quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Thunderbolt and Lightfoot (1974) de Michael Cimino



por João Palhares

Fruto da Malpaso Company (a produtora fundada por Clint Eastwood e Irving Leonard com o lucro feito com a trilogia dos Dólares de Sergio Leone, interpretada por Eastwood, baptizada de Malpaso por causa de uma enseada no Big Sur que tanto tinha fascinado Henry Miller, Jack Kerouac e fascinava agora Eastwood; o nome funcionou (e funciona) também como uma espécie de “muita merda” para a sua carreira e para os seus filmes, que, de Hang 'Em High a Sully, feito este ano e expressão e reflexo de um espírito completamente livre, "passou mal" muito poucas vezes), Thunderbolt and Lightfoot foi o primeiro filme de Michael Cimino, nova-iorquino vindo do mundo da publicidade e autor de anúncios televisivos para a L'eggs, para os cigarros Kool, para a Eastman Kodak, a United Airlines, Pepsi e outras marcas. Foi nessa altura que conheceu Joann Carelli, que depois, nestes nossos anos 70, o convenceu a tornar-se argumentista de cinema e acabaria por produzir três dos seus filmes (The Deer Hunter, Heaven's Gate e The Sicilian). Cimino co-assinou então o argumento de Silent Running (o primeiro filme realizado por Douglas Trumbull, o supervisor de efeitos especiais de 2001: A Space Odyssey de Stanley Kubrick e The Andromeda Strain de Robert Wise), e através da Agência William Morris e de Stan Kamen vendeu o argumento de Thunderbolt a Clint Eastwood, que era para ter realizado o filme mas acabou por deixar Cimino fazê-lo, depois de este ter trabalhado no argumento de Magnum Force

Tendo oferecido isto a Cimino, durante a rodagem Eastwood torna-se ainda o reflector do talento e da luz irradiada por Jeff Bridges, que interpreta o frágil Lightfoot. Vendo na personagem uma expressão perfeita dos anos sessenta, Bill Krohn disse a Cimino numa conversa monumental publicada em 1982 no nº 337 dos Cahiers du Cinéma que “Jeff Bridges é assombroso nesse filme. Lightfoot é provavelmente a personagem mais completa que já criou, e é a expressão desse período.” Cimino – que, ainda nessa conversa, disse ter percorrido nos anos sessenta a América inteira “sozinho, num carro: lembro-me do céu, da noite; fiquei sem recursos, uma noite, algures no North Dakota, numa estrada plana até se perder o olhar; fui-me embora, era o pico do Inverno, estava um frio terrível, estava tudo silencioso, e fui-me. O céu parecia irreal, incrivelmente irreal, e, não sei, lembro-me de me ter apaixonado por essa estrada, de alguma maneira me ter apaixonado com a “viagem”, e nunca parei.” - respondeu que “gostamos todos de explorar, descobrir coisas, novos lugares. No acto de explorar, de nos fazermos à estrada, reside a descoberta de algo sobre a verdadeira ordem das coisas. Todos temos um bocado deste sentimento em nós; alguns usam-no, outros não. Eu acho que é característico dos Americanos e do Western, sem dúvida. Eu adoro mesmo essa personagem, mas adoro todas as minhas personagens, como velhos amigos. Quando acontece rever os meus filmes, é como se estivesse a ver um filme de amigos; nunca me passa pela cabeça que estou a ver actores a interpretar um papel, tenho a impressão de estar a ver um filme dumas férias que se relacionam com um acontecimento em que participei sem me ver a mim mesmo, embora sinta a minha presença. É como a ilustração de um momento em que se partilhou. Eu sorrio quando penso no Jeff. Na verdade, ele dominou o filme um pouco mais do que o esperado.” Bridges confirmou isto tudo, quando contou em Julho deste ano, num texto muito sentido escrito pela altura da morte de Cimino, que o realizador lhe tinha dito “que este tipo, Lightfoot, era nada mais nada menos do que eu, que eu não podia cometer um erro, ou um passo em falso, mesmo se quisesse.” 

Toda esta generosidade passa para Thunderbolt and Lightfoot, desde as suas imagens inaugurais com os acordes da guitarra de Paul Williams a acompanhar o vento que sacode as searas de trigo, enquanto ao longe se vão ouvindo as canções dos fiéis da personagem de Clint Eastwood, até ao tocante final, com carros a atravessar montanhas e seres a desvendar o segredo maior; passando por momentos de confissões e narrações de histórias e passados, sublimados pelas paisagens que Cimino e Frank Stanley captam com a sua câmara. A generosidade é algo de que se fala pouco quando se fala de Cimino, mas é impossível pensar noutra coisa quando se vê este filme. Vêm à memória as lágrimas dele em Locarno, nessa conferência de imprensa lindíssima em que se passa de tudo e em que ele se deu por inteiro a quem lhe quisesse falar. Uma rapariga saltou as grades para lhe perguntar como é que conseguia lidar com um mundo cruel, cínico e duro e ele disse-lhe que se tinha que ser mais duro que toda a gente, como no futebol americano. “But you're nice at the same time”, disse-lhe ela. “I'm only pretending to be nice, now”, foi a resposta. E pediu-lhe para ficar, enquanto relações públicas e organizadores do festival lhe diziam para se despachar e ele continuava a falar e a ouvir. Estaria mesmo a fingir? Vendo outra vez Thunderbolt and Lightfoot, em que Cimino também se dá por inteiro, assistindo outra vez ao que acontece ao personagem de Jeff Bridges, frágil demais para resistir ao mundo e à vida de Thunderbolt, fica-se a pensar se a vida e a obra de Michael Cimino não estarão também entre o raio e a doçura, entre o reboliço do mundo e a candura dos homens.

Como se diz na oração logo no princípio do filme (tirada da Bíblia, Isaías: 11:6), "The wolf also shall dwell with the lamb, and the leopard shall lie down with the kid". E vêem-se Roy Jenson (logo no princípio do filme), Geoffrey Lewis e George Kennedy, repara-se no tratamento que estes lobos e leopardos recebem, a forma como são filmados e descritos e volta-se a pensar na conferência de Locarno e em Cimino a falar dos "killers" que conheceu e de como são as pessoas que têm mais sentido de humor. Para alguém que cedo desistiu de pródigos futuros e ambientes luxuosos e confessou mesmo preferir a companhia das "más companhias" talvez não seja surpreendente, porque "esses tipos eram tão vivos. Quanto tinha quinze anos passei três semanas a guiar por Brooklyn inteira com um gajo que estava a seguir a namorada. Estava convencido que ela o estava a enganar, e tinha uma arma, ia-a matar. Havia tanta paixão e intensidade nas vidas deles. Quando os miúdos ricos se juntavam, o máximo que fazíamos era passar um sinal vermelho." E por tudo o que acontece neste belo filme e por tudo aquilo que passam Thunderbolt e Lightfoot, apetece-nos mesmo acreditar no segundo que, às portas da morte, diz que não acha que são criminosos e que fizeram um belo trabalho.

Mas vamos ter tempo para explorar tudo isto: vamos poder ver a guerra no Vietname e nos corações de Mike e Nick em The Deer Hunter, Kris Kristofferson a lidar com a avareza e a injustiça do seu tempo em Heaven's Gate, o capitão Stanley White a debater-se entre o ódio e o amor que sente pelo inimigo (é esse o grande não-dito de Year of the Dragon: “if you fight a war long enough, you end up marrying the enemy”), enquanto a música de Mahler ilustra essas mesmas contradições, o Salvatore Giuliano de The Sicilian que rouba aos ricos para dar aos pobres, as Desperate Hours em que a relação entre assaltantes e assaltados toma contornos bem complexos e o milagre final e a relação mágica entre Blue e o Dr. Michael Reynolds em The Sunchaser

Que comece a aventura.

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