quinta-feira, 27 de novembro de 2025

NO OTHER LAND (2024) de Basel Adra, Rachel Szor, Yuval Abraham e Hamdan Ballal



Por Laura Mendes
 
O último filme que compõe o ciclo “Palestina Livre: O Cinema como Resistência” traz-nos um dos mais recentes registos da invasão, ocupação e anulação de um sem-número de vidas palestinianas. Estreado em 2024, realizado por um conjunto de ativistas pró-Palestina – entre eles, dois israelitas, Yuval Abraham e Rachel Szor –, No Other Land reclama o direito à imagem e à sua divulgação, no seio de um conflito armado.
 
De caráter brutalmente documental, inunda-nos, desde logo, de sinais de perigo: Basel Adra chega-nos com luzes e mensagens em pano de fundo, a tensão do acontecimento porvir está sempre presente e o jornalismo é, aqui, inseparável do ativismo, já que a tentativa de ocultação e humilhação impele a uma cada vez maior luta do jornalista pela verdade. Porque este é um jornalismo de mão, e o telemóvel, mediador por excelência, deixa de ser um objeto banal, onde o consumo de notícias é privilegiado, e passa a ter um papel fulcral na produção e documentação do real.
 
A problemática central de No Other Land é o registo imagético, a forma como a imagem não trabalhada, o retrato visceral, são ocultados, fortemente censurados, e como o combate dos filhos do ativismo contra a falsa autoridade faz uso da câmara para a denúncia e divulgação de práticas desumanas. Sendo este um conflito que atravessa anos e décadas, temos acesso a alguns dos registos feitos pelos pais de Basel – também eles ativistas –realçando o caráter geracional da luta travada através da tecnologia, da consciencialização, da atitude pública.
 
Uma luta de comunidade, que une pessoas – e vemos a centralidade do ato da manifestação conjunta – cuja dinâmica de entreajuda consegue (na maioria das vezes) ultrapassar as dissidências culturais e políticas: a certa altura, Yuval, israelita e co-realizador do filme, é confrontado com os atos cometidos por parte do seu país, sendo a conversa rapidamente interrompida pela necessidade de trabalhar na reconstrução de algumas casas – um momento que nos revela como o espaço para o diálogo, para o debate e formulação de problemas e soluções é posto em causa, e muitas vezes travado, por necessidades básicas, tal como o é um lugar onde viver.
 
A união dentro desta população é incontornável, fruto da brutalidade injusta que sofrem juntos, vendo nós na violência filmada, mais do que a homenagem ao próximo, ao amigo resistente, a insurreição contra o apagamento destes atos destrutivos. Tratando-se de um combate corpo a corpo, a câmara adquire uma materialidade confrontacional – como arma, denuncia e questiona práticas abusivas mas, à semelhança do que acontece com quem a segura, é também vítima da força impiedosa – palavra contra palavra, imagem contra imagem, o panorama abre-se e torna-se esta uma história de poder.
 
Assistimos ao desabar de Masafer Yatta sob a proteção de leis enviesadas, em nome da substituição fria e cruel da vida pelo armamento – em causa, o conjunto de declarações que afirmam que esta é uma terra israelita, exclusiva para treino militar, tendo como consequência a expropriação e expulsão de palestinianos aí residentes. Escolas e habitações destruídas, poços tapados, vários mortos e feridos às mãos do governo israelita personificado nos militares e, principalmente, em Ilan, essa figura cínica e impenetrável, conhecida da população que tantas vezes tentou o apelo à paz, à humanidade.
 
A contínua missão pela visibilidade mediática é dolorosa, incoerente e, por vezes, paralisadora, mas exige de quem é por ela responsável uma ação paciente e reivindicadora. Apesar de tudo, é o desespero que tende a vencer – observamo-lo na mãe de Harun Abu Aram (alvejado e deixado incapacitado pelos colonos, tendo posteriormente falecido), ao ver jornalistas entrar e sair da gruta feita sua casa, ambicionando partilhar a história do seu filho, no entanto sem que nada mude. Quando a família assiste ao que diz a televisão sobre a sua própria situação, temos o expoente da impotência, uma meta-reflexão que, dirigindo-se a nós, perpassa questões tal como a imunidade mediática, a insensibilidade a que somos sujeitos face às assoberbantes notícias que consumimos todos os dias, e de que maneira esta nossa condição paradoxalmente ausente e passiva tem repercussões irremediáveis para as pessoas que vivem em estado permanente de perigo e angústia.
 
A dimensão política externa aqui representada assenta na fé na comunidade internacional, na esperança de que os retratos íntimos do que se passa na Palestina cheguem até nós, estimulem uma reação naqueles que podem lutar por quem mais precisa. Revela-se, inclusive, a influência exercida por nomes poderosos e estruturais, com a menção à visita de Tony Blair, ex-primeiro ministro britânico (note-se o papel deste país no conflito), cuja presença impediu a demolição de uma escola, anos depois destruída – asseverando a simultânea fragilidade destas ações políticas às quais, na verdade, apenas subjazem interesses e manobras camuflados por valores humanos e democráticos.
 
Ainda que uma obra aclamada – galardoada com vários prémios internacionais de cinema, inclusive o Óscar de Melhor Documentário –, não se revelou um escudo contra as forças hostis; pelo contrário, não só foi Basel Adra alvo de várias rusgas a sua casa –atos repetidamente perpetrados durante os quatro anos de gravação do documentário, e após o lançamento do mesmo –, como também um dos elementos da equipa do filme, Awdah Hathaleen, foi morto, provando a perpetuidade deste ciclo de violência, desrespeito e perseguição, ao mesmo tempo que uma massiva incapacidade de travá-lo. No Other Land mostra-nos, acima de tudo, de que modo o cinema deixa de ser o espaço que nos envolve, e fabulando territórios nos quais acreditamos, transformando-se, ao invés, no intermediário do real – atentando-nos para ele – que, de tão afastado e manipulado, passa por imaginário. 
 
 
 

domingo, 23 de novembro de 2025

424ª sessão: dia 25 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


Esta terça, “No Other Land” no Lucky Star – Cineclube de Braga

Durante o mês de novembro, o Lucky Star – Cineclube de Braga apresenta o ciclo “Palestina Livre: O Cinema como Resistência”, dedicado a quatro obras fundamentais do cinema palestiniano contemporâneo. De diferentes épocas e gerações, estes filmes partilham uma mesma urgência: a de pensar o território, a memória e a sobrevivência cultural de um povo que resiste através da imagem. Como é habitual, as sessões ocorrem às terças-feiras na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30.

Na próxima terça-feira, 25 de novembro, o ciclo encerra com No Other Land (2024), realizado por Basel Adra, Hamdan Ballal, Yuval Abraham e Rachel Szor, um dos documentários mais marcantes e urgentes surgidos do contexto palestiniano nos últimos anos.
 
Filmado ao longo de vários anos na área de Masafer Yatta, na Cisjordânia ocupada, o filme acompanha, a partir de dentro, a luta das comunidades palestinianas ameaçadas de expulsão pelo exército israelita. O olhar que o filme propõe não é o de observadores externos, mas o de quem vive diariamente a violência estrutural, a demolição de casas e a erosão sistemática das possibilidades de futuro.

Construído a quatro mãos, por realizadores palestinianos e israelitas que trabalham lado a lado, No Other Land torna-se também um gesto político sobre a própria possibilidade da cooperação no meio do apartheid e da violência física e simbólica que o sustenta. A câmara funciona como testemunha, mas também como ferramenta de resistência que regista, denuncia e devolve visibilidade às vidas que o poder ocupante e colonial tenta destruir.

Após a sua estreia mundial no Festival Internacional de Cinema de Berlim (Berlinale) em 2024, onde ganhou tanto o Prémio de Melhor Documentário da Berlinale como o Prémio do Público Panorama, o filme foi galardoado com o Óscar de Melhor Documentário de Longa-Metragem na 97.ª edição, a primeira vez que um filme palestiniano recebeu tal honra. Recebeu ainda o Prémio de Melhor Documentário de Longa-Metragem nos IDA Awards e o prémio de Melhor Documentário Individual – Internacional nos Grierson British Documentary Awards, para além de vários prémios do público noutros festivais como o CPH:DOX, Visions du Réel e o IndieLisboa.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até terça-feira!


quinta-feira, 20 de novembro de 2025

FORAGERS (2022) de Jumana Manna



por António Cruz Mendes

Jumana Manna nasceu nos EUA, mas cresceu em Jerusalém e estudou em Oslo. É uma artista plástica que se exprime através da escultura, da instalação e também do cinema. Forrageadores é um filme híbrido porque associa ficção e documentário. Em 2022, ganhou um Prémio Harrell de Melhor Documentário (Menção Especial) no Festival Internacional de Cinema de Camden em 2022 e venceu o prémio principal no Festival Olhares do Mediterrâneo em 2023.

A subjugação do povo palestiniano que vive em Israel tem aspectos políticos, económicos e culturais. Em Forrageadores, podemos perceber como essas diferentes dimensões se entrecruzam. As disputas em torno da recolecção e venda de plantas usadas na culinária palestiniana tradicional bastam para possamos compreendê-lo.

Ser capaz de nos oferecer uma visão ampla de uma situação complexa através de um pequeno exemplo, é uma das qualidades deste filme de Jumana Manna. Sem recorrer a diálogos ou quaisquer depoimentos, em poucos minutos, as primeiras sequências do filme põem-nos a par da situação. Na primeira cena, um plano geral visto a vol d’oiseau, vislumbrarmos um pequeno vulto andando de arbusto em arbusto. Depois, o grande plano de um homem de meia-idade, o rosto sulcado pelo tempo, a fumar sozinho dentro de um carro. Na terceira, outro carro estaciona e dois polícias saem dele para uma “última ronda”. Vigiam com os seus binóculos as colinas onde circulava a primeira personagem. Por fim, aquele que fumava dentro do carro, aproxima-se do carro da polícia e, calma e metodicamente, esfaqueia-lhe cada um dos pneus.

Na origem deste conflito que, sem sobressaltos, vemos desenrolar-se nos primeiros minutos do filme, está o za’atar e o akkoub, plantas usadas na cozinha palestiniana. Todos sabemos que a culinária tradicional de um país é uma parte relevante da sua identidade cultural. Noutras sequências de Forregeadores, vemos pessoas podando os arbustos que dão o za'atar. Estamos na Primavera. São imagens de grande beleza, serenidade e comunhão com a natureza. É uma prática quase ritual, tal como é a da preparação das comidas refeições e da refeição em família.

Porém, a recolecção do za’aar e do akkoub é proibida, aparentemente por se tratarem de espécies em perigo de extinção. Entretanto, a sua produção é permitida nas plantações de proprietários israelitas. De facto, ela é pouco consumida entre a população judaica, mas, os palestinianos residentes em Israel são um mercado importante. Além disso, todos os anos, a Cisjordânia é visitada por muitos milhares de palestinianos emigrados e a sua exportação é um negócio altamente lucrativo. Então, porque é que os palestinianos não fazem o mesmo, em vez de apanharem o za’atar selvagem? Porque não têm terra. Os terrenos onde cresce o za’atar e, que outrora pertenciam às suas aldeias, foram expropriados pelo Estado israelita. Além disso, não têm dinheiro para pagar os seguros que protegem os proprietários privados nos anos de colheitas más. Será que a lei israelita de “protecção da natureza” não visa outra coisa senão a de proteger esse comércio tão lucrativo de uma concorrência indesejável?

No filme, assistimos ao interrogatório policial de homens e mulheres palestinianos apanhados a apanhar ilegalmente za’atar. São filmados por uma câmara fixa em posição frontal. O polícia que os interroga fica fora de campo. É a nós, espectadores, que eles encaram. É, portanto, também a nós que nos cabe julgá-los. Como se defendem? Alegam que apenas fazem o que sempre fizeram os seus antepassados. Um deles recusa tratar-se de uma planta em perigo de extinção porque “ninguém a arranca pela raiz e todos os anos ela volta a crescer”. Muitos negam que o façam para comercializar, mas apenas para poderem alimentar a sua família. Um deles afirma que desobedece à lei porque “esta terra não é sua” e essa “é uma lei de merda”. Já foi condenado várias vezes, provavelmente sê-lo-á outras mais. “Que se dane!” A sua atitude é de resistência passiva, de “desobediência civil” perante uma lei injusta. Segue, provavelmente sem o saber, os ensinamentos de Thoreau, que também inspiraram figuras como Gandhi e Martin Luther King.

As sequências finais mostram-nos um casal de emigrantes que revisitam os sítios onde moraram. São imagens de serenidade e beleza, mas tingidas de nostalgia. Será que, um dia, poderão regressar? 

 

 

Folha de Sala 

 

domingo, 16 de novembro de 2025

423ª sessão: dia 18 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


 
Esta terça, “Foragers” de Jumana Manna no Lucky Star – Cineclube de Braga

Durante o mês de novembro, o Lucky Star – Cineclube de Braga apresenta o ciclo “Palestina Livre: O Cinema como Resistência”, dedicado a quatro obras fundamentais do cinema palestiniano contemporâneo. De diferentes épocas e gerações, estes filmes partilham uma mesma urgência: a de pensar o território, a memória e a sobrevivência cultural de um povo que resiste através da imagem. Como é habitual, as sessões ocorrem às terças-feiras na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30.

Hoje, 18 de novembro, é exibido Foragers (2022), o mais recente filme da artista e cineasta palestiniana Jumana Manna, reconhecida internacionalmente pelo seu trabalho que mescla ecologia política, identidade e memória. Depois do premiado Wild Relatives (2018), Jumana Manna volta a cruzar o documentário, a encenação e o ensaio visual, para explorar como as biopolíticas de pendor colonial afectam a vida quotidiana.

Foragers acompanha a colheita de plantas comestíveis, como o ʿakkoub e o za’atar, entre comunidades palestinianas da Galileia e das Colinas de Golã. Embora fundamentais para a culinária local, estas plantas tornaram-se alvo de leis israelitas de “protecção ambiental” que criminalizam a sua recolha. O filme revela como a administração colonial usa o discurso ecológico para regular corpos, hábitos e tradições, convertendo uma prática ancestral numa transgressão. Assim, a regulamentação de uma “ecologia” oficial confronta-se com uma ecologia vivida, enraizada na relação histórica e afectiva com a terra.

A realizadora usa o registo documental e reconstituições judiciais para expor a lógica burocrática que persegue quem insiste em colher “ilegalmente” o que sempre fez parte da sua dieta e da sua cultura. Os interrogatórios, as multas, as ameaças e os processos em tribunal revelam a banalidade com que o quotidiano palestiniano é administrado, vigiado e restringido. O que à primeira vista parece uma disputa botânica e ecológica é, afinal, um conflito sobre pertença e soberania: quem tem o direito de viver da terra? Quem define o que deve ser preservado e quem deve ser punido?

Estreado no Visions du Réel, na Suíça, e exibido em festivais como o Sheffield DocFest, o Open City Documentary Festival, o Tromsø International Film Festival e o RIDM – Rencontres Internationales du Documentaire de Montréal, Foragers consolidou-se como uma das obras mais relevantes do cinema palestiniano contemporâneo, pela forma como articula política, humor e uma atenção minuciosa ao corpo e ao gesto.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até terça!


quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Intervenção Divina (2002) de Elia Suleiman



por Alexandra Barros
 
Nalguns países, Intervenção Divina tem associado o subtítulo Uma Crónica de Amor e Dor. É entre estes dois pólos que E.S., a personagem principal, vive o seu dia-a-dia. E.S., interpretado pelo próprio realizador, Elia Suleiman, é um árabe que habita nos territórios de Jerusalém sob ocupação israelita. O pai vive em Nazaré[1] e é hospitalizado após sofrer um ataque cardíaco decorrente das dificuldades económicas e transtornos emocionais provocados pela ocupação. Do outro lado da fronteira, em Ramallah[2] , vive a namorada de E.S.. Impossibilitada de atravessar a fronteira, que está aberta só para quem vive no “lado certo”, é E.S. quem a atravessa. Estaciona junto do checkpoint e é aí que os dois se encontram. Entre as visitas ao pai hospitalizado e os encontros com a namorada, entrecruzam-se em Intervenção Divina pequenas histórias de palestinianos cujo quotidiano é marcado pelos efeitos da invasão política e militar.
 
O tom geral de Intervenção Divina é de humor negro. Frequentemente comparado a Jacques Tati ou Buster Keaton, Suleiman mantém-se (quase) impassível em (quase) todas as circunstâncias. De olhar melancólico e intenso, não diz uma única palavra durante todo o filme. É um filme essencialmente visual, com poucos diálogos, mas com temas musicais criteriosamente escolhidos, de forma a criar ou acentuar o carácter poético ou simbólico das cenas. O tema I put a spell on you, de Screamin’ Jay Hawkins, na versão de Natacha Atlas, é particularmente expressivo numa cena memorável em que um semáforo desencadeia uma tensa medição de forças.
 
Além da música, outro elemento marcante de Intervenção Divina é a coreografia. Os encontros entre E.S. e a namorada, por exemplo, com os seus pas de deux executados pelas respectivas mãos, configuram belíssimas cenas de expressão muda de desejo amoroso. A forte carga simbólica ou poética de algumas cenas torna-as igualmente memoráveis: um Pai Natal aterrorizado por um bando de rapazes que o perseguem por uma encosta de Nazaré acima; um balão subversivo, com a cara sorridente de Yasser Arafat estampada, a atravessar, pelo ar, fronteiras fechadas em terra; um confronto surreal, com balas paradas à la Matrix, entre uma ninja palestiniana e um grupo armado israelita; uma torre de vigilância que se desmorona à passagem de uma palestiniana que paralisa os soldados do checkpoint com o seu olhar desafiante e as suas desenvoltas e garbosas passadas, como se caminhasse na passerelle de um desfile de moda.
 
A violência latente e o absurdo estão no âmago desta(s) história(s) de um povo sob ocupação. Há quem espere todos os dias por um autocarro que nunca vem; há insultos murmurados por baixo de acenos sorridentes e aparentemente amistosos; há caroços de fruta, atirados como granadas, que rebentam tanques militares; há um ciclo interminável de lixo lançado para o quintal do vizinho e devolvido para o primeiro: “- Vizinho, porque é que atira o lixo para o meu quintal? Não tem vergonha? / - O lixo que atiro para o seu quintal é o mesmo que atirou para o meu jardim.”
 
O filme foi muito bem recebido em todo o mundo. Foi nomeado para a Palma de Ouro de Cannes e ganhou o Prémio do Júri e o Prémio FIPRESCI desse festival. Tentou candidatar-se aos Óscares, mas a Academia rejeitou a candidatura com um argumento que parece escrito para o próprio filme: os filmes têm que ser nomeados pelo país de origem e a Palestina não era então considerada oficialmente um país. Entretanto, em Setembro passado, a Palestina foi reconhecida como um Estado soberano por mais de 150 dos 193 países-membros da ONU. Um gesto simbólico já que, nos anos que decorreram desde que o filme foi feito, o conflito israelo-palestiniano se foi agravando e complexificando, evoluindo a partir de 7 de Outubro de 2023 de confrontos mais localizados para uma guerra de larga escala, com bombardeamentos, morte de civis e destruição urbana massivos. Termos como “genocídio”, “limpeza étnica”, “colonatos”, “conquista de território”, “massacre”, “crimes contra a Humanidade” passaram a ocupar lugar central no discurso global. As partes directamente envolvidas no conflito estiveram ausentes do recente “tratado de paz”, bizarramente assinado por mediadores sem legitimidade política real nos territórios afetados.
 
Elia Suleiman declarou, numa entrevista à publicação Notebook da plataforma Mubi, que apesar de adorar activismo, não é um activista. No entanto, os seus filmes configuram inegavelmente uma forma de resistência. De acordo com o próprio, por um lado, o humor realça os absurdos, provoca a reflexão, estimula um envolvimento profundo dos espectadores com as questões sociais e políticas que atravessam os seus filmes. E por outro, e talvez ainda mais importante, o riso combate o desespero. As assimetrias de poder, a violência, o ódio e a desumanidade mostrados neste filme atingiram dimensões brutais nos últimos anos. A paz efectiva parece cada vez mais improvável. Para terminar esta tragédia infindável só parece haver uma solução: intervenção divina. 
 

[1] Cidade israelita, com um grande número de habitantes árabes.

[2] Cidade palestiniana