por António Cruz Mendes
Na sua fase final, os filmes de Ozu evoluem no sentido de um despojamento formal cada vez maior. Em O Fim do Outono, grande parte da acção, pontuada pelos diálogos e pelos silêncios, decorre em espaços domésticos, rigorosamente ordenados pelas linhas ortogonais definidas pelos
tatamis e pelas portas deslizantes, filmados, como se de um palco de teatro se tratassem, por uma câmara imóvel posicionada a um metro do chão. Tal como nos diz Donald Richie, Ozu adoptou a “atitude do mestre do haiku que se senta em silêncio e observa, alcançando o essencial através de uma extrema simplificação”.
O filme, cujo enredo se resume em poucas palavras, retoma um tema que Ozu já havia tratado em muitos outros filmes (em Primavera Tardia, Verão Prematuro ou Crepúsculo de Tóquio, por exemplo) e a que regressará poucos anos mais tarde em O Gosto do Saké: a filha casa e deixa a mãe ou o pai sozinhos. Aliás, O Fim do Outono segue muito de perto a trama de Primavera Tardia, sendo que. aí, é o pai quem pretexta querer casar-se para que a filha, sem remorsos, se possa casar também.
O tema da desagregação da família, da separação dos seus membros, abordado como uma perda que somos obrigados a aceitar, mas que nos obriga a questionar a identidade e as obrigações morais de cada um dos seus membros, torna-se, na obra de Ozu, mais presente nos anos do pós-guerra e confunde-se com o da transformação da vida social no Japão então ocorrida. Por outro lado, o tema do envelhecimento e da solidão acompanha o próprio envelhecimento do realizador e manifesta-se numa visão nostálgica, desencantada, de um mundo que se vai perdendo. Um processo onde alguns reconhecem similitudes com o da evolução temática dos filmes mais tardios de John Ford, seu contemporâneo.
No entanto, podemos observar algumas diferenças significativas entre Primavera Tardia, de 1949, e O Fim do Outono, de 1960. Desde logo, porque, numa sociedade patriarcal, a obrigação “natural” da filha em relação ao pai não é a mesma quando é a mãe que está em causa. Aqui, a questão reside, sobretudo, na dificuldade de Ariko se libertar dos laços de evidente cumplicidade que a unem à sua mãe. Além disso, o filme confronta-nos com a forma muito pragmática como a separação da família é abordada por algumas das personagens mais jovens. O filho do senhor Hirayama, que tenciona casar, apoia sem reservas o casamento do seu pai com a senhora Miwa e explica-lhe porquê: “Quando me casar vais ficar sozinho e isso quer dizer que tens de viver connosco e a minha mulher pode não gostar disso, e tu não serias feliz”. E Yuriko diz à mãe da sua amiga: “No lugar dela, eu queria que tu te casasses outra vez porque assim eu não teria que tomar conta de ti”. Existem, portanto, diferentes perspectivas da mesma questão.
No Japão do pós-guerra, as velhas tradições ainda estão presentes, mas as transformações sociais são cada vez mais visíveis. Observamos como os amigos do pai de Ariko tomam nas suas mãos o propósito de “programar” o seu casamento, mas todos os seus planos são rejeitados e, de certa forma, ridicularizados. Afinal, é por intermédio de um amigo comum que ela acaba por se relacionar com o seu futuro marido e é a intervenção de Yuriko que acaba por desbloquear a situação criada por eles.
Porém, a questão crucial permanece. Ozu preocupa-se em desligá-la de causas sociais concretas para sublinhar a sua intemporalidade. Hoje, os dilemas com que se confrontam as suas personagens poderiam replicar-se naqueles que vivem muitas famílias quando são confrontadas com a necessidade de internar os mais velhos num lar de 3ª idade.
Por outro lado, em O Fim do Outono, a visão melancólica da vida que parece ser a de Ozu, a percepção aguda da sua fugacidade, é temperada com algumas notas de humor. Logo no início, o senhor Mamiya, chegado tarde à cerimónia fúnebre em memória do senhor Miwa, informado de que esta havia começado há pouco responde: “Então, cheguei cedo demais”. No restaurante da mãe de Yuriko, quando se discute o projecto de casamento de Hirayama com a senhora Miwa, ele, pressionado por Yuriko, compromete-se a cumprir a sua promessa (amá-la eternamente), mas, afinal, Yuriko referia-se ao pagamento da conta do restaurante. Há, ainda, a petite histoire dos pensos rápidos e comprimidos para a constipação que os amigos de Miwa iam comprar à farmácia para poderem ver a bonita empregada ou a conversa com a pouco atraente empregada de um restaurante acerca da provável longevidade do marido. E, no final, o senhor Hirayama, uma personagem algo risível, confessa sentir ter sido “um bocado explorado”… Os quid pro quo da estratégia casamenteira dos amigos do senhor Miwa, por vezes, parecem fazer resvalar o filme para o campo de uma comédia amena.
É neste irónico balanço entre situações cómicas e dramáticas que o filme se resolve. No final, o casamento de Ayako implica a separação da mãe e da filha. Akiko, tal como a personagem encarnada por Chishu Ryu em Viagem a Tóquio, terá que enfrentar a vida sozinha.