sábado, 12 de outubro de 2024

363ª sessão: dia 15 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Moçambique em foco esta semana no cineclube 
 
Durante o mês de Outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe catorze filmes em parceria com os Encontros da Imagem, com sessões às terças e quintas-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. O ciclo adopta um termo cunhado pelo poeta e ensaísta Édouard Glissant, intitulando-se “Cinema Todo-Mundo - colonialismo e a memória do futuro”. 
 
Terça-feira à noite exibir-se-ão então dois filmes: Kuxa Kanema: O Nascimento do Cinema de Margarida Cardoso, importante cineasta portuguesa que realizou vários documentários e longas de ficção que exploram a temática colonial e pós-colonial, como Banzo, Yvone KaneCosta dos Murmúrios e Natal de 71. E a curta-metragem KARINGANA os mortos não contam estórias de Inadelso Cossa, jovem realizador moçambicano que conta várias metragens que se focam, principalmente, nas memórias e pós-memórias da guerra colonial e da guerra civil moçambicana.. 
 
Kuxa Kanema centra-se no Instituto Nacional de Cinema e no “cinema ambulante” implementados pelo governo moçambicano após a independência. A crença na possibilidade de uma política diferente, erigida sobre valores da liberdade e igualdade, uniu vários realizadores que aspiravam ver crescer Kuxa Kanema, o cinema de todos para todos. 

"Eu não fiz nada específico para voltar a África," disse Margarida Cardoso numa mesa-redonda de 2010 com Ana Paula Ferreira e a escritora Lídia Jorge, "aconteceu um dia ter ido lá, por questões de trabalho e, claro que aqui há uma grande diferença, eu voltei ao território da minha infância, Moçambique, e não fui recebida no aeroporto por um grupo de ninjas que me atacaram e que me fizeram fugir e eventualmente poderia nunca mais ter voltado a Moçambique. Porque eu sei que há muitas coisas que quero procurar. Sempre tive a fantasia de que as poderia encontrar, a essência do que se passou lá, que mal destruiu a minha narrativa. Houve qualquer coisa que a destruiu e o que a destruiu foi o mal. E eu sempre tive essa fantasia de que ia chegar lá e que me iria sentir melhor comigo mesmo se fisicamente eu fosse encontrar os traços e a razão daquele mal. Ele tinha que lá estar, ele tinha que lá estar, eu tinha a certeza. Mas, mesmo assim, tive a sorte de realmente não ser mal recebida, no sentido em que a questão não é ser mal recebida pelo ataque dos ninjas de que eu estava a falar, é só uma metáfora, porque, na realidade, hoje em dia, toda a minha relação com Moçambique, tem a ver com toda essa possibilidade de trazer os fantasmas e de os colocar lá, porque eles são meus, não estavam lá, eu levei-os para lá, levei-os e segui-os e eles puderam andar"
 
Em KARINGANA, Inadelso Cossa explora a pós-memória e a história oral – Karingana, a arte de contar estórias ou a História Oral de um povo. A personagem principal, de volta à sua aldeia natal, procura saber o que aconteceu, mas encontra o único habitante mudo, entorpecido pelo trauma da guerra, restando-lhe apenas o cinema para lhe dar respostas. 
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, durante este ciclo às terças e quintas às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Nome (2023) de Sana Na N'Hada



por Jessica Sérgio Ferreiro

Nome (2023) de Sana Na N’Hada, similarmente ao filme Acto dos Feitos da Guiné (1979) de Fernando Matos Silva, exibido na sessão anterior, é um trabalho de memória, de reflexão sobre o passado. Contudo, este filme não reflecte apenas sobre as consequências do colonialismo e das inevitáveis lutas de libertação, mas, e sobretudo, foca-se nas aspirações frustradas da luta pela liberdade e igualdade. Assim, este filme permite dar continuidade à história que Fernando Matos Silva nos contou em Acto dos Feitos da Guiné, a partir de uma visão de dentro, do olhar guineense e de alguém que esteve envolvido nas lutas de libertação e que viu e assiste às transformações que Guiné-Bissau sofreu. 

Sana Na N’Hada, como contou na entrevista à Films en Bretagne – Union des professionnels, no 12 de março de 2024, Nome é uma síntese do que aconteceu durante e depois da guerra pela Independência da Guiné, tendo-se inspirado em muitas das suas memórias pessoais, recorrendo ainda à memória do aquivo, composta de imagens e sons captados pelo realizador e seus colegas durante o conflito até ao momento que a independência fora declarada. Alguns excertos destes filmes foram usados por Fernando Matos Silva no filme Acto dos Feitos da Guiné de 1979/80. 

Sana Na N’Hada foi recrutado, ainda na sua adolescência, para ensinar a ler aqueles que não sabiam (como decretara Amílcar Cabral) numa aldeia onde se juntavam pessoas que lutavam pela independência. Sem a possibilidade de frequentar o curso para se especializar e tornar-se professor no Conacri, foi para um hospital de campanha para frequentar um estágio de enfermagem promovido pelo Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Por não ter idade e constituição suficiente para dar apoio no campo de batalha, foi enviado para Cuba em 1967 aos 17 anos, após terminar o liceu, juntamente com Flora Gomes, Josefina Lopes Crato e José Bolama, para aprender cinema no Instituto Cubano de Artes e Indústrias Cinematográficas. Voltaram em 1972 para registar o nascimento da Guiné livre, como desejava Amílcar Cabral, enquanto disseminariam, também, imagens da causa anticolonial e sensibilizariam a comunidade internacional. Após a independência Sana Na N’Hada co-fundou e foi eleito director do Instituto Nacional de Cinema e Audiovisual da Guiné-Bissau (INCA), em 1978. Infelizmente cerca de 60 por cento dos arquivos fílmicos foram danificados, devido à não conservação por parte das autoridades responsáveis. 

Os arquivos são usados em diversos momentos de Nome (2023), mesclando ficção e real, enriquecendo esteticamente e narrativamente o filme, conjugando os diferentes planos através de raccords que casam a estória, os elementos visuais e auditivos ficcionais com os do arquivo. 

Sana Na N’Hada proporciona-nos uma visão decolonial do conflito armado, onde as tradições, mitos e rituais dão profundidade à estória, expresso no espírito que anda em torno das personagens fulcrais do filme, como por exemplo: o menino Raci. Este tem o dever de construir um bombolom, como seu pai, a fim de restituir o equilíbrio na aldeia e dar descanso à sua alma. Este instrumento de percussão é um elemento crucial, pois era através deste que os guineenses convocavam as pessoas para reuniões secretas e alertavam a aproximação do conflito armado. O realizador, na entrevista dada, referiu que se inspirou na sua própria infância e vida da aldeia na criação da personagem Raci

Através de aspectos culturais específicos da Guiné é nos possível compreender os distúrbios que o domínio colonial e a guerra causou no “mundo antigo”, cujos ancestrais e espíritos deambulam errantes à volta dos vivos, por não respeitarem as tradições e os rituais antigos (como, por exemplo, os respeitantes aos funerais), testemunhando a destruição de um país que continuará a “corromper-se”, entregue às ambições materiais e à vanidade do homem “pequeno”, bem como aos “senhores” que a luta pela independência de uma nova Guiné queria anular, como referido no filme pelos guerrilheiros do PAIGC: “Na Guiné livre nunca mais terá senhores, nem brancos, nem pretos”. 

Assim o destino da Guiné-Bissau encontra-se personificado na personagem Nome (cujo nome significa “homónimo” em Crioulo da Guiné), denominação, a qual, encontra semblante nos companheiros de guerrilha oriundos de diferentes regiões, etnias e línguas da Guiné, sendo referido o equivalente nos grupos étnicos-linguísticos dos Manjacos, Balantas e Fulas. Assim, Nome (“o meu nome é o teu nome”) significa que existe apenas uma Guiné, que pertence a todos, por igual, sem fracções nem divisões, que segue unida na mesma direção sob os mesmos princípios e valores. Contudo, como alerta o espírito errante (ou o Deus Nindo[1], referido algumas vezes no filme), estará a Guiné “preparada para tanta felicidade?”. 

O primeiro aviso é feito quando observa Nome a escapulir-se de noite, com intuito de se juntar aos movimentos de libertação para fugir às suas responsabilidades com Nambú que engravidou, sussurrando-lhe: “(...) está lua cega, o Mundo está cego, não te deixes cegar” ou, ainda, quando Raci termina a construção do bombolom na floresta, diz: “conseguiu que a voz saísse de dentro da árvore e criou um mundo dentro de outro mundo, será isto a utopia? Nunca desistir? Estará a Guiné preparada para tanta felicidade?”. Aqui podemos relacionar o “mundo dentro de outro mundo”, ao conceito do Todo-Mundo, de Édouard Glissant e que dá nome a este ciclo de cinema, ou seja referente à ideia de um Mundo plural, anti-universal e anti-colonial, constituído por vários mundos e culturas que se relacionam em igualdade, sem a existência de comunidades subalternas. Sendo a Guiné um país pluricultural, dentro de um continente africano imenso e diverso que, por sua vez, está dentro de outro Mundo global. O qual se constituiu por meio da dominação e do estabelecimento de assimetrias o dividem em partes desiguais. Noutros momentos, o deus/espírito errante questiona: “Porque as pessoas se tornam tão más?” 

Seguimos a história da Guiné no pós-independência, acompanhando o percurso de Nome que, corrompido e corroído pelo amargor, se tornou num “homem mau” e ambicioso. Sob pretexto de ser compensado pelos seus esforços na guerra, quebra os princípios e valores que o PAICG defendia durante o conflito armado e procura aceder a um estatuto social elevado. Por conseguinte, Nome torna-se um homem da cidade. A aldeia, suas tradições e as árvores de grandes raízes ficam para trás. Nome consegue transformar-se num “Senhor” que atravessa e ocupa, com autoridade, os antigos edifícios e palácios, ou seja, os lugares de poder deixados pela administração colonial portuguesa. Da mesma forma, seguem os seus antigos companheiros de luta que, graças a Nome, obtêm uma posição de privilégio e a “sua parte” do negócio, roubando os bens e recursos que pertencem ao povo guineense. Apenas um dos antigos combatentes (), ferido em guerra, não se junta a Nome e seus comparsas, vigiando-os e acusando-os de ter traído o próprio país e a missão a que se tinham prometido. A personagem renega Nome (homónimo = Tó) e diz-se chamar doravante Tótala (que significa ninguém ou aquele que não tem nome). A personagem encontra-se numa cadeira de rodas, veste-se e usa o mesmo tipo de chapéu e óculos que Amílcar Cabral, relembrando esta figura e tudo o que defendia. A personagem é assassinada no final, como foi o líder da luta, significando, assim, o prenúncio do fim do sonho, da possibilidade de um país livre, cuja política assentaria nos princípios da igualdade, ou seja, denuncia o fim da utopia e sentencia todos os “espíritos”, que acreditaram na luta pelo bem-comum e se sacrificaram na guerra, à errância e à desonra, ao esquecimento. 

Não obstante, Sana Na N’hada deixa-nos um momento de esperança, figurados na personagem Nambú, antiga namorada de Nome que ficou muda (significando o silêncio associado ao trauma da violência da guerra e que Sana Na N’Hada se conteve de representar e que considera, de qualquer forma, irrepresentável), depois de lhe terem tirado o bebé durante as convulsões da guerra, e na personagem Quiti, antiga guerrilheira que salvou e adoptou a filha de Nambú e Nome. A criança representa o futuro e esperança da Guiné que sobreviveu graças ao amor de duas mães que lhe deram dois nomes diferentes, indicando-nos, de retorno, que sobrevive a possibilidade de um entendimento conjunto, se assim o entendermos: Poderá o amor salvar o mundo? Questão que nos impele a perguntar também: Poderá o cinema salvar o mundo?

[1] Nindo é um deus “Bijagó”, ligado à natureza que criou o primeiro homem. Este não deverá quebrar as regras ancestrais sob risco de causar desgraças.




quarta-feira, 9 de outubro de 2024

362ª sessão: dia 10 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Guiné-Bissau em foco esta semana no cineclube 

Durante o mês de Outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe catorze filmes em parceria com os Encontros da Imagem, com sessões às terças e quintas-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. O ciclo adopta um termo cunhado pelo poeta e ensaísta Édouard Glissant, intitulando-se “Cinema Todo-Mundo - colonialismo e a memória do futuro”. 
 
Esta quinta-feira exibe-se Nome de Sana Na N’Hada. Nascido em 1950, este cineasta guineense juntou-se à Guerra da Independência aos treze anos, sendo enviado quatro anos depois para Cuba junto a Flora Gomes e outros para aprender cinema e documentar a luta do povo da Guiné, a pedido do líder revolucionário Amílcar Cabral.

A sessão será de entrada gratuita para todo o público e conta com o apoio da Alliance Française e do Institut Français du Cinéma. 
 
“Nome” é o jovem oriundo de uma pequena aldeia que se junta ao grupo de guerrilheiros da PAIGC para combater as forças portuguesas. As representações ficcionais da luta fazem-se acompanhar de imagens de arquivo dos confrontos, captadas nos anos setenta por Na N’Hada, durante a guerra colonial. A estória prossegue após a independência com o retorno de “Nome”, onde nos deparamos com as incertezas, instabilidades e desvios que caracterizam a fragilidade de um “novo” país que, liberto, procura definir-se, mas que se encontra embrenhado nos modos e estruturas de funcionamento herdados da colonização.

"É revoltante," desabafou Sana Na N'Hada recentemente em entrevista à RTP África. "Tudo o que está a acontecer na Guiné-Bissau. Tudo, desde o fim da guerra até agora, bom ou mau, é da nossa responsabilidade. A única coisa que nos juntava e a única coisa que nos juntou até hoje foi a Guiné-Bissau. Antes, o desígnio era a edificação da Guiné-Bissau. Hoje, temos a Guiné. A minha questão para este filme é a que faço todos os dias: será que é essa a Guiné-Bissau que estou a sentir, que estou a ver e a ouvir, pela qual lutámos?"
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, durante este ciclo às terças e quintas às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Quinta!

Acto dos Feitos da Guiné (1979) de Fernando Matos Silva



por Jessica Sérgio Ferreiro

Acto dos Feitos da Guiné de Fernando Matos Silva pode ser visto como um importante documento histórico acerca da época colonial durante a ditadura do Estado Novo. O testemunho de Fernando Matos Silva transporta-nos não somente para um passado que conhecemos tal como nos foi contado e vem escrito nos livros de História, mas, e sobretudo, dá-nos acesso a uma verdade que transcende as narrativas históricas concertadas, ou seja, acedemos ao domínio da experiência e da subjectividade. 
 
Em suma, através da crítica aos discursos apologéticos da História Nacional e da partilha da experiência pessoal do realizador, permite-nos apreender e experienciar um passado vivido, mesmo que de forma limitada, pois a história vivida é insondável na sua totalidade, ou seja, na perspectiva do conjunto de pessoas que a experimentaram. O conjunto de vivências polissémicas, mesmo que documentadas, nunca podem representar a totalidade da experiência de um “povo” heterogéneo, nem a reproduzir na sua complexidade. Não obstante, o cinema surge como a ferramenta mais eficaz ou capaz de nos dar a conhecer, sentir e “viver” um mundo ou realidades desconhecidas ou não vividas. 
 
Assim, a razão pela qual se escolheu mostrar este filme neste ciclo de Cinema Todo-Mundo: colonialismo e a memória do futuro parece coincidir com aquela que o realizador poderá ter tido quando o realizou e montou: facultar uma visão alternativa aos discursos oficiais acerca da colonização portuguesa e estimular a reflexão das suas consequências. Em suma, confrontar memórias e cinema é memória. As imagens que Fernando Matos captou da Guiné-Bissau datam de 1969 e 1970, enquanto pertencia aos Serviços Cartográficos do Exército português. O filme foi montado posteriormente, alguns anos depois do 25 de abril de 1974, ou seja, Acto dos Feitos da Guiné é já um exercício de reflexão aquando da sua concepção, uma representação do passado ou de rememorar do passado no presente, assumindo a função de testemunho para o futuro. 
 
Este filme funciona como antítese aos filmes de propaganda desenvolvidos pela Agência Geral das Colónias ou, ainda, promovidos pela Comissão Nacional dos Centenários e pelo SPN/SNI (Secretariado da Propaganda Nacional/Secretariado Nacional de Informação), tal como Guiné, Berço do Império 1446-1946 (1946), realizado por António Lopes Ribeiro, durante a Missão Cinegráfica às Colónias de África, no âmbito das comemorações do 5º Centenário da Descoberta da Guiné pelo Estado Novo. Este “documentário cultural”, como foi apelidado, mostra a “obra” portuguesa na Guiné-Bissau e a sua relação com o seu povo, de forma a legitimar a sua ocupação territorial e administrativa (legitimação frágil posta em causa desde o período que antecedeu e sucedeu a Conferência de Berlim de 1884/1885, na qual se renegociaram as fronteiras e se redistribuíram os “direitos” de ocupação pelas diferentes potências europeias), tentando mostrar provas dos progressos que o território e suas gentes beneficiavam com a administração portuguesa. O documentário faz uso de uma eloquente voz-off que nos dirige e impõe uma interpretação rígida às imagens que discorrem ao longo do filme, sempre vangloriando o engenho e a benevolência do Estado Novo. 
 
Contrariando a narrativa paternalista, promovida pelo Estado Novo, e a Política do Espírito, desenvolvida por António Ferro, que difundia a grandeza da Nação e o seu papel na “História Universal” e deu “novos mundos aos Mundo” (Ferro, 1949, p. 41), Fernando Matos Silva subverte a sua função de operador de câmara do Exército português, atendendo ao facto que os Serviços Cartográficos realizaram vários filmes de propaganda (os primeiros inclusive) para o Estado Novo, tal como: Guiné: aspectos industriais e agricultura (1929) ou, ainda, a Inauguração das Comemorações Nacionais de 1940 (1940) para celebrar o duplo centenário (1140-1143/1640), relativo às datas da Fundação e Restauração de Portugal. Efemérides, as quais, são ainda hoje usadas como mote por grupos ultranacionalistas e neonazis. 
 
Para tal, Fernando Matos Silva recorre à encenação dramática e à sátira, convocando diferentes arquétipos que funcionam como lugares de memória, representados nas figuras emblemáticas da história nacional, em contraposição às imagens de arquivo da Guiné-Bissau sob domínio colonial. Assim, através de uma montagem dialéctica, os heróis mitificados são ridicularizados e contrariados (com exceção do guerrilheiro que no final reaparece como civil/ativista político e cuja luta continua). Por exemplo, aos tempos áureos dos “descobrimentos” e às missões de evangelização que lhes sucederam, é-lhes acusado a expropriação dos corpos, a escravidão que se perpetuou no trabalho forçado ainda praticado no século XX. 
 
O cenário de onde surgem as personagens míticas que saem dos diferentes “portais temporais” da História é, por vezes, percorrido pela câmara num movimento lateral que podemos associar ao travelling moral, para nos revelar a face oculta das narrativas oficiais promovidas pelo estado fascista, mostrando-nos e contando-nos a dura realidade da guerra colonial (as mortes, os feridos de guerra nos dois lados da luta armada), como resultado “natural” de uma longa história de opressão e violência, ou seja, como consequência das estruturas de ocupação imperial e colonial sedimentadas ao longo dos séculos, a par com a lógica extrativista e capitalista (e de domínio de uns sobre os outros) imposta, exacerbadas por influências externas (por exemplo, dos Estados Unidos da América – figurados na personagem Ulisses Grant, entre outras potências ocidentais). 
 
O realizador recorre ainda aos arquivos do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), como contraponto à narrativa portuguesa oficial, mas, também, como “narrador alternativo” aos seus próprios relatos, consciente da sua posição de privilégio que expressa a várias ocasiões quando, por exemplo, sobrepõe o som da metralhadora às imagens que captou da Guiné-Bissau, inclusive das suas paisagens e das práticas culturais dos Bijagós, ou seja, refere-se ao acto de filmar, criticando novamente a missão dos Serviços Cartográficos do Exército – extrair e representar etnicamente o “outro” e consolidar a imagem que o Estado quer transmitir de si e daqueles que domina para se legitimar. 
 
O uso dos arquivos do PAIGC[1]  que documentam as lutas de liberação e os discursos de Amílcar Cabral são interessantes por nos proporcionarem outras “narrativas” de um mesmo evento, mas, também, por nos revelarem como o cinema tem sido instrumentalizado, ora para a propaganda, ora para a militância e, em última instância, como meio pelo qual todos estes usos são contemplados e pensados para possibilitar a reflexão e a crítica, que se crê ser o objectivo último de Acto dos Feitos da Guiné
 
Por fim, são mostradas imagens do fim da guerra, figurado no lixo da indústria militar que restou, abandonado, na Guiné-Bissau livre, de par com as imagens de Lisboa no período que seguiu ao 25 de Abril de 1974, deduzindo-se o movimento convergente e interdependente das lutas pela liberdade, das quais somos ainda todos devedores e herdeiros da sua missão inacabada.


[1] Algumas das imagens da PAIGC usadas por Fernando Matos Silva voltarão a estar presentes no próximo filme deste ciclo: Nome (2023) de Sana Na N’Hada, realizador responsável por várias captações de imagens para o PAIGC quando jovem. Nome (2023) será exibido dia 10 de outubro de 2024.


Bibliografia consultada

Bernardo, L. & Laranjeiro, C. (2018). “Acto dos Feitos da Guiné: o início e o fim da história”. In Piçarra, M. do C. (ed.). A Coleção Colonial da Cinemateca. Cine Clube de Viseu, 88-103. 
Branco, S. D (2016). “O Cinema como Ética”. In Atas do V Encontro Anual da AIM, 135-143. Lisboa: AIM. ISBN 978-989-98215-4-5. 
Caetano, M. (junho de 1946). “Congresso do V Centenário do Descobrimento da Guiné portuguesa. Oração Inaugural de S. Ex.ª Ministro das Colónias”. In Boletim Geral das Colónias. Junho de 1946, Vol. XXII, Nº 252. pp. 3-10 
Ferro, A. (1949). Estados Unidos da Saudade. Edições SNI. 
Piçarra, M. do C. (2015). Azuis Ultramarinos. Propaganda Colonial e Censura no Cinema do Estado Novo. Edições 70. 

Filmografia

Lopes Ribeiro, A. (1946). Guiné, Berço do Império 1446-1946, acessível para visualização em: 



sábado, 5 de outubro de 2024

361ª sessão: dia 8 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Guiné-Bissau em foco esta semana no cineclube 

Durante o mês de Outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe catorze filmes em parceria com os Encontros da Imagem, com sessões às terças e quintas-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. O ciclo adopta um termo cunhado pelo poeta e ensaísta Édouard Glissant, intitulando-se “Cinema Todo-Mundo - colonialismo e a memória do futuro”. 

O próximo filme do ciclo, marcado para terça-feira à noite, será Acto dos Feitos da Guiné de Fernando Matos Silva. Com música de Fausto, argumento de Matos Silva e Margarida Gouveia Fernandes e fotografia de José Luís Carvalhosa, o filme vai ser mostrado em cópia digitalizada e restaurada pela Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema. 

Em Acto dos Feitos da Guiné, os discursos hegemónicos e apologéticos sobre a História da Nação portuguesa são confrontados com as imagens captadas da “Guiné Portuguesa”, entre 1969 e 1970, a par com os registos de Lisboa após a Revolução dos Cravos. Desocultando eventos históricos vários, deparamo-nos com a brutalidade da ocupação portuguesa em África e a violência da guerra colonial. 

"O filme de Fernando Matos Silva guarda marcas autobiográficas," escreveu Maria João Madeira na sua folha da Cinemateca sobre este filme, "onde se conjugam as imagens documentais e a ficção, distintas, neste caso, pela cor das sequências de ficção que encenam um “Acto” onde os “feitos” são contados por personagens que representam voltadas para a câmara, saídas de portas temporariamente abertas, em contraste com o preto-e-branco das imagens filmadas no território da Guiné-Bissau no fim da década de 1960. O realizador parte da sua experiência pessoal, cruza-a com uma personagem de ficção, a “história”, para traçar uma história da passagem portuguesa pelo território africano: a da descoberta portuguesa da Guiné, a do reconhecimento da soberania portuguesa pelo Presidente dos Estados Unidos em 1870, a da exaltação do “fascista”, a da guerra colonial contada pelo “comando” e pelo “guerrilheiro”. Mas mais do que a encenação do “Acto”, são as imagens de guerra, cruas e extremas de ambos os lados, o mais impressionante. E além do horror explícito delas, a guerra, os estropiamentos, a morte, sobretudo impressionante é o profundo cansaço dos rostos dos soldados."

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, durante este ciclo às terças e quintas às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Sambizanga (1972) de Sarah Maldoror



por Estela Cosme 

Sarah Maldoror é uma realizadora com uma história pessoal que marcou afincadamente a sua filmografia. Nascida em Gers, na França, como Sarah Ducados, adotou mais tarde um nome artístico com base nos Cantos de Maldoror do conde de Lautréamont. O seu pai era um homem negro de Guadeloupe, nas Antilhas Francesas, onde alguns dos seus filmes foram rodados, nomeadamente Un homme une Terre e Regards de mémoire, filmes exibidos na sessão da passada terça-feira do Lucky Star. Neles o tema do anticolonialismo está bem presente, e é através da voz do poeta Aimé Césaire que Maldoror demonstra a identidade negra em conflito com o domínio francês. Para além das suas raízes caribenhas, Maldoror foi casada com Mário Pinto de Andrade, escritor e sociólogo angolano e um dos membros fundadores do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). 

Foi juntamente com Andrade e com Maurice Pons que Maldoror adaptou a obra do escritor angolano José Luandino Vieira A Vida Verdadeira de Domingos Xavier para o guião do seu filme Sambizanga, considerado a sua obra-prima. Foi a primeira longa-metragem produzida, quer em Angola quer na África Lusófona, e foi também a primeira longa-metragem africana realizada por uma mulher.1 A sua importância cultural é apenas igualada pela sua proeza cinematográfica, onde a luta contra o colonialismo está bem demarcada. Aliás, o filme foi rodado no Congo e não em Angola, onde certamente o regime colonial teria impedido a sua produção. O filme só seria exibido em Angola e em Portugal após o 25 de Abril de 1974. A sua produção contou ainda com a participação ativa do MPLA, como Maldoror explicou em 2008: "O MPLA pôs toda a estrutura à minha disposição. Explicámos aos militantes que este filme era importante, porque ia incidir sobre Angola. Expliquei-lhes o que era o cinema e o que queria do filme. Todos participaram sem hesitar." 

Sambizanga é o nome de um dos distritos do norte da cidade de Luanda, onde fica a prisão da PIDE na qual Domingos Xavier acaba por ficar preso. Um tratorista com interesses no movimento revolucionário angolano, Domingos é levado um dia por agentes da autoridade que o removem de forma violenta de sua casa num musseque. A assanha impiedosa não impede que a sua mulher Maria parta à sua procura, com o seu filho às costas, determinada a encontrar o seu marido, que acredita ser inocente. O caminho é longo e árduo mas Maria é destemida, e quando sabe que Domingos foi levado para Luanda, Maria parte para a capital, cheia de mágoa e de garra, e com a ajuda da comunidade consegue visitar várias prisões da cidade e questionar sobre o seu paradeiro. É bem recebida em todas menos em Sambizanga, onde Domingos é cruelmente humilhado e torturado quando se nega a dar informação sobre o movimento revolucionário aos seus captores. A tragédia é inevitável e a viagem de Maria acaba em desgosto, uma mulher inconsolável com a morte do marido. Ele, por seu lado, torna-se um herói na causa da libertação angolana. 

O cruel destino de Domingos é desumano e é captado de forma feroz por Maldoror, que certifica que o público não fica indiferente aos horrores do colonialismo português, levado a cabo não só pela brutalidade branca de figuras como o português Pereira, mas também pelos homens negros que servem o regime colonial. No entanto, Maldoror também enfatiza a solidariedade que surge entre os revolucionários quando se sabe que Domingos é preso mas não se conhece a sua identidade, levando vários dos seus camaradas a grandes esforços para encontrá-lo. 

Embora seja Domingos quem sofra mais diretamente pelo regime colonial, é Maria que é o rosto do filme e, como consequência, o rosto da libertação angolana. Maria é uma mulher arrasada pelas ações das autoridades e que mesmo assim junta a coragem para sair do seu porto seguro para bater nas portas dos estabelecimentos mais temidos pela sociedade. Mesmo quando os seus gritos são mais fortes do que o choro do filho que leva às costas, Maria não se cansa de procurar o seu marido e de protestar a barbárie a que é sujeito. Maria é uma manifestação andante de uma sociedade cativa que começa a revolucionar-se contra o seu colonizador. Maldoror refletiu sobre a questão na mesma entrevista: "O filme mostra que as mulheres também participaram da luta. Mulheres com filhos nos braços, que lhes tinham que explicar porque é que o pai partiu, quais os riscos e a própria realidade."[2] Em retrospectiva, Maria simboliza a força e determinação que levou à independência das colónias e à reformulação de Angola como país livre. 

O caminho de Maria é árduo e ingrato dado o seu final, mas não por isso menos poético ou valente. É um caminho motivado pelo amor, justo e nobre, tal como ilustrado no poema de Agostinho Neto, que é cantado enquanto assistimos ao percurso de Maria:

Caminho do mato 
caminho da gente 
gente cansada 
ó ó ó-oh 

Caminho do mato 
caminho do soba 
soba grande 
ó ó ó-oh 

Caminho do mato 
caminho de Lemba 
Lemba formosa 
ó ó ó-oh 

Caminho do mato 
caminho do amor 
amor do soba 
ó ó ó- oh 

Caminho do mato 
caminho do amor 
do amor de Lemba 
ó ó ó-oh 

Caminho do mato 
caminho das flores 
flores do amor."[3]

[3] "Caminho do Mato" de Agostinho Neto: https://agostinhoneto.org/poesias/caminho-do-mato-2/



quarta-feira, 2 de outubro de 2024

360ª sessão: dia 3 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Longa-metragem de Sarah Maldoror para ver na BLCS

Durante o mês de Outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe catorze filmes em parceria com os Encontros da Imagem, com sessões às terças e quintas-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. O ciclo adopta um termo cunhado pelo poeta e ensaísta Édouard Glissant, intitulando-se “Cinema Todo-Mundo — colonialismo e a memória do futuro”. 

Sambizanga, de Sarah Maldoror, baseado no romance do autor angolano José Luandino Vieira, A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, será exibido na quinta-feira dia 3 de Outubro, em cópia restaurada e gentilmente cedida pela Cineteca di Bologna.

Sarah Maldoror nasceu em Gers, na França, em 1929. Apesar de nascer com o apelido de "Ducados", escolheu o nome de "Maldoror" como nome artístico, a partir dos Cantos de Maldoror do conde de Lautréamont.

Foi co-fundadora da companhia de teatro Les Griots, em Paris, onde encenou peças de Jean-Paul Sartre e Aimé Césaire. Estudou no Studio Gorki nos anos sessenta sob a orientação de Mark Donskoi, onde conheceu Ousmane Sembène, realizando a sua primeira curta-metragem, Monangambê, em 1969, baseada como Sambizanga numa obra do escritor José Luandino Vieira.

Sambizanga é a sua primeira longa-metragem de ficção. Nela acompanhamos uma mulher, com o seu bebé às costas, na sua longa caminhada dos musseques até aos arredores da cidade de Luanda, em busca do seu marido desaparecido. As paisagens tipicamente africanas, cheias de cor e sons luminosos, que Maria atravessa são contrapostas com a violência infligida pela PIDE sobre aqueles que lutam pela liberdade.
 
"O MPLA pôs toda a estrutura à minha disposição," disse Maldoror sobre o seu filme em entrevista a Pedro Cardoso para o Novo Jornal de Angola em 2008. "Explicámos aos militantes que este filme era importante, porque ia incidir sobre Angola. Expliquei-lhes o que era o cinema e o que queria do filme. Todos participaram sem hesitar."

"O filme mostra que as mulheres também participaram da luta," disse a cineasta na mesma entrevista. "Mulheres com filhos nos braços, que lhes tinham que explicar porque é que o pai partiu, quais os riscos e a própria realidade."

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, durante este ciclo às terças e quintas às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Quinta!