quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Cleopatra (1934) de Cecil B. DeMille



por João Palhares

É mais ou menos a meio deste maravilhoso filme que Cleópatra fala das estrelas na noite e diz que “they must think we're very funny people, scheming to destroy each other as if we had forever to live.” Além de ser uma belíssima frase, é sussurrada num encontro discreto e confessional, aparentemente em tudo contrário à grandiloquência operática de Cecil B. DeMille. Só que - e pensando ainda na canção que antecede esta conversa, pela bela serva de Cleópatra, sob um luar encantatório -, dá-nos uma bela descrição do cinema do seu realizador: talvez mesmo qualquer coisa como olhar para as estrelas, no firmamento, essas testemunhas impassíveis e reflectoras da luz mítica (ora sedutora ora incandescente) das personagens da nossa História. 

Cecil B. DeMille, como Chaplin, começou no Cinema em 1914 com uma longa-metragem chamada The Squaw Man, que foi também o primeiro filme rodado em Hollywood, ainda à revelia e para fugir às sanções pesadas da Motion Pictures Patents Company de Edison, companhia sediada na Costa Este dos Estados Unidos por mútuo acordo de grandes produtores e que praticava o monopólio selvagem não só de materiais como da própria distribuição de filmes na América, com capangas assalariados que eram enviados à Costa Oeste para destruir câmaras e impedir realizadores e equipas independentes de fazerem os seus filmes. Allan Dwan, a este propósito, contou a Peter Bogdanovich que “um dia em La Mesa, um personagem com aspecto de durão saiu do comboio e foi-me procurar. Ele disse que tinha sido enviado para garantir que eu e a minha companhia saíamos de lá e desistíamos de fazer filmes. Bom, demos um passeio pela estrada acima para falar sobre o assunto. Eu não tinha saído da faculdade há muito tempo e estava em boa forma física. Por isso queria levá-lo longe o suficiente para fora da cidade e ver se não era capaz de lhe dar uma coça. Parámos numa ponte por cima dum barranco para onde as pessoas tinham atirado algumas latas. Havia uma brilhante lá pousada, por isso para me impressionar, ele sacou duma pistola do coldre do ombro e disparou para a lata e falhou-a por mais ou menos cinco metros. Eu tirei a minha pistola e acertei na lata duas vezes, e nessa tarde ele abandonou a cidade. E também foi acompanhado pelos meus cowboys bem armados para a estação ferroviária. Daí em diante nunca mais fomos incomodados. Mas essa era a razão por que íamos para lugares remotos. Afastávamo-nos o mais que pudéssemos de Nova Iorque.” 

DeMille era dos mais famosos e bem sucedidos realizadores do cinema mudo. São dele Os Dez Mandamentos de 1923 e o Rei dos Reis de 1927, mas também The Cheat, The Whispering Chorus e uma série de comédias com Gloria Swanson que ajudaram a moldar o género, juntamente com as de Lubitsch (de quem veremos um filme, para a semana): Don't Change Your Husband, Why Change Your Wife e The Affairs of Anatol, realizados entre 1919 e 1921. Entre 1928 e 1934, DeMille passou um mau bocado e muitos dos filmes que realizou durante esse período falharam nas bilheteiras (The Godless Girl, Madam Satan, The Squaw Man e Four Frightened People), o que não quer dizer que sejam melhores ou piores que os que não falharam. Mas só associado à Paramount (em Sign of the Cross e Cleopatra), casa de produção a quem deu grandes sucessos também no mudo, é que a coisa mudou e é mesmo a partir de Cleópatra que não volta a perder dinheiro nas bilheteiras e se transforma num símbolo de Hollywood, adorado por muitos e odiado por outros tantos. 

Sobre os mal-entendidos que sempre rondaram a figura de Cecil B. DeMille e a análise dos seus filmes, escreveu extraordinariamente bem (de resto, como sempre) João Bénard da Costa, e depois de nessa folha de sala da Cinemateca sobre Cleópatra apontar os limites da nossa visão da História e do que é real, arriscando mesmo perguntar se os romanos e os egípcios não se ririam do que nós imaginávamos deles e propor que achariam o filme de DeMille realista, prossegue numa série de perguntas e escreve se “acaso esse “real” em que pensamos não é puramente imaginário? Acaso podemos adivinhar a psicologia dos personagens que viveram nesses tempos? Quem quiser ou puder concluir pela negativa a toda esta série de perguntas, poderá admitir que tudo é imaginário e que nele todos os caminhos são válidos. O que bem compreendeu de resto outra tradição cultural em referência: por exemplo, a da pintura dos Séculos XV, XVI e XVII que não hesitava em vestir, com fatos dessas épocas, a Virgem, S. José, o Menino de Jesus, ou as figuras mitológicas”. 

Mas como sempre nestas coisas, o melhor é mesmo ver os filmes, porque os mal-entendidos e as injustiças só persistem se nada se quiser ver e se repetirem palavras caducas e gastas de gente que nada quis perceber. E pode-se olhar e prestar atenção a tudo, em Cleópatra: desde os decotes de Claudette Colbert e das suas aias aos olhares de arrependimento e desgosto da Rainha - os embates morais na sua alma, enquadrados por Cecil B. DeMille com a gentileza e a bondade necessárias; dos planos de grande duração que enquadram a aproximação de espíritos e o brotar da paixão à já citada canção de Charmion ao luar; da sumptuosidade das roupas da Rainha do Egipto e dos cenários que ela atravessa com elas, aristocraticamente, ao realismo das batalhas e do som e da fúria dos homens que as travam; das armadilhas da ambição - e como caem gloriosamente nelas os heróis dos filmes de Cecil B. DeMille, seres imperfeitos que namoram a perfeição e falham redondamente, por cederem ao pecado e aos caprichos mais vãos do espírito -, à redenção pelos sacrifícios, actos sempre desesperados e belos; das noites estreladas que iluminam madeixas de cabelo aos desertos que queimam pés descalços; das altercações sofisticadas e divertidas entre homens e mulheres ao seu negativo trágico, quando fervem os sentimentos; dos cães excitados e impulsivos às gatas reais e impassíveis (e será preciso explicar quem aqui são os cães e as gatas?); das águas e correntes que nunca secam à aridez desse cerco final aos malfadados apaixonados por Octávio e pelos exércitos de Roma. Passando sempre, sempre, sempre pelo passeio nocturno de barco mais rico em sensações desta Hollywood que começava. Juras nocturnas de amor à luz dos astros, sussurradas em contida admiração; sedução gradual regada a iguarias que se sucedem umas às outras e sempre elevando a parada, que o mais alto só tem valor com o mais baixo por comparação (e vice-versa), desde pequenos pássaros assados a ostras pescadas por beldades lascivas, danças belas e perigosas que fazem o álcool cumprir melhor o seu efeito, em rodopios já doidos e inebriados e, finalmente, o grande travelling para trás que nos revela a grandeza e a volúpia geral dessa embarcação com destino ao abismo, para um último embate de forças entre os homens e mulheres que se julgam deuses e os deuses e deusas que os criaram. 

Se é verdade que a obra de Cecil B. DeMille se pode ver como uma grande súmula de Hollywood, então Cleópatra é a grande súmula da obra de DeMille, criador de sonhos e pesadelos e extraordinário realizador americano.

Sem comentários:

Enviar um comentário