A premissa é simples: um pai e um filho. Dão uns passeios pelas suas memórias de Lisboa para não se lembrarem das radiografias e das fichas médicas que revelaram o pior (“Deixa lá isso”, diz o pai, depois, à mesa de jantar). E é assim que começa a curta de João Rodrigues, com um plano pormenor dessas mesmas fichas e radiografias afixadas numa parede e com os sons de fundo, tristes, de hospital - sons que toda a gente conhece e reconhece. Os ecos nos corredores de chamadas das enfermeiras e choros de crianças dão o peso e a gravidade necessárias às cenas que se seguem, que já vemos com outros olhos. Quando o mundo à sua volta (e não só o do cinema) enche, amplia e dilata, João Rodrigues expurga, abrevia e elide, tão discreta e humildemente como humilde e discreta é a sua interpretação no filme, siderado no encanto luminoso de José Lopes (que interpreta o seu pai), como nesse plano enorme em que João se senta à sombra e o pai é iluminado pelos poucos raios de sol que espreitam pelas árvores desse improvisado parque de merendas. Ou como na cena do jantar, em que o filho está de costas para a câmara e José Lopes a enfrenta. Alguém julga que isto é feito por acaso? Não, são dádivas e decisões conscientes.
Mas a gravidade e o peso deste filme, que é só pequeno na duração, parecem também já anunciados pela entoação de Olhos Negros (canção tradicional dos Açores) por José Lopes e também pelo próprio título, Adeus Lisboa, que é também nome duma bela canção de Amadeu do Vale e Alberto Ribeiro e que talvez nos dê algumas pistas sobre as lembranças da mãe de que falam João e José, no jardim, e a quem muito provavelmente já ambos tiveram que dizer “adeus”: “Adeus Lisboa, cheia de luz e de cor. Lisboa do meu amor, amor do meu coração.” Assim, pai e filho sozinhos se dão um ao outro nos últimos dias que lhes foram dados para estarem juntos, justificados em pleno pelos olhares de compreensão e os carinhos de parte a parte, desde os gomos da laranja e o remover das espinhas do peixe à suprema despedida do pai, que depois de cobrir o filho adormecido e preocupado, se faz à noite para, de madrugada, partir para o criador.
A despedida final e solitária de José Lopes, falando para a terra e para as coisas como se gente fossem, em tranquila oração, aproxima-se realmente de Ford e dos seus heróis que, a meio da noite e no pico da solidão, falam com as mulheres mortas como se vivas estivessem e tem par, hoje em dia, apenas nas conversas semelhantes que Sylvester Stallone e Clint Eastwood encenam e interpretam, nos seus filmes. E olhando para ele, no cimo da colina, a apontar para a sua casa e para as suas árvores, é difícil não pensar na Cantiga do Monte de José Afonso, e não o ver “da morte zombando na aurora lunar, num jardim suspenso do seu folgar.”
Por fim, só posso desejar o mesmo que deseja o José Oliveira, na sua folha da Cinemateca sobre o filme: “que mais actos assim despidos e fortes nos cheguem, de uma Escola ou de qualquer parte que saiba o que é o tudo e o que é o nada, o lado que se escolheu e de onde e como se vêem as coisas. Que o terceiro filme de João Rodrigues e os próximos de José Lopes não tardem. E que salas destas os exibam no mesmo ecrã e no mesmo dia de um Mizoguchi.”
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