por José Oliveira
"A carreira de John Ford - de 1914 a 1970 - abrangeu quase a totalidade da história da indústria cinematográfica e, na maior parte desse período, foi reconhecido como o maior cineasta da América. Os seus filmes contavam boas histórias, tinham personagens intensas, provocavam o pensamento, despertavam encantos familiares; e a própria personalidade de Ford reflectia-se neles. A eloquência da sua composição tornava os diálogos praticamente desnecessários - quase nunca por falta de riqueza dos guiões, mas porque a estrutura literária era apenas um só aspecto da intrincada beleza e inteligência formal do seu cinema."
E assim começa Tag Gallagher o seu monumental livro dedicado a John Ford. De uma só vez Tag traz à liça o essencial do cinema americano e também o seu vasto paradoxo. As grandes composições harmónicas entre os homens e o seu meio envolvente conseguidas pelos maiores cineastas de Hollywood podem ser lidas sem o mais brilhante texto alguma vez escrito para cinema. E todas essas infindáveis palavras às vezes metralhadas outras vezes apaziguadas só nos falam de um mundo a procurar ou só vingam o inadmissível. John Ford, a bíblia do cinema americano que convocou todos os temas possíveis, começando pelo bem ou pelo mal e acabando neles, faz parte do grupo de Chaplin ou de David W. Griffith. Fibra moral que antes dos problemas da arte aproveitou ao máximo essa revolucionária técnica moderna que ao nos captar e nos revelar com exactidão tudo complexificou, para o entendimento de todos. “Um filme de Chaplin era compreendido em todo o mundo, em qualquer idade”, disse um dia Vítor Erice, um dos últimos dessa nobre família, e é precisamente essa a dimensão que se arrisca perder pelos meandros da saturação contemporânea.
John Martin Feeney chegou de comboio à Meca do cinema na sua aurora para encontrar o seu irmão Francis Ford, trabalhou como ajudante e actor em alguns filmes - The Birth of a Nation é o mais icónico – e a pulso se tornou John Ford, realizador. Sobreviveu a todas as crises e desafios da profissão que escolheu, das obras-primas do mudo como The Iron Horse ou Hangman's House até à pungente entrada no sonoro com os lancinantes Arrowsmith ou Pilgrimage; quando chegou a cor fez maravilhas em Drums Along the Mohawk e revolucionou-a no maravilhoso She Wore a Yellow Ribbon; para não falar dos formatos mais largos que redefiniu nos momentos finais e testamentais, em Civil War estão dos 20 minutos mais estonteantes de toda a arte do século XX. Ou ainda, jogada inteiramente na mesa, a televisão que ele não desprezou e para a qual deu tudo, onde pequenas pérolas por descobrir continuam disponíveis – a próxima pode ser "Wagon Train" The Colter Craven Story. Só que tentar resumir assim é tarefa votada ao fracasso, pois como Shakespeare, da Vinci ou Mozart o seu legado é um cosmos infindável onde qualquer coisa se pode buscar ao calhas que sempre se encontrará. Entremos então no assunto que nos traz por cá hoje pois não será tarefa fácil.
Stagecoach - título mais directo e mais em consonância com o intimismo e concentração em causa do que o espampanante Cavalgada Heróica português - voltou a dar um fôlego decisivo ao género Western, tornou John Wayne naquilo que seria daí para a frente, inscreveu a paisagem do Monument Valley na mitologia universal, enfim, consolidou alguma da família Fordiana que jamais se largaria – de Wayne a Thomas Mitchell, dos mais secundários Andy Devine a John Carradine. A sua sinopse - Um grupo de pessoas em viagem numa caravana vê a sua jornada complicada pela ameaça de Gerônimo aprendendo coisas acerca uns dos outros nesse processo – tanto converge a temática da comunidade sempre presente em Ford como se torna redutora.
Se a viagem é de facto o tempo do filme, os conflitos internos que irrompem quando se juntam pessoas diversas num espaço comum é a fonte de toda a dramaturgia e imprevisibilidade. Aparentemente nas sendas de uma Odisseia as coisas vão-se estilhaçando nos interstícios perante os confrontos e os partos sem aviso no grupo, muito para além da questão dos Índios e da guerra civil que nessa época teve obrigatoriamente de entrar. A bordo da caravana vão um médico que não consegue deixar de beber mas que no instante crucial se recompõe altivamente, uma prostituta escorraçada da terra como a pior das pestes, o jogador cavalheiro e ambíguo a negro trajado, um vendedor de vícios que pode não ser nada disso, o banqueiro ganancioso que só não manda na esposa, o cocheiro que não sabe ter a língua guardada e o xerife imperturbável. Um pouco depois do tiro de acção entrará John Wayne em campo, num daqueles movimentos de câmara que fazem as coisas andarem para a frente e justificam a máxima de Jean-Marie Straub - “Stagecoach é o filme mais experimental de todos os tempos”. A todos eles está reservada a sua história de amor e a sua história de ódio.
Em volta do turbilhão de personalidades e do fogo próprio e indominável de cada um, a paisagem incandescente e simples, elementar e inteira, tão física como sagrada. O bêbado pode não ser correspondido pelo barman, a prostituta ser maltratada por quase todos, o banqueiro ameaçar o jogador; resumindo o irresumível, estas são as misérias reservadas aos nossos embates costumeiros, mas a natureza, essa continuará impassível e indiferente, quem sabe a observar dos altos e dos dentros. O médico de Mitchell é então como o bobo lúcido e que tudo sabe no seu aparente descontrole, e tal como a Mãe portentosa que na primeira paragem tudo mete na ordem, essa bela ordem constantemente procurada por Ford, se vai rindo do acessório e pondo sério no fundamental. Fundamental que é a nascença da criança no centro da guerra; a transformação da puta em figura materna prometida ao mais alto dos homens – numa imagética que atinge no olhar trocado com Wayne logo após o novo ser vir à luz ou nas clamantes composições de conjunto finais o absoluto Sagrado; a lenta aproximação da dita mulher à mulher contrária e civilizada, acabando o conflito em bênção; o dilema de Wayne e finalmente a marcha nupcial.
Entre o momento musical que desperta o perigo sanguinário detendo a cobarde fuga e a justiça salomónica, superior - a recuperação e conservação dos paraísos em risco de se perderem, ordem arrancada a ferros - a grande e grave linha de Stagecoach traça-se quando o prisioneiro olha para aquela mulher da vida com olhos limpos e a conquista somente por isso. É o dilema que o mesmo Wayne viverá queimado devido ao chamamento da guerra e ao sussurro do lar em The Searchers, Rio Grande ou The Wings of Eagles. A partir daí esses dois seres dilaceram-se e entram em suplício pois ele não consegue deixar de pensar que “há coisas que um homem não pode deixar de fazer” na mesma medida que o vislumbre da união e da família não se desvanece. Família, finalmente o centro Fordiano em que tudo se decide, e por isso, depois dos ajustes de contas e do que não se pode conter na raça, o homem da lei deixa o par selvagem por sua conta e risco em direcção a todos os horizontes, amanhãs, crepúsculos e ciclos. O mais belo dos finais pois absolutamente revolucionário – o amor como redenção da humanidade inteira. Seja o vício, o pecado, Deus ou a felicidade sem nome.
“The main thing about directing is: photograph the people's eyes.”, palavra de Ford, que não deve ser subestimada e nem precisa de ser traduzida. Olhe-se somente para os olhos de cada qual, atentamente, para o bom ou para o mau, e perceber-se-á tudo. Com todo o som e a fúria inerentes. Simplesmente. No nosso Cineclube, jamais largaremos disto.