quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Scarecrow (1973) de Jerry Schatzberg



por José Oliveira

Para Herman Melville o grande tema Americano foi o espaço, para Jack Kerouac, a velocidade. Na abertura de Scarecrow dois vagabundos encontram-se no fim do mundo que para eles é como o dia-a-dia; poderia ser o absurdo do Hitchcock de North by Northwest levado ao limite, mas nesses ventos de errância a caricata situação comporta a brisa da normalidade. O marinheiro de Al Pacino que certo dia a certa hora teve medo e embarcou para longe, tal como o Gene Hackman das negociatas e do desenrasque, tratam as grandes distâncias como o pátio da infância e não conseguem deixar de correr sob o risco de deixarem de respirar. É capaz de ter esta cara o tão perseguido american dream. Curiosos como crianças, com infinita sede de descoberta e tratando o perigo como mais um comparsa a conhecer, o mais novo vai ensinar ao mais velho que uma descarga de riso pode ser tão violenta como uma carga de porrada. Mas depois há o passado e o acaso que podem soprar para onde quiserem. Tão caloroso como grave, Jerry Schatzberg, na altura um fotógrafo eminente, realizou o mais belo dos filmes sobre as infinitas possibilidades da amizade.

Scarecrow termina em planos compungidos, surdos, aflitos, como em paga depois de tanta ousadia e limite transposto; planos que não condenam, nem julgam, estando a casuística e o ordinário embutidos neles; mas termina também com alguém, o próximo, a encarar tudo isso de frente e a desafiar mais uma vez a sorte. Vai-se dos abertos horizontes de todos os sonhos e possibilidades até à tragédia consumada, dos possíveis recomeços e das dádivas da Americana até ao melodrama desossado. Mas como estamos em território e ofício orgulhosamente clássico, mesmo que vagueando nessa profana década de touros enraivecidos ou corridas sem fim, só se pode começar a falar destas coisas pelo princípio, antes de uma bifurcação oferecida aos que numa ordem e num tempo cruel do cada-um-por-si tiveram o descaramento de sorrir. O descaramento da inocência. Da bela e altiva inocência. Reza assim o inaudito prelúdio: no meio do nada, do alto de uma colina profundíssima desce Max a pé, no seu depois inconfundível estilo fanfarrão. Cá nos baixos vai-se deparar com um tipo bem mais novo do que ele, Francis, o tal alegre mas também tímido, a quem irá até ao fim tratar por Lion. Até ao fim, é justo que se reforce. A situação é menos inaudita do que a de Cary Crant nos milheirais de Hitchcock no célebre filme de 1959. Logo aí as personalidades de cada um e as maneiras de ir ao mundo vão estar bem demarcadas. Em longos planos-sequência, já unindo o que parecia não ser passível de união.

Max acaba de sair da cadeia meia dúzia de anos depois de ter entrado, meio trapalhão, com resposta sempre pronta para o que quer que seja, desconfiado, “filho da puta” como se define com orgulho, dos que não confiam em ninguém nem aparentemente amam nada, sempre com a violência de resguardo. Também fica birrento como uma criança quando se zanga. Lion pode ser à primeira vista o negativo deste, divertido mesmo que por vezes se note a diversão como abafador da solidão e do medo, dos que gracejam defronte aos problemas e que se apresentam com esperança e humor e amor mesmo que saibam que uma tempestade se aproxima. Ao contrário de Max costuma fugir dos obstáculos e das grandes decisões e, como o Robert do filme de Rafelson que vimos no nosso Cineclube, entregou-se à marinha e deu corda às sapatilhas de rabo entre as pernas aquando de um filho e de responsabilidades prometidas. Max vai gostar quase logo de Lion pois este ofereceu-lhe o seu último fósforo, e aí nesse revolucionário vento e nessa revolucionária poeira de oeste deserto vão nascer partilhas e uma camaradagem sem limites. Seguidamente comem até rebentarem e fazem-se à vida pois a morte é certa. Ambos têm em comum a perdição e o gosto pelo risco, mesmo que tentando riscos diferentes. Puros drifters, sem a consciência de tal.

Longe dos grandes centros se vão manter e nos percursos clandestinos entre Denver, Detroit e a tão almejada Pittsburgh as mudanças e os cenários serão mais sentimentais do que físicos. Serão transformadores como transformador e decisivo vai ser o conselho do jovem ao mais velho quando este só acredita no olho por olho dente por dente. Ensina-lhe a ter a mesma reacção que segundo ele os corvos têm diante dos espantalhos que protegem os campos plantados, animais que em vez de se assustarem, riem-se, e assim deixam os autores dos bonecos em paz. «Não tens de lhes bater se os fizeres rir». É Max que imediatamente se rirá de modo trocista do conselho, mas algo ficará. E se à custa de mais aprendizagens nunca suficientes os dois vão passando realmente coisas um ao outro, uma das coisas que mais desarma neste filme absolutamente desarmante e assombroso, é a forma como estes dois tipos fogem a qualquer arquétipo que desta década se poderia supôr.

Max, o velho que poderia representar o antiquado studio system de Hollywood é o mais selvagem, o anárquico, sem dúvida o idiossincrático, iconoclasta, ou seja, um Dennis Hopper ou um Francis Ford Coppola. Lion, na flor da idade e com sangue na guelra apresenta-se mais cauteloso, protector de nobres valores, humanista sincero, um Walsh ou um Hathaway. À tão propalada fuga para a frente das décadas de 60 e 70 do cinema americano, Schatzberg vai tudo pôr em causa e tudo complexificar. Max só quer concretizar o desejo de uma vida, abrir um negócio e fixar-se finalmente. Lion embarca como seu sócio e antes disso só quer ver o filho e a mulher que abandonou num impulso. Corte brusco e aparece aquilo que na vida sempre vem – relações entrevistas e adiadas, volte-faces, encarreiramentos, inesperados. A vida e o tempo que consistem em não parar, modifica, e as coisas entre ambos começam a confundir-se e mesmo a reverter-se lentamente. Max passa do aterrador e do ridículo, como define Lion, só até ao ridículo do espantalho; assim como Lion, que um pouco na contramão tanto riu, tanto banalizou dores e responsabilidades, já não consegue fazer o luto quando ele surge verdadeiro e assim indispensável, daí até ao baque e a uma possível demência por atrofio dos valores é um passo tão rápido como o final, sem pinga de sangue, outro tipo de espantalho ainda mais dúbio.

Pobre Lion, que não percebeu que a diferença entre os da sua raça terráquea, ou pelo menos ele próprio e os da sua boa natureza, em relação aos espantalhos tem a ver com a carne que esses simulacros não têm. Carne carne, como veias veias e ossos ossos. Sangue. Do que ferve ou congela. Organismo convulso verdadeiramente oposto à palha e ao oco dos tais que assustam ou fazem rir aves. E sobretudo, sobretudo o coração. A parte fulcral que a modernidade mais do que moderna da "sociedade perfeita" fez esquecer, ridicularizar. A parte feminina do homem, tal como nos disse Melville em relação aos demais bons que rareiam por esta terra, como esse inesquecível Billy Budd, com certeza da mesma árvore genealógica e pureza de F. L. Delbuchi. Há gente que muda efectivamente, como Max. Outros que de tão anestesiados e rotinados são há muito incapazes de rir, como a mulher que o mata em infame escorregadela. Mulher que pode ser tão desculpada e bela como Lion, seres desprotegidos que simplesmente tremeram no instante negro. Sem premeditação.

E felizmente os tragicamente bons, esses tão raros, que como definiu G. Sand a propósito de Chopin, «são de uma organização demasiado perfeita e esquisita a este mundo grosseiro para que possam viver aí demasiado tempo». A beleza de uma pessoa que um mundo destes teve obrigatoriamente de castrar. Tal e qual como outras esferas se deleitaram na trucidação e abafamento de belezas como as que por esta época Michael Cimino, outro desta casta, ousava erguer. Desse sorriso eterno e alegria na vida à explosão e à maca e à sedação por drogas, esse término de um caminho que era ainda uma aurora, tiro no coração de uma humanidade que transforma em vegetal quem por ela vive verdadeiramente - perfeito desenlace e perfeita imagem de uma sociedade corrompida e por tantos a ideal. Só dançarinos ou equilibristas tipo Chaplin e Keaton passaram assim como meteoritos desregrados e incontroláveis pela selva civilizacional; com tantas paragens e conversas a remeter para o grande e fúnebre cinema europeu da época, Jean Eustache acima de todos.

Entre o filme de Bob Rafelson e o de Jerry Schatzberg, entre esses risos tão contraditórios e tão melindrosos e medrosos e fortes ao mesmo tempo, várias correspondências, sendo a consciência do terrível de se entregar a fundo num mundo tão horroroso porque gratuitamente aniquilador como este, a maior delas. Five Easy Pieces e Scarecrow, foragidos com causa. E já que referimos Cimino, refira-se também o sereno fulgor e a revelação majestosa do trabalho do genial director de fotografia que foi Vilmos Zsigmond, desaparecido este ano. Cimino e Zsigmond voltarão muito ao nosso Cineclube, para nos mostrar que entre o génio inato da natureza e o génio inato do homem está o verdadeiro fogo, relação que só desse modo incendeia a tela nascida escura do Cinema.

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