sábado, 10 de dezembro de 2016

The Last Waltz (1978) de Martin Scorsese



por João Palhares

“It started as a concert... it became a celebration.” Lê-se isto no poster de The Last Waltz, um “Martin Scorsese film” (o mais belo dos Scorseses?), e quem queira argumentar que é só um documento histórico ou só a filmagem de um concerto terá muitas dificuldades. Basta olhar para o filme. As coisas que dizem Danko, Robertson, Manuel, Helm e Hudson sobre música, sobre a vida, sobre barracões recônditos na América, sobre furtos de bens essenciais motivados pela fome, sobre os blues e o bluegrass, sobre a vida na estrada (esse “comboio misterioso” que levou Elvis, Otis Redding, Hendrix, Jim Morrison, Janis Joplin e tantos mais para o outro mundo ou para o outro lado da vida), sobre planos para o futuro (vejam esse plano delicadíssimo sobre Rick Danko, o baixista dos The Band, quando responde, triste, que depois do fim da banda vai começar a compôr, sem saber muito bem se é verdade), sob o olhar atento de Martin Scorsese, são a ilustração perfeita do que se canta em todas as canções deste grande e mítico concerto, tornando as letras ora lancinantes, ora dolorosas, ora edificantes (“I Shall Be Released” é a apoteose). Elas valeriam por si num concerto filmado banalmente e de forma menos comprometida (estamos a falar, afinal, de grandes artistas e cantores), mas assim ganham outras ramificações e consequências. 

As consequências e as ramificações conseguem-se e encontram-se por se ser apaixonado no que se está a fazer e se ordenar as cenas e os planos de forma a tornar evidentes os sentimentos, as transformações e as contradições que gravitam em torno de todas as câmaras. Todas, sem excepção. A diferença, sempre, é que umas conseguem-nas apanhar e outras não. Scorsese apanhou-as e deu-nos The Last Waltz, monumento erigido a quem faz da música a sua vida, com o bom e com o mau (afinal, tinha acabado de fazer New York, New York, filme irmão deste e não apenas pelos parcos dois anos que os separam) Qualquer momento de conversa com os cinco membros dos The Band é sucedido por uma música que amplifica o que lá se discutia e batia. Veja-se o início do filme, lançado duma mesa de bilhar e com uma tacada directa ao assunto, para os holofotes e para os riffs do baixo de Danko. Ou a aparição redentora de Neil Diamond, cantando para “dry your eyes” pelo que se passou nos anos 60, a Tin Pan Alley, Nova Iorque e ao mundo. Joni Mitchell a aparecer entre os coiotes para cantar sobre “prisoners of the white lines of the freeway.” 

Mas vejam, vejam como aquilo do “beginning of the beginning of the end of the beginning” não são só palavras ditas ao vento e Scorsese começa mesmo o filme pelo fim, por uma das últimas canções da “Última Valsa” que se valsou. Vejam como, de repente, lá para meio do filme, se vai às raízes e se faz um verdadeiro compêndio do cancioneiro americano. Dos blues de mãos com calos não da guitarra mas das coisas da vida ao Mistery Train. A aparição do Nobel maldito com uma panorâmica vertical, a pausa a meio da música e a troca de olhares entre Dylan, Robertson, Levon Helm e Danko para tocarem “Baby Let Me Follow You Down”. Depois de “Forever Young” e antes de “I Shall Be Released”. Já só me perco em descrições, não vale a pena. Vejam.



por José Oliveira

Profético e bem representativo o tiro de abertura disparado em The Last Waltz: Rick Danko, um dos membros dos The Band, grupo que se irá despedir da música, das estradas e dos anos 60 e 70 com os amigos que os inspiraram e com a câmara do mais nervoso realizador daquela era, explica que o objectivo desse jogo é meter todas as bolas antes do adversário; a fundo, reforça; e a fundo dispara, explodindo a geometria primeira para o abstracto e para todas as imprevisíveis ramificações. Logo de seguida se pisa o palco e se inaugura o Longo Adeus a uma era mas não necessariamente à natureza intrínseca de cada um daqueles corpos cadentes com infinita matéria para consumir. A pancada inaugural e a sorte, a inocência a fundir com a violência do destino, o fim a confundir-se com o nascimento. 

«Celebration of a beginning or an end?» pergunta Martin Scorsese a Robbie Robertson, com quem iria trabalhar para sempre. Resposta: «Beginning of the beginning of the end of the beginning». Como o fascinante fogo-de-artifício do snooker que iria moldar toda a obra futura de Scorsese, trata-se menos de metafísica intrincada mas antes de reconhecer abertamente e sem medo dos escuros abismos a questão eterna dos eternos retornos. Bob Dylan e forever young, a presença recorrente e quase palpável do centro da América de Elvis Presley, as margens e os confins, a fragilidade e humanismo volvidos Joni Mitchel com a convocação dos pioneiros e de Hank Williams; o presente tenso, Jimi Hendrix, Janis, o fantasma da impossível permanência no alcatrão e na corda bamba; os vociferares de The Hawk e a fantasmagoria de Ringo. 

Como faria mais tarde em Casino, hoje cada vez mais central, a herança e a criação, que em Scorsese se torce ou se esganiça para a lição e o improviso, indecisão irresolúvel, espectro a furar o cegante reflexo, todos os princípios e todos os fins já trocam os seus ecos e apelos, de onde tudo regressa a tudo, a coisa em rotação com o semelhante, entre o turbilhão dos meios. O cineasta que nunca se resolveu entre os dois grandes Johns, Ford e Cassavetes, vibrando as catedrais perfeitamente acabadas com as capelas estilhaçadas, oferece assim à geração exposta e às suas sombras e trevas a verdade da constante procura e risco. Bringing Out the Dead ou mais prosaicamente a mais bela das t-shirts de Dylan lá para trás ou no recente prémio Nobel, em capitais: EVERYTHING PASSES, EVERYTHING CHANGES, JUST DO WHAT YOU THINK YOU SHOULD DO.

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