domingo, 5 de maio de 2024

342ª sessão: dia 7 de Maio (Terça-Feira), às 21h30


“As 2 Faces do Dr. Jekyll”, para ver na biblioteca 
 
Este mês de Maio, o Lucky Star – Cineclube de Braga promove um ciclo dedicado a cinema de terror realizado na Europa, com obras do cineasta britânico Terence Fisher, o franco-americano Jacques Tourneur, o francês Georges Franju e o italiano Dario Argento. As sessões realizam-se sempre às terças-feiras às 21h30 no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 
 
O ciclo, intitulado “Europa Terror Expresso - Clássicos do terror europeu”, começa hoje à noite com a exibição de As 2 Faces do Dr. Jekyll de Terence Fisher. Baseado no célebre livro O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson, o filme troca as voltas à história original e apresenta-nos um Dr. Jekyll bem mais insípido e um Sr. Hyde nada monstruoso fisicamente mas antes esbelto e muito bem sucedido socialmente. 
 
Fisher nasceu a 23 de Fevereiro de 1904, em Maida Vale, e faleceu em Twickenham a 18 de Junho de 1980, aos oitenta anos. Fez perto de sessenta filmes, sendo mais conhecido pelos que realizou para a produtora Hammer, fundada em 1934 por William Hinds e James Carreras, e talvez particularmente pelos ciclos dedicados às personagens do conde Drácula e do barão Frankenstein, interpretadas por Christopher Lee e Peter Cushing. 
 
“O estilo de Fisher é um estilo clássico, equilibrado, por vezes um pouco lento,” escreveu o crítico e historiador francês Jacques Lourcelles sobre o cineasta britânico no seu dicionário de cinema. “Desprovido de exibicionismos e de insistência, ele vai no entanto até ao limite do que se podia tentar, na altura em que cada um dos filmes foi realizado, no domínio do terror visual.” 
 
Falando precisamente sobre As 2 Faces do Dr. Jekyll, de 1960, o crítico espanhol Jesús Cortés escreveu em 2011 que “a variação acometida por Terence Fisher sobre uma das grandes novelas de finais do século XIX, O Médico e o Monstro, escrita por Robert Louis Stevenson em 1886, chega no momento de máxima criatividade do grande cineasta inglês, coincidindo com o apogeu ou o equador dos ciclos sobre outras personagens míticas da literatura fantástica.” 
 
As sessões do mês de Maio contarão com apresentações em vídeo de Cauby Monteiro, Pedro Fávaro e Fernando Costa, integrantes da produtora de cinema brasileira Asilo Febril. 
 
As sessões do Lucky Star ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 1 de maio de 2024

Dina e Django (1981) de Solveig Nordlund



por Estela Cosme

Dina é jovem, sonhadora e meiga, mas sobretudo é rebelde e destemida. Leva ao peito uma chave, tendo sempre consigo o único acesso ao seu mundo interior. Embora esteja apenas a começar a vida, o universo de Dina é bem mais rico que os senhorios da casa onde mora. 

Pouco depois de a conhecermos, vemos Dina de olhos abertos, inquieta numa noite calma, deixando o conforto da cama da avó pela frieza do chão da casa de banho, onde finalmente pode partilhar os seus pensamentos. É através do seu diário, um dos seus poucos pertences nesta casa de estranhos, que obtemos a pista mais importante para desvendar o destino de Dina. 

"Lisboa, 17 de Março de 1974". 

Dina é como todas as jovens da sua idade, com uma tremenda ânsia de experienciar a vida, impaciente por expandir o seu mundo para fora do diário, para fora da cozinha da avó, para fora da janela da escola. O que ela não sabe é que em breve uma rebelião estará à porta do seu liceu no Largo do Carmo. Mas Dina não espera e põe em marcha a sua própria revolução. 

É comum que na nossa sociedade as vivências de adolescentes sejam subestimadas, postas de parte como consequências inconvenientes do crescimento. Um sobressalto em alto mar antes da chegada a bom porto. Mas o filme de Solveig Nordlund mostra precisamente o contrário, focando-se numa história que tem tanto para contar como a de um adulto, inclusive em tempos de mudança. Dina emerge como uma ligação entre o passado e o futuro, ilustrando o quão difícil é viver no intermédio. Pior ainda quando se está a tentar estabelecer uma individualidade, sobretudo uma que resista a um sistema político opressivo. 

A rebeldia de Dina é discreta numa ditadura incessante e cruel, e nada parece causar-lhe grandes problemas, à exceção de uma camisola. É na atenção que os homens mais velhos lhe prestam que ela encontra a sua forma de escapar à monotonia da adolescência, o que lhe trará consequências nefastas. Mas o amor está ao virar da esquina. E os tanques também. 

A vida de Dina muda radicalmente quando conhece Django, tão misterioso como o seu nome, um enigma de casaco de cabedal, com promessas de um amor que ela só conhece das bandas-desenhadas. O começo é o típico mar de rosas até que Django se mostra cada vez mais possessivo. Enquanto as ruas da cidade se enchem de esperança e alívio pelo fim da brutalidade do regime findado, o amor de Dina e Django azeda e complica-se, tornando-se não só violento mas também inquebrável, com um pacto de sangue que manchará as suas vidas para sempre. 

A revolução de Dina e de Django é difícil de presenciar, sobretudo quando entram numa espiral de criminalidade que não se fica apenas pelos roubos e sequestros. É inquietante ver quando Django esconde num cobertor uma espingarda, um dos símbolos da revolução de Abril, desta vez sem cravo, uma mera arma para perpetrar os seus crimes. É ainda mais doloroso ver quando é usada, num momento de pânico, não só por ele, mas também por Dina, já não mais inocente, nem perante a lei nem perante a sua própria consciência. 

Enquanto dorme, Dina agarra a chave que leva ao pescoço. Agarra também a sua ligação ao passado para poder escapar ao presente. Comete por isso mais um ato de rebeldia, tentando assim evitar um destino trágico. Quebra então a sua submissão a Django, mas é tarde demais, e a sua adolescência chega a um fim precoce demais. 

As palavras da sua avó ecoam enquanto vemos o triste desfecho de Dina: “O mais importante é o amor.” Será verdade? 

É o amor que leva Dina algemada a um destino trágico, um efeito da nova liberdade das mulheres, mas também castigo da ditadura dos homens. Vemos a injustiça de um presente aprisionado enquanto se grita por liberdade nas ruas. A sua revolução é uma sem cravos. 

Dina aprende a lição com uma pena demasiado pesada: não há amor sem liberdade. E essa é a chave que devemos levar sempre ao peito.



segunda-feira, 29 de abril de 2024

341ª sessão: dia 30 de Abril (Terça-Feira), às 21h30


“Dina e Django” de Solveig Nordlund no auditório da BLCS 
 
Este mês de Abril, o Lucky Star – Cineclube de Braga associa-se ao Sindicato dos Professores do Norte e a outras entidades para promover um ciclo dedicado aos cinquenta anos do 25 de Abril. As sessões realizam-se às terças-feiras às 21h30 no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 
 
O ciclo, intitulado “50 Anos de Liberdade - Onde Estamos Nós no 25 de Abril?”, termina terça-feira à noite com a exibição de Dina e Django de Solveig Nordlund, que conta com as interpretações de Maria Santiago e Luís Lucas nos papéis principais e diálogos da poetisa Luiza Neto Jorge. A sessão contará com a presença de “Django” em pessoa, Luís Lucas. 
 
A revolução dos Cravos de 1974 é o pano de fundo para a estória de Dina e Django, jovens apaixonados e delinquentes com a sua própria revolução em curso. De leitarias e bares no Bairro Alto a cozinhas da burguesia intelectual, passando por quartos alugados e pelos passeios da prostituição, acabarão acossados e perseguidos pelas autoridades portuguesas. 
 
“Se há filmes em que a Revolução de 1974 é um eco em pano de fundo,” escreveu Maria João Madeira, “este é certamente o mais literal desses exemplos. Na versão remontada por Solveig Nordlund em 1998 essa dimensão – a terceira do filme, para recorrermos a um termo então empregue pela realizadora – é sublinhada com a utilização de imagens documentais do 25 de Abril, intercaladas com a história de Dina e de Django, a partir de determinado momento do filme, logo depois de a patroa dar a notícia do golpe de Estado à Sra. Ana, abraçando-a efusivamente.” 
 
“Na versão publicamente conhecida até 1999,” continua a programadora da Cinemateca Portuguesa na sua folha sobre o filme, “a presença dos acontecimentos da Revolução, a decorrer a par da ficção, era dada exclusivamente através de elementos sonoros em off.” 
 
“Agora,” termina, “não que o sentido do filme se adense ou adquira outra espessura, mas através da montagem paralela sublinha-se esta perspectiva, acentuando-se, também, a solidão destes heróis dominados pelas frases dos livros de cordel, sem causa que não a sua, capazes de imunidade em relação ao exterior mesmo tratando-se de um momento de excepção.” 
 
As sessões do mês de Abril do cineclube ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do Lucky Star e do Sindicato dos Professores do Norte têm entrada livre.

Até Terça!

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Continuar a Viver ou Os Índios da Meia Praia (1977) de António da Cunha Telles



por António Cruz Mendes

António da Cunha Telles foi um elemento destacado do Cinema Novo, movimento inspirado na Nouvelle Vague francesa e no neo-realismo italiano que, nos anos 60, veio renovar o cinema português lançando um novo olhar sobre o nosso quotidiano, despindo-o da visão pitoresca e idealizada que caracterizava o cinema promovido pelo Estado Novo. A sua intervenção fez-se notar como produtor (produziu, por exemplo, em 1963, Os Verdes Anos, a primeira longa-metragem de Paulo Rocha e uma obra marcante do início do Cinema Novo português), como distribuidor (foi responsável pela divulgação em Portugal da obra de Eisentein, de Jean Vigo, de Glauber Rocha e de muitos outros notáveis realizadores) e como realizador (O Cerco, de 1970). 

Com o 25 de Abril, o Cinema Novo sofre um novo impulso e inicia uma segunda fase da sua existência. Surgem, então, alguns documentários que, na linha do “cinema verdade”, procuram fixar as experiências e transformações então vividas, cruzando uma perspectiva etnográfica com um compromisso militante. É com esse propósito que António da Cunha Telles filma, entre 1975 e 1976, Continuar a Viver – Os Índios da Meia-Praia

O filme inicia-se com um plano de pescadores que arrastam para a praia uma rede onde saltam pequenos peixes. Seguem-se as imagens de um grupo de pessoas que transportam às costas uma barraca. As apresentações estão feitas: são os “índios da meia-praia”, uma comunidade de pescadores pobres que vivem em barracas numa praia e Lagos, no Algarve. 

Canta José Afonso: “Quem aqui vier morar / Não traga mesa nem cama / Com sete palmos de terra / Se constrói uma cabana”. 

Quem são eles? Vários depoimentos informam-nos donde vieram e das esperanças que os trouxeram até ali. Ainda José Afonso: 

De Monte-Gordo vieram / Alguns por seu próprio pé / Um chegou de bicicleta / Outro foi de marcha à ré”. 

São proprietários de pequenos barcos e confrontam-se com a abissal diferença entre os preços por que vendem o pescado e os preços por que são vendidos os mesmos peixes no mercado, aos consumidores. “Tu trabalhas todo o ano / Na lota deixam-te mudo / Chupam-te até ao tutano / Levam-te o couro cabeludo”. 

Pouparam tostões para poderem comprar embarcações um pouco maiores do que aquelas com que começaram a sua vida. As barracas de colmo onde habitavam foram sendo substituídas por outras de madeira, mas a pobreza continua a pesar sobre eles como uma maldição. O filme revela-nos o seu quotidiano, as crianças que brincam na areia e os homens que se dividem entre os trabalhos do mar e o conserto das redes. 

Com o 25 de Abril, a pobreza permanece, mas novas perspectivas se abrem. “Continuamos pobres, mas estamos mais contentes”, diz-nos um velho pescador. Apoiados pelo SAAL (Serviço Ambulatório de Alojamento Local) poderão finalmente abandonar as barracas e viver em casas com outras condições. Forma-se uma associação de moradores. Não há ainda dinheiro, mas um empréstimo de 45 contos permite- lhes começar os trabalhos. O Fundo de Fomento da Habitação financia as obras. Para que os seus custos sejam mais reduzidos e para que elas se possam iniciar de imediato, os próprios moradores disponibilizam-se para trabalhar na construção das casas. Trabalham nos seus tempos livres, homens e mulheres de todas as idades. 

Eram mulheres e crianças / Cada um c’ o seu tijolo / ‘Isto aqui era uma orquestra’ / Quem diz o contrário é tolo”. 

Realizam-se as primeiras eleições democráticas. Como se vota? Em quem se deve votar? As questões políticas atravessam-se no caminho dos “índios da meia-praia” e o barco da esperança parece ir despedaçar-se contra as duras rochas da realidade. 

Mandadores de alta finança / Fazem tudo andar pra trás / Dizem que o mundo só anda / Tendo à frente um capataz”. 

Mas, apesar de todos os problemas, das dúvidas e desavenças, as obras avançam e as novas habitações começam a ganhar forma. Porém, de que vale ter uma casa se não se tem nada para pôr lá dentro? Junto à costa, o peixe começa a escassear e, no alto mar, mandam os grandes arrastões. As pequenas embarcações não podem concorrer com eles... Surge a hipótese dos pescadores, unidos numa cooperativa, poderem comprar um barco com outras dimensões. 

O filme, que se iniciou com uma rede de peixe miúdo que se puxava para a praia, termina com as imagens de uma traineira que navega pelo mar fora. A quem pertence? Para onde se dirige? O futuro é incerto e problemático, mas, como canta José Afonso: 

E se a má língua não cessa / Eu daqui vivo não saia / Pois nada apaga a nobreza / Dos índios da Meia- Praia”.



segunda-feira, 22 de abril de 2024

340ª sessão: dia 23 de Abril (Terça-Feira), às 21h30


“Os Índios da Meia Praia” no auditório da BLCS 
 
Este mês de Abril, o Lucky Star – Cineclube de Braga associa-se ao Sindicato dos Professores do Norte e a outras entidades para promover um ciclo dedicado aos cinquenta anos do 25 de Abril. As sessões realizam-se às terças-feiras às 21h30 no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 
 
O ciclo, intitulado “50 Anos de Liberdade - Onde Estamos Nós no 25 de Abril?”, continua amanhã à noite com a exibição do documentário de António da Cunha Teles, Continuar a Viver ou Os Índios da Meia Praia, com fotografia de Acácio de Almeida e música de Zeca Afonso, e estreado em Portugal a 25 de Abril de 1977, depois de uma ante-estreia em Lagos. 
 
O filme é sobre os trabalhadores do mar da Meia-Praia e a equipa do SAAL - Serviço de Apoio Ambulatório Local de Lagos, que se juntam para substituir as casas velhas por moradias de pedra com a esperança de constituir uma cooperativa de pesca e construir uma pequena sociedade. A sessão será apresentada pelo professor Manuel Sarmento. 
 
“A realidade excede sempre a ficção,” confessou o arquitecto José Veloso em 2022 sobre as operações SAAL no Algarve e as circunstâncias em torno da produção deste filme de António da Cunha Telles. “A Operação SAAL na Meia-Praia com aquela população peculiar e com a dinâmica do momento histórica que então todos nós vivíamos, observada pelos olhos de hoje parece ser uma ficção, bem plasmada no filme do Cunha Telles.” 
 
“A música e letra do José Afonso ganhou uma globalidade formal muito apreciada,” continuou José Veloso, falecido no passado dia 19 de Janeiro, aos 93 anos, “muito divulgada, mas distante do objectivo de apoio político da altura, que tinha a ver com a “ressaca” social e política que então já se adivinhava.” 
 
“Historiando e registando: o José Afonso,” termina Veloso, “que tinha sido meu colega professor nos anos 50 na Escola Industrial e Comercial de Lagos, procurou-me […] Encontrámo-nos num café em Setúbal perto da Estação de Caminho de Ferro. Estava apinhado de gente, que entrava, saía e cumprimentava o Zeca com fortes palmadas nas costas interrompendo permanentemente a nossa conversa. Foi no meio desta confusão que iam nascendo as estrofes que hoje todos conhecem.” 
 
As sessões do mês de Abril do cineclube ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do Lucky Star e do Sindicato dos Professores do Norte têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Torre Bela (1975) de Thomas Harlan



por António Cruz Mendes

O“25 de Abril” não foi só o golpe militar que pôs fim à ditadura, mas também, e sobretudo, como dizia Ary dos Santos, “as portas que Abril abriu”, essa vaga imensa de iniciativas populares que desenharam possibilidades de construção de uma sociedade diferente daquela em que se viveu durante tantos anos – uma sociedade mais livre, mais democrática, mais justa, mais solidária. 

Uma revolução é sempre um acto fora-da-lei. Faz-se para abolir as leis que regiam o regime deposto e inaugura um período onde as leis que hão-de substituir aquelas que foram revogadas ainda não foram feitas. Uma revolução é um tempo em que aquilo que faz lei é a vontade dos revolucionários, um tempo onde tudo parece ser possível. 

Foi nesse tempo que um grupo de camponeses pobres decidiu ocupar a imensa e desaproveitada herdade da Torre Bela. O filme de Thomas Harlan documenta essa extraordinária aventura levada a cabo por trabalhadores sem instrução que ousam desafiar tradições ancestrais, tomar nas suas próprias mãos o destino das suas vidas e inventar novas formas de decidir colectivamente o seu futuro. 

A ocupação da herdade levanta problemas e origina discussões. Como se forma uma cooperativa? Quem passa a ser o dono das terras ocupadas? Como é que a propriedade vai ser gerida? Como vai se remunerado o trabalho dos cooperantes? Que relação se vai estabelecer entre eles e as autoridades locais e nacionais? Quem vai cozinhar as refeições dos que trabalham nos campos? Tudo se debate, muitas vezes de uma forma acalorada, tantas vezes de uma forma confusa. Não existe nenhum guião processual pré- definido, são novas formas de decisão democrática que estão a ser inventadas. Estamos perante um caso de democracia directa ou participativa. Quais são as suas virtudes, quais são as suas limitações? 

O filme coloca-nos diante de muitas questões. O direito à propriedade é um direito absoluto ou um direito limitado? E, se tem limites, que limites são esses? A quem deve pertencer a terra, a quem a trabalha ou a quem a herdou? E a enxada que um trabalhador comprou, é dele ou da cooperativa que se está a formar? E o “palácio” dos Duques de Lafões, a quem pertence? 

Terão os camponeses o direito de o ocuparem, de dormir nele, de prepararem nas suas cozinhas as suas refeições, ou não? E os objectos pessoais do Duque e da sua família, as suas mobílias, as suas roupas, os seus livros? Sobre tudo isto, as opiniões dos camponeses dividem-se e o realizador recusa-se a tomar partido. As cenas que observamos não foram encenadas, mas filmadas em tempo real. Aparentemente, a câmara limitou-se a registar os acontecimentos e as controvérsias. Mas será realmente possível essa “objectividade” que o chamado “cinema verdade” reclama para si? Temos a sensação que aqueles que participam no filme ignoram a presença do realizador, mas será de facto assim? E qual terá sido o critério que presidiu à montagem das cenas filmadas? 

Torre Bela é um filme que se situa nesse espaço ambíguo entre o documentário cinematográfico e o cinema militante, mas é também essa ambiguidade que faz dele um documento histórico, a marca de um tempo onde tudo, mesmo as mais fantásticas utopias, artísticas ou sociais, pareciam realizáveis. 

O filme termina de uma forma um tanto abrupta com a informação de que, no dia 1 de Dezembro de 1975, a herdade foi devolvida aos seus antigos donos e que os responsáveis pela ocupação foram incriminados e presos, sem explicitar as circunstâncias e razões políticas que explicam esse fim. Entretanto, mais recentemente, a herdade da Torre Bela, que já não pertence ao Duque de Lafões, voltou a ser notícia. Em 2020, realizou-se aí uma caçada que terminou com a morte de centenas de veados. Sendo uma herdade vedada, os animais não tinham por onde fugir à perseguição dos caçadores. Mais do que uma caçada, tratou-se de uma verdadeira chacina que indignou a opinião pública. Mais recentemente, soube-se que muitas centenas de sobreiros e azinheiras, árvores protegidas, vão ser abatidas para que se instale aí uma imensa central fotovoltaica. 

O tempo dos acontecimentos que o filme documenta pode parecer-nos hoje irremediavelmente vencido. Mas, talvez não seja assim. As utopias mesmo quando não se realizam, não morrem. Reaparecem teimosamente sempre que há injustiças. Talvez como um horizonte difícil de alcançar, mas que continua presente, acompanhando a humanidade pelos séculos fora.