quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

The Deer Hunter (1978) de Michael Cimino



por João Palhares

Continuando o nosso pequeno ciclo Cimino inserido no grande ciclo de cinema americano, damos de caras com The Deer Hunter, o filme de 1978 que rasgou as paisagens revolucionárias desses tempos e irrompeu por Hollywood e pelo mundo com a grandeza intemporal de um épico grffithiano ou wagneriano, com lampejos de fúria e de côr, tonalidades românticas e apaixonadas e vários actores em absoluto estado de graça. Voltaríamos a ver Meryl Streep (talvez só em The Bridges of Madison County, de Clint Eastwood), Christopher Walken (talvez só em King of New York, de Abel Ferrara), George Dzundza ou John Savage como os vemos neste filme? “Frágeis como o mundo”, citando o filme de Rita Azevedo Gomes de 2000 com o mesmo nome. 

Porque o que impressiona, mais uma vez, e repetindo o que se disse sobre Thunderbolt and Lightfoot (Mike como Thunderbolt, Nick como Lightfoot?) é esse confronto impossível entre as maiores tormentas desta vida e a fragilidade dos homens. Lembramo-nos de Nick, tão sozinho, tão desalentado e sem ânimo, a percorrer as ruas de Saigão cantando “Rain is rain, snow is snow”, depois de não conseguir telefonar a Linda e de não conseguir passar a noite com companhia passageira mas tão necessária. Se não se cruzasse com o terrível Julien que lhe abriu as portas do submundo e do inferno talvez conseguisse regressar a casa. Se Mike não o convencesse a elevar a parada na cabana de todos os suplícios, com três balas em vez de uma nas câmaras dos revólveres que tiveram que apontar à cabeça, talvez também conseguisse. Se não fosse sozinho no helicóptero e Mike e Steve não caíssem à água, talvez também conseguisse. Se, se… 

Como magoam os “ses” desta vida quando se imprimem irreversivelmente nas caras e nos corpos com que nos cruzamos todos os dias. A lembrança de Nick para sempre impressa nos olhos de Linda, a lembrança da guerra para sempre ligada à invalidez de Steve. Mike como recipiente de todos os arrependimentos e de todas as culpas - o mais forte dos três. Mas nem ele consegue parar à porta de casa e ser recebido com a festa que lhe preparam os amigos. Claro que The Deer Hunter é um filme difícil, claro que custa revê-lo, mas não pela brutalidade crua das cenas da roleta russa, e sim pelo que não se diz nem se quer dizer e se guarda e reprime para sempre no fundo da alma. Michael Cimino tornou visível esta terrível vacilação e nós ainda não o perdoamos. Mas é fácil? É fácil tornar todas estas memórias inseparáveis dum olhar ou de uma acção perdida? Ou redimi-las num acto absolutamente desesperado e aleatório, mas que impede as pessoas de sofrer quando olham para quem está à frente delas? Cantar o “God Bless America” à espera que uma bênção divina chegue mesmo, eis algo por que só muito poucos devem passar (e não são os “happy few”, são os “sad few”, a metade perdida deste mundo que ainda carrega a outra como um peso insuportável em nome de belas palavras como “paz” ou “progresso”, a gente que mais interessou a Ford e a Cimino, a gente que mais interessa a Pedro Costa ou a James Gray – o povo). 

As pessoas lembram-se das cenas da roleta russa e do “God Bless America” mas esquecem-se do fumo e do fogo dos aceiros, de Michael a despejar o dinheiro todo que tem no mundo para as mãos de Julien e dos gangsters vietnamitas para salvar Nick, morto-vivo na desolação de uma cidade a ferro e fogo. O “one-shot” de que Nick e Mike falam tanto tem que ramificações e toma quantos significados, já, no final do filme? Terá tanto que ver com o tiro solitário que mata os veados da Pensilvânia (única maneira de estar à altura da sua beleza, código de honra de caçador), com a oportunidade única de subir ou saltar na vida que a participação na campanha americana no Vietname pode oferecer (Steve fala disso à mãe; “shot” aqui como “chance”, portanto) como com a morte lenta de Nick, desde a noite da “descida ao inferno” (como na tradução francesa) à procura da bala escondida nas câmaras dos revólveres de Saigão e que o aliviará das dores deste mundo. Mas com que mais? Nick lembra-se dessas palavras no último momento, depois de não reconhecer Michael quando este o tenta convencer a ir para casa. Tinha-lhe dito para o ir buscar se lá ficasse, na última noite (“one-shot”) que passaram na cidade deles. Ter entrado na casa de jogo com Julien, pela primeira vez, pode ter sido a última tentativa desesperada para encontrar Mike (“one-shot”), que estava mesmo lá e o vê a ele, mas acaba por perdê-lo na confusão. Estando ambos apaixonados por Linda (quantos olhares furtivos de Michael na direcção dela, durante a festa do casamento de Steve – Nick percebe e Cimino torna tudo isto incrivelmente cristalino), o último acto de Nick neste mundo (“one-shot”) pode ser visto como um acto distorcido de amor, como só comete quem perdeu toda a sanidade. É claro, sequer, que Linda e Mike vão acabar juntos, no final, quando esta nem consegue olhar para ele? Consegui-lo-ão depois da morte de Nick, que a pediu em casamento – ela disse que sim - na festa? Nada disto tem uma resolução e mais se acentua a nossa dificuldade em suportar as questões não resolvidas deste filme, apresentadas de forma solta, dispersa e imperscrutável, como na vida. 

Ficam (têm que ficar, tanto para eles como para nós) os momentos que mais se querem lembrar: Nick a cantar “Can’t Take My Eyes of You” (veja-se a construção e a encenação dessa cena, tão fluída que nos esquecemos que teve que ser construída e encenada, das tacadas de bilhar à entrada da mãe de Steve e da conversa que esta tem com ele sobre o casamento, os amigos e a guerra), Mike no topo das montanhas a caçar os seus veados ou a sorrir e a jogar bilhar no bar de John (George Dzundza), aquele que mais parece compreender tudo o que se passa com aquele grupo, tanto quando toca o Nocturno de Chopin (a seguir ao qual já só se pode cortar para a guerra), como quando começa a cantar a canção do fim do filme, Steve a celebrar o seu casamento com um mar de promessas à sua frente, as brejeirices de Axel e Stan e a beleza inviolável de Meryl Streep, a Lilian Gish de Michael Cimino. 

Os filmes de Cimino são todos tragédias (e o capítulo mais negro ainda não chegou, esperem por Janeiro), e se não é descabido falar em Griffith ou de The Birth of a Nation quando se fala dele, The Deer Hunter talvez seja o “The Death of a Nation”. Só que sonhador, poeta e místico como é, Cimino não consegue apagar as réstias de esperança contidas numa ou em duas canções muito sentidas (The Deer Hunter), num bailado cósmico num salão vazio (Heaven’s Gate), num freeze frame em que se projectam todas as possibilidades e sonhos deste mundo (Year of the Dragon), num vislumbre do mundo e de todas as coisas do topo de uma colina (The Sicilian), num assobio belíssimo que ecoa pelas montanhas e pela eternidade (Desperate Hours) ou numa corrida desenfreada pelos vales da morte e em que tudo se conjuga e redime (The Sunchaser). 

Resta tentar aprender alguma coisa, por mais pequena que seja, como com tudo o que nos ultrapassa, seja a obra de Wright, a de Michelangelo, a de Rubens, a de Bach, a de Nijinsky, a de Shakespeare ou a de Michael Cimino.

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