domingo, 26 de fevereiro de 2017

49ª sessão: dia 28 de Fevereiro (Terça-Feira), às 21h30


Vindo dos bastidores e das rodagens de filmes de Robert Wise, John Lee Thompson ou John Sturges, John Flynn assinou o seu primeiro trabalho ainda nos anos sessenta, com Rod Steiger no papel principal. Por esses anos fora até aos anos oitenta de Best Seller, a nossa próxima sessão, mostrou-nos o que se passa dentro dos homens antes de cometerem grandes actos de violência, nunca para os justificar mas sim para os tentar compreender. Por isso a sua contenção clássica impressiona tanto, pelo que se passa entre os silêncios e os recuos até à investida explosiva que há-de transformar esses homens diante dos nossos olhos. Com James Woods, em Best Seller, passa-se exactamente o mesmo. A violência à flor da pele, os nervos em franja, o tique-taque do relógio enquanto o suor cai gota a gota no chão... Terça-Feira temos encontro marcado com o cinema de John Flynn. Contemos os minutos.

John Flynn falou do filme a Harvey F. Chartrand, em 2005, perguntando-lhe este se o filme era baseado no escândalo Watergate e respondendo-lhe Flynn que "Não, isso é um absurdo. Não há conexão com o Watergate. Eu reescrevi o argumento. O Writers Guild decidiu contra mim e eu não recebi nenhum crédito, pois eles decidiram que eu não tinha escrito pelo menos 51% do guião. Depois de Larry Cohen e eu superarmos esse conflito, tornámo-nos bons amigos e ele enviou-me outros guiões ao longo dos anos.

"A história original chamava-se Hard Cover. Mudamos o título para Best Seller na pós-produção, pois Hard Cover não testou bem com o público da pré-visualização. Então, uma mulher processou-nos a todos - a mim, a  Cohen, James Woods e ao produtor Carter DeHaven. Essa mulher alegou que tínhamos roubado o enredo de um livro que ela escreveu, chamado Best Seller. Provámos que este não podia ser o caso, pois Larry Cohen tinha enviado um tratamento à Columbia antes dos direitos autorais do livro serem registados. É incrível, porém, porque havia semelhanças entre os enredos. O livro dela era sobre um assassino que escreve um best seller que incrimina as pessoas que o contrataram. No fim das contas essa senhora não queria dinheiro. Ela optou por um contrato de três filmes com a Hemdale Films. (risos)"

Philippe Garnier, aquando da retrospectiva da obra de John Flynn na Cinemateca Francesa em 2015, escreveu sobre a vida e a obra do realizador: "Nascido em 1932 em Chicago, Flynn seguiu a sua família até Manhattan Beach. Comprometido à guarda costeira aos 18 anos, inscreve-se na escola de jornalismo dessa unidade em Washington, depois na UCLA, onde obtém um diploma de letras. Um professor que estava a escrever sobre o romance e o Film Noir (o que não era tão evidente nos anos cinquenta) influenciou-o profundamente nessa época. O suficiente para que em 1958, Flynn se encontre a brincar aos mensageiros na rodagem de Odds Against Tomorrow. Romance de William P. McGivern, argumento de Abraham Polonsky, um elenco que contava com Ed Begley, Gloria Grahame e Robert Ryan : o jovem Flynn já estava no seu habitat. Wise coloca então Flynn sob a sua asa : é « script supervisor » em West Side Story, dirige as segundas equipas em Kid Galahad, com Presley, Two for the Seesaw com Mitchum. « Bob Wise e J. Lee Thompson : devo a minha carreira a esses dois » dizia Flynn. 

"É ainda Robert Wise que o encaminha para o sucesso no fim dos anos sessenta, permitindo-o dirigir um pequeno filme na Europa : The Sergeant – a história de um militar de carreira devastado quando descobre os seus sentimentos para com um jovem recruta interpretado por John Phillip Law. É também nesta época que ele conhece a sua mulher, Marie Dominique, com a qual terá dois filhos. O que explica sem dúvida uma parte dos seus gostos em matéria de cinefilia, voluntariamente francófilos. Flynn conhecia perfeitamente a Série noire, era o tipo de homem para ter visto Le Cercle rouge dezassete vezes na sua vida. Melville é uma influência maior na sua obra, e já a vemos n'A Quadrilha, mas ironicamente nunca tão bem como no final equívoco que ele tinha escrito originalmente – cena que tentará (também em vão !) aplicar no fim de Rolling Thunder

"Os seus filmes são tranquilos, no limite taciturnos. E ele interessa-se – coisa que só pode agradar aos franceses – pelos perdedores, pelos excêntricos e pelos ofícios pouco procurados. Fez por exemplo um filme pouco visto em 1983, Touched, sobre um palhaço de feira – o tipo que se faz cair à água disparando contra um alvo com balas de pressão. E é com um orgulho característico que ele nos diz para estender a mão, ao longo das suas procuras, ao homem que inventou o curioso sacerdócio de palhaço. Numa palavra, Flynn interessava-se nas pessoas « boas em qualquer coisa », como ele dizia: « boas no que fazem », sejam bons perfuradores de cofres, bons terroristas, bons palhaços ou bons assassinos contratados. Na vida, Flynn era também um desses homens « bons em qualquer coisa », que adorava acima de tudo falar da sua profissão, método e economia de meios."

Felipe Medeiros, que nos apresentou Ernst Lubitsch no início do ano passado, escreveu sobre Best Seller para a Foco: "Estabelecendo uma cadeia de vínculos intermediários bastante hábeis na apreciação da audiência, pode se dizer que Flynn concretizou tão bem quanto os manequins de Bresson essa busca “pelo mínimo estrito essencial”. É impossível não fugir de imagens como a revelação da traição da esposa do Major Raines enquanto ele lutava na guerra ou do modo desajeitado e lúdico com que James Woods tenta presentear o escritor do seu Pacto Fatal até ser abruptamente repelido, convertendo sua admiração também em ira. 

"Essas são algumas das visões mais fortes da história do cinema americano. Os actores passam por entre três a cinco registos diferentes quase que sem expressão facial em questão de segundos. Eles não desperdiçam uma só nuance, porque no cinema de Flynn (e consequentemente no dos grandes encenadores) a consecução da construção das emoções dá-se no tempo e na pintura: a confluência entre o máximo de informações num mínimo de elementos."

Até Terça!

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Apresentação d'A Cor do Dinheiro, por Sérgio Alpendre

The Color of Money (1986) de Martin Scorsese



por José Oliveira

Martin Scorsese chegou a filmes como este The Color of Money ou o anterior After Hours passados os anos setenta da autodestruição e da penitência, cargas e voltagens Fullerianas, como quem expurga os pecados pessoais inconfessáveis ou é obrigado a redimir toda uma nação da qual se faz parte inelutavelmente. Salvo uma ou outra excepção – o sonho da magia de Hollywood mesmo que bastante trilhado em Alice Doesn't Live Here Anymore, por exemplo – as batalhas do cineasta e da câmara unos, da montagem visível, dos seus actores e da música como coro – as suas entidades indissociáveis num só ritmo – travaram-se entre as ruas, o lixo mesmo e a sujidade que passa dos passeios ao humano e regressa a eles, e o sagrado, Deus, a fé, a transcendência sempre possível até ao último fôlego – logo desde Who's That Knocking at My Door. Passada a fina linha que separa os sãos dos loucos, os acomodados dos que vão até ao fim do poço, teve, à imagem de Francis Ford Coppola, de fazer supostas encomendas de estúdio para sobreviver e ganhar prestígio. E foi nesse período que utilizando o seu temperamento destravado noutras cambiantes dramáticas e zonas de luz, supostamente mais coloridas e festivas, revelou da complexidade e subtileza das suas preocupações e recursos, chegando mais uma vez à questão do eterno retorno, centro e borda para onde concorrem sempre as quatro entidades referidas. 

«Approach every shot in the same way. Give every shot the same respect. Give every shot your full attention.» Tom Simpson (frase afixada na academia Dynamic Pool, a melhor sala de jogos de Braga e arredores). 

The Color of Money é uma continuação do filme de Robert Rossen que vimos no nosso cineclube aquando dos anos 60 do cinema americano, The Hustler chamado, e é a mais estranha e por isso mesmo plausível das sequelas. Logo na abertura, de rajada seca como as aberturas de Cruise na bola 9, e logo depois da voz de Scorsese enunciar as regras da perdição, damos literalmente de frente com Paul Newman, o Fast Eddie Felson que noutra vida, no filme de Rossen, flirtou com a tragédia e foi engolido com ela, aprendendo o que não se quer nem se deve aprender; no filme que não foi feito, onde passaram esses anos que transformaram um jovem sedento e apaixonado numa raposa cínica, outro tanto se passou, e tudo nos chegará desses anos do meio do caminho nesta obra condensada e faiscante como o jogo oficial em causa, onde Newman se vai tornar Cruise e Cruise se tornará Newman, onde a bela rapariga aprenderá demais, onde o velho e o novo trocam as voltas como a epígrafe Scorcesiana: «Beginning of the beginning of the end of the beginning». 

Então Newman, que certa vez foi como o inocente e soberbo Vincent Lauria de Cruise, metamorfoseou-se num psicólogo de laivos Frankensteineanos, uma espécie de vampiro magnético e de verve irrefutável, caçando esse sangue efervescente no intuito de cozinhar e de apurar o elixir da juventude eterna. Contrabandista de corpo e alma, eterno hustler da vida, planante entre bebidas, fumos vários, mulheres e jovens promessas, utiliza o charme e os infinitos percalços e golpes acumulados para atingir o mais quimérico dos desejos puramente humanos. «Para alguns jogadores a própria sorte é arte», foi a derradeira frase da voz-of de Scorsese, e a sorte é o indefinível que Newman também trata por tu para o desequilíbrio da balança a seu favor. 

Cruise, ele e personagem, produto típico dos anos oitenta e da era Ronald Reagan, coberto de brilhantina como de show-off, é o tipo do salão de jogos que tanto pode arriscar tudo num só golpe como jogar à borla, o jogo pelo jogo, a emoção a jorrar; Newman reconhece esse perigo, o perigo dos desalinhados ou dos não-razoáveis, e começa a deslindar sobre a mente humana, a necessidade de estudar o próximo, os movimentos cruciais e reveladores, enfim, a doutrina dos novos tecnocratas, ultra-sofisticados profetas de um mundo novo porque calibrado infalivelmente pelos números e mercados. E atira ao par – atenção pois a personagem de Mary Elizabeth Mastrantonio não é para preencher a quota sexual feminina mas é o terceiro vértice essencial do estudo sobre o vislumbre e teia do poder e da ganância – que é o dinheiro que conta, que é o melhor quem o tiver mais: A Cor do Dinheiro, a lei do dinheiro. A moral em explanação. O mundo pós-clássico. Da concentração e tensão de Rossen para os raides e flipanços do cineasta e da câmara, da montagem intempestiva, dos seus actores e do coro musical. 

Não há como sair dessa abertura de golpe seco onde o pop multi-estereofónico de Phill Colins transforma o ar do tempo ainda mais rarefeito e confuso, Cruise a confessar que para ele esse jogo são apenas bolas e tacos e Newman a espetar que quem tiver uma especialidade, um dom, como ele, no álcool ou na bola 9, fica rico. E é Newman a estudar Cruise depois de rapidamente ter conquistado a namorada. E daí brotam os jogos de dominação e do ciúme, a perturbação e ânsia sexual, a dependência infantil ou terminal, a ganância e o poder, a escravidão e humilhação, o jogo panorâmico da vida – A Cor do Dinheiro. Jogados tais jogos, esses outros jogos sem desportivismo que aguentam a condição humana e suspendem paradoxalmente a descrença, jogos do namoro ou da guerra do negócio, partem estrada fora para estudarem os movimentos humanos e testarem a paciência, tendo em vista que quem ri por último ri ou enriquece melhor. O dom natural, o intrínseco, prestes a ser dominado e sugado por quem tudo diz saber - The Color of Money é uma tragédia pois no speed e no espectáculo continua a escancarar a nossa corrupção ancestral. E é lá para o meio da viagem que Newman vai revelar que parece que está a ver um filme que já viu – como a pescadinha de rabo na boca. 

E Newman, a máquina, só vai voltar a descarrilar, a sangrar, a ser uma pessoa de carne e osso, no episódio com Forest Whitaker, onde tudo começa a resvalar e onde o filme vira; aí descobre que também pode falhar, ser enganado, volvendo-se e volvendo a narrativa ainda mais complexa – ou decide tornar-se o hustler absoluto ao ser comido por outro, ou finalmente recuperou o prazer de jogar por jogar, abrindo já para o último plano. Essa foi a derradeira lição que entregou ao casal, a partir dessa brecha, cada um sabe de si. E o filme vira mesmo, a moral vira a estética e escuta-se Giuseppe Verdi, os movimentos desenhados pela câmara começam a ser harmónicos e gerais, grandiosos, a começarem do céu para aterrarem na mesa da obsessão, muito lentamente; a namorada vira Newman, entre empresária como os do futebol de hoje e conselheira surda, e o divino parece vir observar momentaneamente o palco, a arena dos duelos à Western que supostamente Scorsese nunca fez, preparando tudo mais uma vez para o fechamento final. 

O que Forest Whitaker proporcionou foi a ascensão, a ressurreição de uma alma penada e vingativa em vida, o Newman que nos anos 60 se perdeu entre anjos trágicos com o olhar preso à morte e o mundo a seus pés, e que na era do Circo ainda aprendeu a última lição e trouxe para junto de si, sem pedir nem comprar, a mulher ideal e o prazer total da fruição de um dom. E Cruise, talvez ainda novo demais, torna-se o pior Newman, o cínico vampiro e escabroso psicólogo, mentindo ao brilho e sensibilidade do seu olhar. Mas Newman é Newman e de novo no auge chama Cruise e a namorada perdida para uma sala íntima, deserta, escondida do mundo, como a casa da paz e do sossego que cada um poderá merecer. O jogo sem o dinheiro nem a sua cor e cheiro. Ambos entregues à sua natureza, ponto de chegada essencial de um road movie que jamais o foi. Eterno retorno e salvação no inferno. Todo e o melhor Scorsese no «I'm back» que fecha outra vez fulgurante para os créditos. Sem dissimulação, nem que seja só nesse pedaço de tempo que não veremos mais. Jovens para sempre. A sagrada frase de Tom Simpson lapidada.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

48ª sessão: dia 21 de Fevereiro (Terça-Feira), às 21h30


The Color of Money é a estranhíssima e complexa sequela do filme de Robert Rossen que vimos há uns meses, The Hustler; e muito se deve ao fabuloso Paul Newman envelhecido e sabido, que encontra no jovial Tom Cruise um veículo perfeito para as suas pretensões. Martin Scorsese pegou no ar do tempo e nas vestimentas dos anos 80 para ir fundo e seco em questões e choques ancestrais como o envelhecimento e a juventude, a ganância e a traição, tudo sobre a metáfora ou os desígnios do snooker. 

O crítico e cinéfilo brasileiro Sérgio Alpendre, companheiro desde sempre desta nossa aventura e um belíssimo praticante da modalidade, apresentará o filme em vídeo. 

Martin Scorsese, quando lhe perguntaram em entrevista para a Rolling Stone, em 1990, por altura da estreia de Goodfellas, o que achava da censura nas artes, respondeu que "sou contra, obviamente. Sou contra essa merda seja de que tipo for. Pessoalmente, não gosto de muitas das coisas que vejo; são ofensivas, para mim — mas sou pela liberdade de expressão, obviamente. Em cada geração há ameaças a essa liberdade, e tem que se continuar a batalhar e a lutar. Quando à minha maneira pessoal de lidar com o assunto, não posso deixar ninguém dizer-me, "Não faças isso, vai ofender as pessoas." Não posso fazer isso. 

"Por um lado, quando se trata de um filme de Hollywood, isso significa que tenho que abordar um determinado tipo de tema que faça uma determinada quantidade de dinheiro. Se decidir fazer menos dinheiro, posso abordar temas mais arriscados. Portanto o único critério em que estou disposto a tomar riscos nos filmes é que seja verdadeiro em relação ao que se sabe ser a realidade que nos rodeia ou a realidade da condição humana. Se não se acredita, porque é que se faz o filme? Vai-se ofender as pessoas só para fazer algum dinheiro? Para quê? O dinheiro não quer dizer nada. O que interessa é o trabalho, o que está no ecrã. Eu não sou uma óptima pessoa que anda por lá destemida, a combater esta gente toda. Não pensei que isto tudo fosse mesmo causar problemas — muito menos o Taxi Driver. Com The Last Temptation of Christ, sabia que iam haver alguns problemas, mas essa é uma área especial para mim. Exijo mesmo que possa falar da maneira que sinto sobre o assunto, mesmo dentro da igreja, da igreja católica. Se estou a fazer uma produção mais comercial, como The Color of Money, é outra coisa. Torna-se um tipo de filme diferente, e acho que se nota a diferença. O meu novo filme vai ser outra coisa. É um filme comercial mais convencional para a Universal Pictures."

O Vincent Lauria de The Color of Money, Tom Cruise, em entrevista a Roger Ebert, falou sobre a sua experiência em trabalhar com Paul Newman, notando que "Ele não se excedeu para me fazer sentir confortável, ou desconfortável, ele é quem é. Eu estava nervoso quando fui fazer o filme - fico sempre nervoso no começo de alguma coisa nova - e cá estava Paul Newman, e eu tinha visto os filmes todos dele, e pensa-se nas personagens que ele interpretou - não só as fortes e bondosas, mas também os filmes como Slap Shot e The Verdict, com as personagens sujas, brutas e bêbadas. Ele tem um alcance tão grande. E quando o conhecemos, ele é inteligente, digno, muito elegante. Ele podia bem ter-me intimidado. Mas pôs-me à vontade. Aquilo com que se preocupa mais é a sua relação com o público. Quer que o público se relacione com ele. (...) Com a interpretação, não há truques do ofício. É o que eu penso. Aprende-se o básico de criar uma personagem, e faz-se o melhor que se pode. Ele nunca disse, 'É assim que se fazem as coisas.' Nunca armou o número do velho sábio"

Inácio Araújo escreveu uma pequena crítica sobre o filme para a Folha de S. Paulo, e cujas palavras valem também para Silence, que não tem sido muito bem tratado pela crítica mundial. Diz ele, no fim do seu texto, que "Scorsese é mestre em captar a vida de personagens quase marginais e delas trazer o belo e o feio, a poesia e a baixeza. Seguimos naquela tradição de Scorsese: quando seu filme sai, ninguém dá bola. Com o tempo, beleza e talento se mostram."

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Apresentação d'O Ano do Dragão, por Álvaro Martins

Year of the Dragon (1985) de Michael Cimino



por João Palhares

Uma cadência, em música, é o fim de uma linha ou de uma ideia melódica. Há-as de vários tipos: perfeitas, imperfeitas, interrompidas... E eu não conheço quem mais apaixonadamente fale delas do que Oleg Martirosov, professor de piano esloveno nesta nossa cidade de Braga. Elas revelam-se-nos por darem uma ideia de resolução e libertação, escondendo-se às vezes numa música por haver dúvidas lançadas pelos compositores em relação à sua tonalidade ou por haver vozes simultâneas em acção, linhas melódicas a atravessarem linhas melódicas, como no Das Wohltemperierte Klavier de Bach. Era assim que ele mais gostava delas, porque era preciso encontrá-las e realçá-las na interpretação, o que basicamente provava que não basta executar uma pauta mas é preciso compreendê-la e estudá-la profundamente e independentemente da técnica, que é sempre secundária. Descrevia mesmo algumas construções de cadências como passeios prolongados no Céu, em diálogos com os anjos no firmamento até se acordar e se descer à terra. 

Em Mahler, compositor da sinfonia da Ressurreição que se ouve em Year of the Dragon, para a qual dispôs os músicos numa grande elevação ao lado do coro e os fazia mover de vez em quando para os corredores atrás dos camarins para se ouvirem tocar ao longe (como se nos estivessem a chamar do outro mundo), as cadências parecem-se prolongar infinitamente e isso dá-nos ora a ideia de estar sempre em diálogo com os anjos ora a de embarcar numa travessia trágica e angustiante, sem vislumbre ou possibilidade alguma de libertação, presos no meio de batalhas entre vozes celestiais e tempestades retumbantes. Porque, como dizia Mahler, “uma sinfonia tem que ser como o mundo. Tem que conter tudo.” Isto atravessa toda a sua obra mas talvez se sinta mais profundamente no terceiro andamento da sexta sinfonia e no último da segunda, a da Ressurreição, sinfonia coral e total que demora uma hora e meia a interpretar. É este último andamento (o maior dos cinco) que Cimino usa por duas vezes no seu filme, libertando a sua veia viscontiana e fazendo uma das mais belas utilizações da chamada música clássica num filme, ao lado da de Bruckner em Senso por Visconti e da de György Kurtàg por Pedro Costa em No Quarto da Vanda

Cimino chegou a Mahler por meio de fins que rimam com princípios. Quando os Cahiers lhe sugeriram em 1985 que por começar e acabar o filme com um funeral dá a ideia de que tudo recomeça e se há-de repetir, ele respondeu que “não, não. Um novo início é sempre positivo. Stanley tem o mérito de ter revelado o problema. Tornou visível o lado oculto das coisas alcançando ao mesmo tempo um conhecimento de si mesmo. Encontra esta rapariga, a Tracy, e é um pouco a exemplificação do facto de que se se combate uma guerra durante muito tempo, acaba-se por ficar muito próximo do inimigo. É a morte de qualquer coisa, mas também o início de outra coisa. Foi por isso que me servi da sinfonia da “Ressurreição” de Mahler. Há qualquer coisa de majestoso no florescer de algo que renasce da morte.” 

Year of the Dragon é também “como o mundo”. Contém tudo, numa fervura que parece durar milhares de anos desde o aparecimento das primeiras dinastias chinesas, passando pela construção das linhas de caminho de ferro na América até estar mais perto do que nunca do seu ponto de ebulição nas próprias linhas de comboio (será coincidência?), num duelo a tiro de tirar o fôlego entre Stanley White (melhor papel de Mickey Rourke?) e Joey Tai (John Lone). Tudo, como funerais em que a namorada de White - Tracy, a jornalista - olha ressentida para as lágrimas de luto dele pela mulher como quem pensa que a ama mais do que a ela, ao operário chinês que se liberta da multidão de jornalistas para dar os seus sentimentos ao polícia, na sequência em que se ouve Mahler pela primeira vez e a ligação entre a imagem e a música provoca arrepios e sensações totalmente novos. Freiras letradas em dialectos chineses, Tracy em silhueta na noite de Nova Iorque, coisas perfeitamente banais como White a pôr o casaco na cadeira e Louis - o seu amigo de infância, saberemos muito depois - a pô-lo no cabide, primeiro sintoma de uma relação complexa de retiradas e investidas para o lado que cada um deles acha ser o da razão. Nada mau para quem disseram não saber construir um filme. E a cena em que Rourke põe o chapéu na mesa dos líderes da máfia chinesa, dá a volta, manda as suas bocas e quando a câmara corta para o lado de cá da mesa e o enquadra só a ele, pega no chapéu e sai porta fora? 

O virtuosismo técnico de Cimino é evidente, só que ele não o usa seja para fazer um policial banal seja para fazer um eficaz, inserido na grande tradição do género. Não, constrói um filme em conflito permanente mas porque o quer construir dessa maneira. A incoerência é só aparente porque a meta é outra. Sob o signo de Mahler, vai de cena em cena sem nos dar a hipótese de libertação a nós ou a Stanley, que com o seu instinto suicida só consegue atingir os que lhe são próximos, ficando para sofrer e se atirar para a frente das próximas balas. É uma cadência interminável mas trabalhada conscientemente, sendo inseparáveis o conteúdo e a forma. Conta-se que Rourke teve que seguir uma rotina física delineada por Cimino para aguentar a exigência do papel. E vendo-o entrar em cada cena numa pressa desesperada, batendo portas e movendo mundos, acreditamos nisso. Tanto que no fim do filme, quando Stanley entra de rompante na marcha fúnebre de braço partido e com gesso, ainda em batalha, com gritos na sua direcção, de cá e de lá, Cimino só pode acabar a sua história congelando a imagem, a única cadência possível. 

Volta a achar-se prodigioso o controlo de Michael Cimino nestas cenas que só podem ter sido ensaiadas e trabalhadas ao mais pequeno pormenor. E se o grande cineasta instintivo americano é afinal o mais laborioso dos artesãos? São coisas incompatíveis? Quando se deixar de discutir os conflitos de certos artistas com os seus mecenas e com o seu público (Griffith, Stroheim, Chaplin, Cimino) talvez se possam discutir e descobrir, finalmente, as coisas que interessam. 

O trabalho, só fica o trabalho. O resto desaparece. 

Foi o que aconteceu com Gustav Mahler.

sábado, 11 de fevereiro de 2017

47ª sessão: dia 14 de Fevereiro (Terça-Feira), às 21h30


Regressamos a Michael Cimino e às eternas questões no seu quarto filme, Year of the Dragon. Numa Chinatown recriada de forma extraordinária em estúdio, o americano atira-nos outra vez para a selva dos sentimentos e dos impulsos, dos avanços sem recuos e dos erros desmedidos e grandiosos.

Na nossa próxima sessão, Mickey Rourke atirar-se-á de cabeça num combate sem tréguas à máfia chinesa mas que parece fruto de um ressentimento profundo em relação a outras coisas, mais pessoais, ou enterradas no inconsciente dito colectivo, sobre outras guerras, perdidas nas décadas e nos séculos e que edificaram um país a ferro e fogo. Percámo-nos...

Para nos apresentar o filme, teremos Álvaro Martins, veterano da blogosfera cinéfila portuguesa e grande admirador de Michael Cimino.

Cimino disse a Marc Chevrie, Jean Narboni e Vincent Ostria dos Cahiers, a propósito do filme, em 1985, que "trabalhei durante muito tempo numa espécie de western sobre o papel dos Chineses na construção do caminho-de-ferro que liga o Panamá ao Alasca. Mas nunca se pôde realizar o filme. Por seu lado, sem que eu soubesse, Dino De Laurentiis interessava-se há vários anos por um projecto sobre Chinatown em Nova Iorque, e pedira vários argumentos com que não estava satisfeito. Quando Year of the Dragon foi publicado, ele comprou os direitos do livro e contactou-me com um argumento bastante fiel ao romance. Recusei porque não gostava verdadeiramente do livro; não acreditava na personagem. Só aceitei utilizar o livro como ponto de partida, imaginando uma história diferente, com o que ele acabou por concordar. Concebi Year of the Dragon de uma maneira semelhante à de The Deer Hunter. Começámos a preparação material do filme ao mesmo tempo que escrevíamos o argumento. Evidentemente que se trata de um princípio arriscado porque pressupõe que se tenha uma ideia precisa do aspecto visual do filme antes de o começar. Para The Deer Hunter eu tinha enviado o decorador à Tailândia com uma lista de coisas que ele devia encontrar antes mesmo de ter um argumento. Enviei outro para o Ohio, em Pittsburgh, outro para Washington também com uma longa lista. Foi a mesma coisa para Year of the Dragon. O lado positivo de tudo isto é que estando-se em contacto diário com as pessoas sobre quem se vai fazer um filme, temos a oportunidade de observar muitos detalhes, acumular mais informações que se podem, em seguida, incluir no filme. E Year of the Dragon é certamente o filme que mais beneficiou deste método e que mais se enriqueceu com ele, quer seja no sentido do lugar ou na profusão de detalhes."

Quando o filme saiu, Serge Daney escreveu que "Cimino fala muito do "sonho americano". Existiu alguma vez e, se sim, porque se perdeu inexplicavelmente? Surgiu então a questão do ressentimento: "de quem será a culpa?". A culpa é dos Vietnamitas, soprava The Deer Hunter. É a sua barbárie (de raiz) que "acordou" a barbárie dos soldados americanos. É o outro vietnamita o responsável pelo ideal US ser calcado aos pés. Como nos pátios de recreio onde ecoa o eterno "foi ele quem começou!". 

"Se (é ainda apenas uma hipótese) há uma decadência americana e se, como defende Octávio Paz, "ela constitui para eles [os Americanos] a porta de entrada na história", se mesmo "ela lhes traz o que eles sempre procuraram: a legitimidade histórica", Cimino é o cineasta que acompanha esta decadência e também o que a mais trabalha. Pela primeira vez, alguém conta a segunda história dos Estados Unidos. Uma epopeia, certamente, mas a do ressentimento. O fim do sonho americano liberta as tribos americanas. Algures, entre a reanimação ascética do sonho e a exibição folclórica das tribos, oscila Cimino. 

"Year of the Dragon é pois a continuação lógica de The Deer Hunter. Dez anos passaram e Stanley White (Mickey Rourke) é o polícia exaltado que "fez o Vietname" e que não regressou. Delirante mas metódico, conduzindo uma guerra pessoal, evidentemente racista. Porque esta guerra já não releva da metafísica conradiana (no fundo que "outro" inconfessável sou eu?) mas de um exorcismo securitário, de uma cruzada de polícia zeloso, tendo macerado em excesso o ódio de si mesmo."

Robin Wood, para o Cinejournal, escreveu que "o que é impressionante em Year of the Dragon é a sua recusa em tentar sequer resolver, reconciliar ou organizar de forma significativa as suas contradições: balança entre denunciações do herói e celebrações dele. O fracasso da interpretação central (não é culpa de Rourke) tem consequências que complicam ainda mais a reacção ao filme. Uma é que o vilão, Joey, dada a beleza física e a presença carismática de John Lone, se torna numa figura muito mais atractiva do que Stanley White - muito insidiosamente, já que ele é moralmente vicioso, um explorador sanguinário e impiedoso. Outra é que as personagens empáticas que denunciam e se opõem a Stanley - e são efectivamente vítimas dele - ganham força adicional. 

"O que é que aconteceu aqui? Sentimo-nos tentados a argumentar que Cimino, depois das audácias formais/narrativas de Heaven's Gate, foi forçado a recuar para os apertos e para a oclusão da narrativa clássica, e respondeu produzindo um trabalho cuja incoerência incorpora um protesto (seja consciente ou 'intuitivo') contra a imposição. Penso que não.... Comparem Year of the Dragon com To Live and Die in LA. O filme brilhante de Friedkin não tem nenhum dos problemas do de Cimino porque - com base nas reservas de niilismo e cinismo que foram um traço determinante do seu trabalho - ele é capaz de definir uma atitude perfeitamente rigorosa e coerente em relação ao herói individualista, e em relação à civilização da qual ele é um representante, uma de repulsa total. Cimino- para o bem ou para o mal - seria absolutamente incapaz de fazer tal filme. O percurso em direcção à afirmação tem sido essencial para todo o seu trabalho até ao momento, e ele tem o infortúnio de aparecer numa sociedade onde não há mais nada para afirmar. Ou, mais precisamente, tudo o que podia ser afirmado validamente era oposição construtiva, o desenvolvimento de uma ideologia radicalmente diferente, uma empresa da qual Hollywood, como sabemos, é e tem que ser inamovivelmente inimiga."

Até Terça!

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Harry & Son (1984) de Paul Newman



por João Palhares

Voltamos a Paul Newman, depois de Exodus e The Hustler, no mês de Junho. Voltaremos a ele daqui a duas semanas na sequela que Scorsese fez do filme de Rossen. Porquê tantas vezes? Foi coincidência, só escolhemos os filmes sem pensar de imediato em Newman, pensámos primeiro em Preminger, Rossen, Scorsese... Mas podíamos mesmo pensar nesses filmes sem pensar em Newman? O que nos levou a eles talvez tenha que ver com o que Robert Shaw arriscou dizer a Grover Lewis (um dos expoentes máximos do chamado "New Journalism") durante a rodagem de The Sting, sobre o seu colega de profissão: “não se pode definir este tipo de magnetismo que ele tem tal como não se pode definir a espécie de magnetismo animal que Olivier tem, ou um ou outro mais. Mas ele tem-no. Não sei exactamente o que é. Caralho se sei o que é, mas está lá com muita força. E, ah ... é uma qualidade que é tão poderosa que não sei de onde é que vem. Muitos bons actores nem sequer a têm, no entanto questiono-me a mim mesmo porque não sei se se tem vindo a construir até agora um bocado como um mito na minha cabeça. Quero dizer, eu não sei o que pensaria, sabes, se ele entrasse aqui quando tinha 18 anos ou coisa assim. Eu definitivamente não sinto, como actor, que ele esteja a dominar de alguma maneira, de todo. Digo francamente que o que ele faz me parece sempre melhor nas dailies do que acho na altura. Isso é por causa da própria qualidade de que estamos a falar. Há qualquer fotogenia—uma química. Que diabo é? Não sei,— mas ele tem-na certamente. Se Newman fosse um actor completamente desconhecido e tivesse duas linhas de diálogo num pastelão, destacava-se completamente." 

Também nós fomos atraídos como um íman por essa qualidade indefinível de que fala Shaw, mas se a carreira de Newman como actor atrai tanto as pessoas, o mesmo não se pode dizer da sua carreira de realizador, que é bem menos falada e discutida, tanto hoje como na altura. Mas está lá o mesmo fascínio, e os instintos químicos de Newman transportam-se para a realização, sabendo o que usar e guardar do trabalho dos seus actores na montagem final e como chegar a esse resultado durante a rodagem. John Malkovich e Karen Allen em The Glass Menagerie, todo o elenco de The Shadow Box. Joanne Woodward, a mulher de Paul Newman, tão diferente como a noite do dia, a madrugada do entardecer e do luscufusco, em Rachel, Rachel, The Effect of Gamma Rays on Man-in-the-Moon Marigolds, The Shadow Box, Harry & Son e The Glass Menagerie, cinco dos seis filmes realizados por Newman. Os trajectos dessas personagens e desses filmes são muito parecidos por descreverem, durante a sua duração, o que motiva as decisões importantes desta vida e a viragem que resulta de tudo isso. O milagre de The Shadow Box dá-se quando a personagem interpretada por James Broderick, Joe, diz à mulher que “I’m going to die, Maggie”, confirmando aquilo que já podíamos adivinhar ao ver as personagens de Christopher Plummer e Sylvia Sidney, situando finalmente aquelas cabanas como uma espécie de asilo para doentes terminais e, mais importante, convencendo-se por fim a si próprio dessa terrível realidade, que é aquilo por que se batem todas as personagens do filme, dos que vão ter que ir aos que vão ter que ficar. Que Newman tenha conseguido chegar a este momento e o tenha revestido dessa importância só atesta o seu enorme talento como observador e como realizador, que é o que é um cineasta. Como quando se parte o unicórnio de vidro em The Glass Menagerie e a personagem de Karen Allen se transforma. Ou como quando Harry lê a carta que o filho recebeu, percebe tudo o que não tinha percebido até àquele momento e se desfaz em lágrimas no carro. É no filme que hoje vamos ver, Harry & Son

Os subúrbios e os conflitos geracionais e familiares de Harry & Son podem-nos levar em muitas direcções: para Elia Kazan e Nicholas Ray, para o Actors Studio, para a política, para a história, para as injustiças no coração da sociedade americana, para as canções de Bruce Springsteen (como fez o Matheus Kerniski) ou para a obra de John Fante, que em nome próprio, como Arturo Bandini ou como Dominic Molise, queria a felicidade e o mundo e acabava por os encontrar onde menos esperava: numa misturadora velha que acaba por revelar o que de melhor havia nos homens (1933 was a Bad Year); numa lareira enorme e desnecessária mas que traz belas lembranças e segurança para o futuro e para o bébé que vem a caminho (Full of Life); numa escola primária que ficará até muito depois da morte de quem a fez com as próprias mãos, como testemunho da sua passagem por este mundo (Brotherhood of the Grape). Nestes três livros, aparecia também o seu pai, ora Nicola Molise, ora Svevo Bandini, ora mesmo com o seu nome, Nicola Fante. Empreiteiro orgulhoso, autor dos mais belos e resistentes edifícios da sua pequena cidade, que construiu com as próprias mãos, nunca aceitava completamente a decisão do filho em tornar-se escritor. E nestes termos, pai e filho discutiam e batiam-se em casa, transparecendo sempre o amor que tinham um pelo outro, por mais que o quisessem esconder. 

Também Harry Keach (a personagem de Paul Newman) tenta convencer o filho, Howard (interpretado por Robby Benson) a arranjar um emprego como deve ser, mas apesar de este tentar, para agradar o pai, as experiências nunca correm bem. Harry está a perder a vista e é despedido por causa disso. “It’s a real hoot. I wan’t to work and can’t, you can and don’t,” diz ele depois de Howard perder mais um emprego. Mas o filho continua na lavagem de carros e a martelar na máquina de escrever, acalentando uma carreira de escritor que parece não chegar a lado nenhum. Preocupado com as necessidades do filho a longo prazo depois de já não estar cá para cuidar dele, Harry não o consegue ver como o adulto que é, mas ainda como uma criança indefesa e estúpida que lhe bebe metade das cervejas e as deixa mortas no frigorífico. Talvez seja por isso que depois de Howard receber o cheque pelo seu conto, chamado “Harry” por causa do pai, de mostrar imensa coragem ao receber como seu o filho de Katie e se mostrar capaz de cuidar de si próprio e dos que ama, Harry finalmente possa ir para o outro mundo, tendo-se aguentado neste só para certificar que o seu filho dava conta do recado, como a personagem de Sylvia Sidney em The Shadow Box, que se aguenta apenas pela esperança de poder rever a sua filha. 

E Ossie Davis, Wilford Brimley (o Dr. Blair de The Thing, talvez o reconheçam), Ellen Barkin, Katherine Borowitz, Joanne Woodward, Robby Benson e Paul Newman estão em estado de graça para nos dizer que afinal é possível “dar aqueles pequenos passos na vida que podem levar a algo maior”, como diz Newman. Ou, como escreve John Fante, quando aprende a sua lição em 1933 Was a Bad Year: “peguei no rolo de dinheiro a voltei-me para a misturadora. Estava batida e martelava como as mãos do meu pai, uma parte da vida dele, tão estranhamente antiga, como se de um país distante, de Torricella Peligna. Pus os meus braços à volta dela e beijei-a com a minha boca e chorei pelo meu pai e por todos os pais, e fihos também, por estarem vivos nessa altura, por mim, porque agora tinha que ir para a Califórnia, não tinha escolha, tinha que me redimir.”

domingo, 5 de fevereiro de 2017

46ª sessão: dia 7 de Fevereiro (Terça-Feira), às 21h30


Paul Newman é um dos destaques da programação de Fevereiro. Já tinha estado no nosso Cineclube em filmes de Robert Rossen ou de Otto Preminger, e a personagem que veremos em The Color of Money, Fast Eddie Felson, o Hustler envelhecido e mais esperto do filme de 1961 é uma das suas criações mais complexas. Mas importa sempre recordar a sua breve mas fascinante carreira de realizador. Em seis obras, um olhar ultra sensível, puro e delicado, atento e fascinado, sempre a tentar ver e construir como numa primeira vez. 

Portanto eis a nossa próxima sessão, Harry & Son, de 1984, um conto de pai e filho, ou de Pais e Filhos, pela América interior e dura, de uma emoção e candura indescritível. Um pudor... uma distância... e a violência e ternura indissociáveis. Vamos então todos descobrir ou redescobrir o Paul Newman, Cineasta, que alguém algum dia disse que num mundo justo seria tão importante como John Cassavetes.

Matheus Kerniski, colaborador da Foco - Revista de Cinema, da espanhola Revista Lumière, da revista Filmologia e da Hatari! Revista de Cinema, apresentar-nos-á o filme em vídeo.

Newman falou sobre o seu primeiro filme, Rachel, Rachel, à Playboy, dizendo que "destaca o heroísmo não espectacular do tipo de pessoa em quem nem se repara se se passa por ela na rua.… pessoas pequenas que não projectam sombra nem deixam pegadas. Talvez consiga encorajar as pessoas que o vêem a dar aqueles pequenos passos na vida que podem levar a algo maior.… A ideia do filme é que se tem que dar esses passos, independentemente das consequências." Talvez se possa dizer o mesmo de Harry & Son e de todos os seus outros filmes.

Miguel Marías falou sobre Newman em The Intimate Gaze. Disse ele: "Escreveu-se muito sobre os olhos azuis do falecido Paul Newman. Mas é estranho que o seu modo de olhar para as pessoas e para as coisas através da câmara tenha despertado tão pouco interesse durante a sua vida. Newman realizou seis longas oficialmente de 1968 a 1987 (suspeito que também tenha tido uma mão em Winning de James Goldstone e WUSA de Stuart Rosenberg), o que implica que permaneceu inactivo atrás da câmara nos últimos 21 anos da sua vida. Não tenho maneira de saber—alguém o entrevistou sobre esta vertente do seu trabalho?—se Newman se sentia frustrado, se alguma vez teve algum projecto que não conseguisse financiar ou se se sentia simplesmente desiludido com a falta de atenção absoluta (para não falar de reconhecimento) que o seu trabalho como realizador conheceu. Tenho a impressão que em vez disso os seus esforços foram tratados como caprichos de estrela, sendo todos os seus filmes demasiado modestos e calmos—quase como os de Jacques Tourneur—para se arriscarem a ser acusados de megalómanos ou mesmo ambiciosos.

"Discretos, austeros, episódicos, hesitantes, lentos: Estas foram algumas das descrições (bastante condenatórias) que os seus filmes tiveram de críticos. Na melhor das hipóteses, eram chamados de delicados, sensíveis, ou sensatos, virtudes antigas mas antiquadas para o final dos anos 60 e ainda mais depois. O estilo dele foi considerado "comedido" (abençoado seja), indistinto visualmente, liso, tentativo, hesitante, ou padrão—particularmente quando fez The Shadow Box para a televisão em 1980. Os filmes dele foram todos adaptações de romances ou peças, tirando o original (co-escrito e co-produzido com R.L. Buck) Harry & Son (1984), supostamente o seu filme mais “pessoal” (e certamente não o seu melhor, ainda que muito bom). Que tenha substituído Richard A. Colla, como estrela e como produtor de Sometimes a Great Notion (aka Never Give an Inch, 1971) não ajudou à reputação desse filme bem interessante, já em risco porque lidava com uma família provinciana, o que não eram nem politicamente correcto nem baril. Além de se parecer um pouco como uma actualização de Ken Kesey de Spencer’s Mountain de Delmer Daves (1963), que se insere, afinal, na grande mas não muito popular tradição de How Green Was My Valley de John Ford (1941), este foi o único dos filmes de Newman como realizador sem a sua mulher de longa data, Joanne Woodward, no elenco. Estes dois foram também os únicos filmes que Newman realizou e também interpretou.

"Evitando sentimentalismos, histrionismos, e tours de force dramáticos, os filmes de Newman foram sempre calmos e serenos, independentemente de quão terríveis ou tristes fossem os acontecimentos que retratavam ou insinuavam. A maior parte das suas personagens não eram nem felizes nem ricos, mas nunca choramingavam ou davam palestras ao público. Newman olhava para elas de forma aberta e com compreensão, às vezes com uma compaixão escondida; os actores eram dirigidos com a mais precisa das flexibilidades. Mesmo estreantes ou actores mais velhos normalmente difíceis ou exagerados foram magníficos sob a sua orientação (Christopher Plummer em The Shadow Box teve o seu melhor papel desde Wind Across the Everglades de Nicholas Ray e esqueceu os seus maneirismos todos—a não ser "dentro da personagem"). Pareciam não interpretar, mas simplesmente existir à frente da câmara, que era sempre colocada à distância certa, acompanhando os seus sentimentos mais íntimos enquanto eram transmitidos ou revelados involuntariamente pelos seus olhos, movimentos, silêncios, pausas, ou gestos, nunca acentuados ou sublinhados por um corte ou um movimento de câmara."

Bruno Andrade também escreveu sobre Newman e sobre Harry & Son, notando que "não devemos tomar o cinema de Newman por algum tipo de espécime tardio do velho profissionalismo fabril. Se Newman é de facto um profissional, isso apenas o distancia mais daquilo que a sua profissão exige por volta de 1983, ano em que realiza aquele que talvez seja o mais belo registo de uma performance sua, O Confronto. Que uma interpretação dessas venha a conhecer a luz do dia - como também é o caso com as de Christopher Plummer e todo o elenco de Shadow Box, Lee Remick e Richard Jaeckel em Os Indomáveis, Joanne Woodward em Raquel, Raquel e A Influência dos Raios Gama no Comportamento das Margaridas - só mostra a que ponto Newman cineasta se tinha afastado das expectativas do público, portanto da indústria e do mercado, nos anos 80. 

"Falar de O Confronto é acabar enternecido por um sentimento de fragilidade, fragilidade eminentemente física por ser sensível à beleza do mundo, incapaz, portanto, de não se sensibilizar diante dos perigos e das catástrofes que rondam essa beleza. A tragédia de uma vida que sofre com a violência que num momento anterior foi a sua própria força é completamente encarnada pela interpretação de Newman, em todo o absurdo e obstinação desse personagem que é nada mais que uma força nos seus últimos momentos, uma força que morre, uma força em morte - como já vimos antes em The Shadow Box e Os Indomáveis, como mais tarde veremos em Algemas de Cristal. Na história de um pai que continua a adiar o momento da sua morte para poder ver o filho encaminhado, longe de um destino que se assemelhe ao que teve, vemos a expressão mais nítida de todas essas narrativas nas quais ao excesso de uma brutalidade perspicaz se opõe e uma fusão da ternura à inteligência (sentimentos que se combinam e se renovam prodigiosamente em todas as cenas do filme). A beleza discreta, sobriamente desconcertante do cinema de Newman nasce precisamente desse paradoxo: vemos um gesto de intensa brutalidade a completar-se num gesto de brutalidade afectuosa. E a riqueza, a variedade não acabam excluídas desse registo tão modesto centrado em diferentes polaridades de uma mesmo acção: da comicidade - a cena com a caixa de papelão em O Confronto, a irreverência generalizada que persevera mesmo diante das tragédias que acometem os personagens de Os Indomáveis e The Shadow Box - ao drama - a renúncia intermitente do momento que se vive e uma única forma sempre violenta, brusca e truncada de se voltar ao presente insatisfatório, do qual tanto Rachel como a pequena Matilda em A Influência dos Raios Gama no Comportamento das Margaridas desejam escapar - chegando finalmente ao trágico - o momento em que dos olhos de Harry escapa uma lágrima, consciência aguda de que com o filho encaminhado pode agora deixar que a morte lhe venha."

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

The Right Stuff (1983) de Philip Kaufman



por José Oliveira

Há uma cena decisiva nas três horas que dura The Right Stuff e nos vários anos e missões que aborda, e nem se trata de um raide visionário, de alguma catarse ou maravilhamento; visto agora, passados os conflitos diplomáticos em causa e as grandes corridas ao espaço, o momento em que o astronauta de Dennis Quaid está a ser entrevistado a propósito de ainda não ter sido lançado como os seus companheiros ou como o macaco, e não consegue dizer por um triz quem considera o melhor de todos os pilotos, expõe claramente a demanda que Philip Kaufman, o cineasta que se zangou com o escritor Tom Wolfe e com o grande argumentista William Goldman, ousou: contrapor o romantismo, o lado solitário e selvagem da verdade e da verdadeira causa ao espectáculo global do projecto Mercury que é tratado em registo que beira o documental, para assim se perceber que todos os grandes feitos que nos entram pelos olhos adentro através da monstruosa máquina de comunicação controlada para esse mesmo fim podem ter a sua raiz e fundamento na sombra, ou no deserto, na carne e na pulsão desse Chuck Yeager que percebe que o universo como testemunha é mais importante do que todas as parangonas ou luzes da ribalta. Corpo e alma respondendo ao apelo inflamável do demónio escondido nas alturas e não ao brilho do dinheiro e da fama. Se toda a grande arte pode ser uma oposição entre a ordem das ideias e a ordem natural, vamos acompanhar um tratado sobre a ordem intrínseca, ontológica, de um diletante, e a ordem do espectáculo de uma nação. 

Daí a estrutura e o movimento estranho e surpreendente da montagem de Kaufman: a primeira hora é praticamente um Western, crepuscular e no fim da linha como Sam Peckinpah soube fazer dolorosamente. E Chuck Yeager (Sam Shepard numa entrega e confiança calada à Eastwood) aparece como um escorraçado ou um retirado nesses outonos tardios (os incêndios, castanhos e os escuros pôr-do-sol confirmam esse sangue temperamental), a beber e a não se importar com o dia de amanhã, caçando raparigas em flor e estando perfeitamente preparado para mais um trabalho, que o irá fazer no seu melhor, mesmo com costelas partidas. Pela segunda hora, um pouco menos, aparecem os oficiais, o Estado, a presidência, assustados pela grande potência rival, no caso e nessa data a Rússia, poder ridicularizar a América roubando a bandeira do progresso e do pioneirismo. Aí a narrativa esquece por completo Yeager, focando-se no espectáculo, no circo, no concurso, misturando a sede de glória dos maçaricos como o referido Gordon Cooper ou profissionais bondosos como o John Glenn de Ed Harris. 

As tentativas de descolagem vão sendo feitas, os espiões entram em funcionamento, a ciência começa a medir as suas garras com o instinto e a prática, o famoso macaco ultrapassa os astronautas insuperáveis, e o fantasma de Yeager continua a não largar o mosaico, assombrando-o nos interstícios possíveis. Se tivermos em conta aquele instante de raiva onde o grupo reclama dos seus direitos e brio, até isso advém da recordação do solitário que só vislumbraram. E é essa grande, humilde e arriscada estratégia de Kaufman que produz esta dialéctica cáustica ou ambivalência reveladora da nossa noção de progresso ou modernidade: uma certa humilhação dos Heróis do Espaço a lutarem pelo segundo, terceiro e demais lugares depois dos Russos e do símio; a equiparação a esse mesmo símio, num embaralhar de toda a genealogia; as suas esposas a perceberem o jogo e a elevarem-se para lhes manter os desejos primitivos acordados; o azedume do episódio que acontece a Alan Shepard, que teve o azar de num determinado momento estabelecido pelo poder se transformar em pedra na engrenagem; Gordon a dormir antes de concretizar o seu sonho, uma das últimas imagens e imagem perfeita do heroísmo dúbio. E isto dita toda a posta-em-cena e sentido visual: quando finalmente se descola e se tem todo o espaço sideral e mais além para conquistar e maravilhar, o paroxismo estético de 2001: A Space Odyssey não entra em campo; muito já foi vulgarizado e o máximo que se arranja é uma actualização bastante conseguida do efeito Kuleshov - John Glenn e as maquetas a renovarem o poderio e a magia de Hollywood. 

E depois disso a outra história, o outro cinema, a loiça e o ouro que importa, sempre novo e experimental, lírico e estilhaçante, como se o legado de Peckinpah fosse como foi directamente para Michael Cimino. Yeager, afastado dos noticiários, volta a tomar conta do terreno ou do duelo, único cowboy possível, fazendo ver que o género americano por excelência tratava da terra, da ligação primeira e telúrica, ancestralidade e causa social despida de agendas políticas, combatendo-as até se chegar a outra situação, enquanto que esta nova corrida à última fronteira prefere a superficialidade e inutilidade da fama; e é esse bailado imaculado e celestial usufruído pelos astronautas na celebração triunfal que em fusão apreendida em Eisentein vai escancarar o que eles sabiam e não conseguiram dizer: quem a todos inspirou não tem o nome na História, nem dito à frente das câmaras televisivas, bicho-do-mato absolutamente moderno que irá fazer mover montanhas e possibilitar epifanias. Peckinpah, Cimino, Kuleshov, Eisenstein, mas também o registador Frederick Wiseman que ao ligar rotinas e universos opostos chega ao produto essencial, à essência que é Chuck Yeager e a sua moral. The Right Stuff é então sobre o material certo do tempo que trata, sobre as alegorias das cavernas, sobre os muros e raças de hoje, na nova América ou no médio oriente. Sem limites. 

Muitos outros filmes nasceram depois daqui, das propaladas superfícies fantásticas e do fatal fundo nostálgico da superação nossa – do Apollo 13 de Ron Howard até blockbusters sofisticados tipo Armageddon – alguns até bonitos e sinceros, outras vezes carregados de panache enjoativo ou encadernados a patriotismo balofo, mas nenhum complexificou como o petardo de Kaufman a vontade fulgurante do indivíduo e a necessidade de um colectivo num tempo e num espaço simbólicos. Marcado por bifurcações, ramificações e explosões, para dentro e para fora, como nos despojos de uma estrela cadente. Se tantas vezes se compartimentou a poesia, a ciência e a justiça, aqui temos tudo misturado e inteiro como num fresco, pela coragem do gesto. Uma boa viagem a todos.