo que, para se sustentar nesse lugar remoto, se tenha visto obrigada a trabalhar como geisha. Não lhe faltaram pretendentes, mas “as mulheres não têm emenda; quando elas já têm alguém que amam em mente, é lhes impossível formar família com outra pessoa”. Inexplicavelmente, umas horas depois de fazer esta confidência a uma amiga, Tsuruko cede à corte que, ao longo dos últimos meses, Gen, um veterinário local, aparentemente simplório, lhe tem vindo a fazer. Porque o faz? Talvez porque nessa tarde, ao ouvir a voz de Onuma (de visita à montanha), tenha evitado o encontro, receando o seu eventual julgamento moral e consequente rejeição. Terá então concluído e aceitado que o rumo ditado pela paixão devotada a Onuma, paradoxalmente, determinou a impossibilidade de por ele ser amada.
 
Gen, pelo seu lado, é incansável nos seus esforços para lhe agradar. Ama-a com a incondicionalidade, dedicação e entrega com que Tsuruko porventura terá desejado que Onuma a amasse. Talvez Tsuruko tenha sido seduzida por um lirismo recôndito que, apesar da rusticidade de Gen, a paixão terá feito emergir. Ou nele tenha reconhecido uma alma-gêmea, alguém capaz de uma afeição amorosa só equiparável à que ela dedicou a Onuma. É precisamente com desmedidos gestos de amor, de Tsuruko e de Gen, que este filme de emoções contidas se fecha.
 
Que som faz o nevoeiro? Aparentemente nenhum. Porém, tal como os sentimentos que mantemos secretos são inexistentes para os outros, o som do nevoeiro poderá ser apenas inaudível para os nossos ouvidos.
 
 

sábado, 8 de fevereiro de 2025

381ª e 382º sessão: dia 10 e 11 de Fevereiro (Segunda e Terça-Feira), às 21h30


Clássico do cinema galego e japonês esta semana nas sessões do Lucky Star – Cineclube de Braga

Para o mês de fevereiro, o Lucky Star – Cineclube de Braga preparou dois ciclos de cinema com um total de onze filmes, os quais serão exibidos às segundas e terças. O ciclo regular do cineclube, com as habituais sessões às terças-feiras, é dedicado aos filmes de “Mestres Japoneses Desconhecidos”. O segundo ciclo resulta da parceria com o XI Festival Convergências e é reservado ao cinema português e galego. Este ciclo procura diluir fronteiras e promover o encontro através dos vários pontos de convergência históricos e socioculturais representados no cinema de ambos os lados da raia. As sessões deste ciclo ocorrerão às segundas-feiras, nas três primeiras semanas do mês, às 21h30, também, na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Nesta segunda, 10 de fevereiro, exibe-se o clássico galego Sempre Xonxa (1989) de Chano Piñero. Sempre Xonxa é um dos primeiros filmes de ficção galegos, rodado em 35 mm. A narrativa centra-se nas vivências de uma mulher, Xonxa, e de dois homens, Pancho e Birutas, entre 1947 a 1986, as quais passam pela experiência da ditadura, da emigração e da desertificação de uma aldeia situada nas montanhas da Galiza. Sempre Xonxa cruza a realidade com o realismo mágico composto por lendas e tradições galegas.

Na terça-feira, 11 de fevereiro, é a vez de O Som do Nevoeiro (1956) de Hiroshi Shimizu. Em O Som do Nevoeiro (1956), o protagonista Kazuhiko Onuma, um professor de botânica, e a sua amante Tsuruko passam tempo juntos num refúgio nas profundezas dos Alpes japoneses. Naquela noite, a esposa de Kazuhiko confronta-o sobre o seu caso extraconjungal e Tsuruko, que inevitavelmente testemunha a discussão, abandona o professor. Nas décadas seguintes, sempre que Kazuhiko volta ao refúgio as memórias de Tsuruko reemergem.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30, segundas e terças, durante o desenvolvimento destes dois ciclos. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até breve!

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Cada Um na Sua Cova (1955) de Tomu Uchida


     
Por Estela Cosme

O Japão do pós-guerra traz inúmeras dificuldades a um país extremamente fragilizado, não só pelo combate, mas também pela derrota. A sociedade da década de 1950 não sai ilesa, aliás, a sua profunda reestruturação e agitação levam ao renascimento de um país e povo bastante distantes do passado. O filme de Tomu Uchida é testemunho desta transformação, cujas personagens encarnam o rebuliço da época, submergida numa modernização que leva à construção de um novo Japão, agora subjugado às circunstâncias de uma nova ordem mundial. Uma das personagens do filme resume-o de forma muito sucinta: “o Japão atual é essencialmente uma colónia americana.” Esta frase, proferida pela personagem mais amoral do filme, exemplifica o turbilhão de um país transformado, arrastando o seu povo para tempos modernos em cidades modernas com problemas modernos. Mas entre o barulho ensurdecedor das máquinas e dos aviões, do ruído do ferro e do betão, a verdadeira desgraça no filme de Uchida é o de uma família que não se consegue ouvir. E pior ainda, que não quer.
 
O filme trata sobre uma jovem de Tóquio à procura da sua independência chamada Tamiko [interpretada pela atriz Mie Kitahara, uma cara familiar antes vista pelos espectadores deste cineclube no filme A Lua Ascendeu de Kinuyo Tanaka]. Ela mora com o seu irmão acamado Junjiro e ambos ficaram à tutela da sua madrasta, Nobuko, depois da morte do sei pai [esta última é interpretada por Yumeji Tsukioka, cujo papel em Para Sempre Mulher de Tanaka arrebatou os nossos sócios no que foi um dos melhores filmes exibidos no ano passado]. Nobuko é uma viúva na casa dos quarenta, e os seus enteados aparentam ser recém-chegados à vida adulta, pelo que a diferença de idades não deve ultrapassar as duas décadas. No entanto, a diferença entre estas gerações relativamente próximas não podia ser mais vincada, e parece existir um fosso irreparável entre os membros desta família. Tamiko resiste a todas as tentativas da madrasta que a tenta convencer a casar, e Junjiro, embora confinado à sua cama, dedica o seu tempo ao jogo da bolsa de valores, amargurado pelo fim de uma relação amorosa.
 
Para complicar mais as coisas, um dos pretendentes de Tamiko, o deplorável, mas abastado Dr. Ihara, assume o seu interesse por Nobuko, embora faça questão de continuar a cortejar Tamiko, que por sua vez nutre sentimentos por Komatsu. Esta situação familiar é ainda mais agravada por um mal simultaneamente antigo e moderno: o dinheiro. Quando Tamiko vende uma das últimas propriedades da família, Junjiro assume a responsabilidade do dinheiro da venda, impedindo a Nobuko acesso à sua parte. Ela ameaça os seus enteados em deixar a casa e regressar à sua terra, mas, num ato de frieza pela mulher que os criou, eles não cedem, e a família desmorona-se. Além disso, Tamiko não casa nem com o seu amante nem com o Dr. Ihara, deixando-a à mercê do irmão, que por sua vez perde não só o dinheiro das propriedades vendidas, como também a casa hipotecada, e mais tarde a sua própria vida. A total independência de Tamiko tem um custo demasiado elevado.
 
O filme não só critica a dissolução da família tradicional, mas também os valores modernos que a provocaram. Tamiko, resiste ferozmente ao casamento, e Nobuko, que o impinge, afasta de vez a enteada, e ambas acabam por não constituir família enquanto perdem a que tinham. Junjiro, que numa cena de terror rasteja até ao quarto da ex-mulher para a atacar, perde o seu único amor, a sua saúde e tudo o que o seu pai lhe deixou. Ihara que, por sua vez, tem um caso com Tamiko enquanto declara o seu interesse por Nobuko, mais tarde critica Tamiko pela sua promiscuidade (enquanto se senta num bordel rodeado de mulheres). Komatsu, que defende a honra de Tamiko, foge antes de assumir uma relação com ela.
 
Pelos erros das suas ambições, dos seus egoísmos e dos seus próprios orgulhos, esta família japonesa desintegra-se na fragilidade de tempos de rescaldo, e para estas personagens os efeitos da guerra podem durar uma vida, mas os efeitos dos seus familiares vão durar uma eternidade. 
 
 

domingo, 2 de fevereiro de 2025

380ª sessão: dia 4 de Fevereiro (Terça-Feira), às 21h30



Mestre Tomu Uchida na próxima sessão do Lucky Star – Cineclube de Braga

Para o mês de fevereiro, o Lucky Star – Cineclube de Braga preparou dois ciclos de cinema com um total de onze filmes, os quais serão exibidos às segundas e terças. O ciclo regular do cineclube, com as habituais sessões às terças-feiras, é dedicado aos filmes de “Mestres Japoneses Desconhecidos ”. O segundo ciclo resulta da parceria com o XI Festival Convergências e é reservado ao cinema português e galego. Este ciclo procura diluir fronteiras e promover o encontro através dos vários pontos de convergência históricos e socioculturais representados no cinema de ambos os lados da raia. As sessões deste ciclo ocorrerão às segundas-feiras, nas três primeiras semanas do mês, às 21h30, também, na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Nesta terça-feira, 4 de fevereiro, será exibido, às 21h30, o primeiro filme do ciclo de cinema “Mestres Japoneses Desconhecidos”, dedicado a realizadores japoneses pouco divulgados fora do Japão e que foram realizados entre os meados dos anos 50 e inícios da década de 60, abrangendo, assim, a “Era Dourada” do cinema japonês, bem como produções que imediatamente lhe seguiram.

Findada a ocupação e controlo americano no Japão, inclusive na produção cinematográfica, a partir de 1952, as obras fílmicas realizadas asseveraram o estatuto do cinema japonês no Mundo, ocupando-se de temas históricos e socioculturais de maneira crítica e, por vezes, provocadora, inclusos em formas estéticas que o distingue dos demais, mesmo reconhecendo-se técnicas cinematográficas comuns noutros cinemas.

O filme Cada um na sua Cova (1955), de Tomu Uchida, retrata a vida de Nobuko que mora com os dois filhos de seu falecido marido, Tamiko e Junjiro. Tamiko é uma jovem mulher independente, enquanto Junjiro está acamado, doente e destroçado. As tensões aumentam dentro da família quando Nobuko decide encontrar um pretendente para Tamiko. A escolha é entre Dr. Ihara, um mulherengo sem vergonha, e Komatsu, um romântico que não consegue afirmar-se. Cada Um Na Sua Cova é um retrato de uma nova sociedade japonesa em profunda transformação, ainda impactada pelos traumas da guerra.
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30, segundas e terças, durante o desenvolvimento destes dois ciclos. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.
 
Até terça!