terça-feira, 19 de novembro de 2024

Black Midnight (1949) de Budd Boetticher



por João Palhares

(...) mas o velho respondeu apenas que era inútil falar de um mundo onde não existissem cavalos, pois Deus não permitiria tal coisa.” 

Cormac McCarthy, in «All the Pretty Horses». 

Por meados dos anos 30 do século XX, oitenta e cinco por cento dos cinemas norte-americanos apresentava sessões duplas. Era também uma altura em que praticamente dois terços da população do país ia ao cinema todas as semanas. Qualquer coisa como setenta e cinco milhões de pessoas, se o conseguirmos imaginar. As salas eram exploradas pelos grandes estúdios, como a MGM ou a Warner Brothers, o que quer dizer que estes controlavam os meios de produção, distribuição e exibição, todo o espectro da actividade cinematográfica, garantindo sempre uma sala para todos os seus filmes. Quando a segunda sessão se tornou uma necessidade por vontade do público, que nesses anos dependia do cinema quase como único entretenimento, abriu-se todo um novo mercado para a produção de filmes. Os grandes estúdios não conseguiam dar vazão à imensa procura de cinema, nem queriam relegar as suas grandes produções à segunda parte de uma sessão, portanto foram-se criando pequenas unidades nos estúdios e foram nascendo pequenas produtoras como a Republic Pictures, a Grand National Films, Inc, a Monogram Pictures e a Eagle- Lion Films, dedicadas a produzir filmes pequenos orçamentados entre 12,500 a 500.000 dólares (embora às vezes também se aventurassem nas grandes produções) que podiam fazer um pequeno lucro nas bilheteiras. E assim nasceu o filme de série B. Não um mau filme ou um filme barato, que talvez seja o que hoje mais se associe à expressão, mas um filme pensado como segunda parte para uma sessão e produzido neste contexto alargado que se tentou aqui descrever. 

Estes pequenos filmes tinham perto de sessenta minutos e inseriam-se em géneros americanos populares como o western, o musical e o policial. Eram rodados numa semana, preparados e terminados em cerca de seis. Para se poupar no orçamento, eram filmados ao ar livre ou em cenários mínimos. Para se poupar no tempo, condição não negociável porque no dia seguinte faziam-se as cenas que já se tinham predeterminado, podia haver entre sessenta a oitenta mudanças de posições de câmara e de equipamento de luz por dia. Utilizavam-se retro-projecções e imagens de arquivo na montagem, às vezes de forma muito inventiva. Se os guiões instruíssem que um actor abrisse uma porta, entrasse numa sala e acendesse um cigarro, os produtores corrigiam a cena colocando a personagem já na sala com o cigarro acesso. Os colaboradores eram atribuídos pelo estúdio, havendo alguma margem para a escolha do director de fotografia pelo realizador, sendo também os guiões atribuídos a quem estivesse disponível, embora quem já tivesse algum sucesso pudesse beneficiar de maiores orçamentos, escolher o material e até trabalhá-lo com mais tempo. Havia realizadores tão prolíficos que tinham de criar pseudónimos para continuar a fazer filmes. Restrições várias à parte, algumas delas já enumeradas, o realizador tinha toda a liberdade para experimentar o seu ofício durante a rodagem, fosse com enquadramentos fora do comum ou diálogos entre a luz e a sombra que faziam da própria pobreza de meios um dado narrativo. 

Este esquema das coisas[1], que durou cerca de duas décadas, foi produtivo para a maior parte dos envolvidos, dos criadores aos investidores. O pioneiro americano Allan Dwan, que desde o início do século vinte tinha trabalhado com todas as metragens e orçamentos, acabou a carreira na série B, onde devido às constrições acabou por inventar de novo o cinema numa série de filmes produzidos por Benedict Bogeaus nos anos cinquenta. Entre os grandes cultores da série B, e que nunca deixaram as suas fileiras, estão Kurt Newmann, George Sherman, Joseph H. Lewis e o enorme Edgar G. Ulmer, cujos talentos e ensinamentos não deixam de nos pasmar e ainda não foram totalmente estudados e compreendidos até aos dias de hoje. Os estúdios da chamada “Poverty Row” também foram importantes para iniciar certos cineastas no ofício, ajudá- los a entrar nos grandes estúdios, que estavam sempre interessados em novos talentos. Foi onde começaram Edward Dmytryk, Jacques Tourneur, Anthony Mann, Phil Karlson, Robert Wise, Richard Fleischer, Don Siegel e, chegando finalmente ao que nos interessa, Budd Boettcher, que nesses anos assinava ainda “Oscar Boetticher, Jr.” para não irritar o pai, que odiava cinema. 

Antes de realizar Black Midnight, Budd Boetticher trabalhou no Hal Roach Studios, depois na Columbia, onde foi consultor técnico de Rouben Mamoulian em Sangue e Arena e mais tarde assistente de realização de Charles Vidor em The Desperadoes e Cover Girl. Não creditado, realizou os últimos dois dias e os primeiros dois dias de rodagem de dois filmes de Lew Landers, Submarine Raider e U-Boat Prisoner. Assinou o primeiro filme, One Misterious Night, que foi estreado em Portugal com o título de O Diamante Roubado, em 1944, aos 28 anos. “Eu suspeito que as pessoas compravam muitas pipocas quando os meus filmes apareciam,” escreveu ele na sua auto-biografia[2]. “Fosse como fosse, Harry Cohn certificou-se que eu tinha os melhores operadores de câmara da velha guarda. Era suposto eles estarem lá para me ajudar, mas descobri cedo que eles estavam lá para me mostrar aquilo que sabiam e o quanto eu estava enganado em relação a tudo o que me propunha a realizar. Não me interpretem mal, eles eram todos uns cavalheiros. Mas eu era jovem, e verde como a erva, e presunçoso, e portanto eu e os meus idosos operadores de câmara nunca avançámos realmente ao nível de "amigalhaços". Eu inventei um sistema que funcionava. Quando um deles me questionava em relação a um plano que eu tinha pedido, eu simplesmente abanava a cabeça, dava-lhe uma palmadinha no braço, e dizia: "Não percebes mesmo o que é que eu estou a tentar fazer, pois não?" Depois virava-lhe as costas. Claro que a maior parte do tempo eles estavam certos e eu estava errado, e sentia isso. Mas estar errado como realizador de cinema pode- nos custar um naco de prestígio numa pressinha. Portanto fingi. Uns anos mais tarde um apresentador da televisão perguntou-me quando é que me tinha apercebido ao certo de que era um cineasta de pleno direito. Eu disse-lhe que foi logo a seguir ao meu décimo filme. Mas, com os diabos, eu fingi mesmo aqueles primeiros cinco com montes de falsa confiança.” 

Só não discordamos de Boetticher por puro desconhecimento dos seus primeiros cinco filmes, mas já descrevemos o sétimo, Escape in the Fog, como uma bizarria fascinante e inventiva regada a pesadelos e nevoeiros. O décimo, Behind Locked Doors, é um policial fabuloso em que um detective privado, contratado por uma jornalista, se infiltra como doente num asilo de loucos. Foi feito para a Eagle-Lion Films, em 1948, quinze anos antes de Shock Corridor de Samuel Fuller, grande obra com um ponto de partida muito semelhante. E o filme seguinte é Black Midnight, primeiro dos dois que fez com o jovem Roddy McDowall para a Monogram Pictures. McDowall interpreta Scott, um miúdo que vive com um homem que todos tratam por “Uncle Bill” e cujo filho fugiu há algum tempo para lugar incerto, farto da vida na quinta do pai. Sabemos isto desde os primeiros momentos do filme, depois de um primeiro plano fabuloso em que a câmara acompanha o “Uncle Bill” da cozinha até ao quarto de Scott, para o acordar, e depois Scott até à cozinha, para tomar o pequeno-almoço. Deslocado desde o início, seja por se sentir um mero substituto do filho de Bill ou por sentir também já o peso do trabalho de todos os dias, que ainda assim continua a realizar afincadamente, Scott vai-se afeiçoar a um cavalo selvagem trazido pelo filho de Bill, Daniel, que regressa de forma tão misteriosa como tinha partido, enquadrado pelos pés enquanto se aproxima do pai durante a festa organizada pela Sra. Baxter, primeiro sinal de uma tensão latente que continuará ao longo do filme e só se resolverá em pleno mesmo no final. O cavalo chama-se “Black Midnight”, é ele que dá o nome ao filme, e Scott deve ver nele algo de si, algo do seu sentido de isolamento no seio daquela comunidade. Quando Daniel decide que quer abater o cavalo, que não se deixa domar por ninguém e se mostra agressivo e perigoso para com as pessoas, Scott chega-se à frente e oferece todas as suas poupanças para ficar com ele e o tentar cavalgar. Não se deixa demover dessa missão nem quando Cindy, a filha da Sra. Baxter e prometida de Scott desde criança, parece favorecer os avanços de Daniel, nem quando o “Uncle Bill” parece tomar o lado do filho e lhe quer tirar o cavalo nos últimos momentos da narrativa. Numa sociedade e numa cultura que sempre favoreceu a ainda favorece os laços de sangue, não será um dado insignificante que Budd Boetticher tenha sido adoptado depois da morte dos pais quase imediatamente a seguir ao seu nascimento, pois não é nada comum ver um filme, americano ou não, em que a odisseia de uma criança adoptada em busca de respostas e propósito seja o tema central. Esse propósito vai ser “Black Midnight”, o cavalo negro que não se dá com ninguém a não ser com a ovelha negra da família Jordan. E é o laço que esses dois criam que resolverá todas as tensões deste filme, da reconciliação entre pai e filhos aos votos de amor renovados das duas crianças prometidas, outrora selado com um coração gravado nas rochas, particularmente evidente na cena em que o cavalo de Scott encosta o focinho à égua de Cindy e ele consegue finalmente cavalgar o seu cavalo negro, havendo ainda tempo para um confronto com um puma que ameaça “Midnight” e acelera o entendimento para a vida entre Scott e o “Uncle Bill”, agora sim o seu pai verdadeiro. Absolutamente admirável, absolutamente tocante para uma obra com 66 minutos apenas. 

Repare-se ainda nas belas sequências de planos que mostram Scott nas suas tarefas de todos os dias, sacrificando o seu tempo com Cindy e “Midnight” para tratar das galinhas e dos campos. Na cena da festa da Sra. Baxter, a certa altura uma das poucas aliadas de Scott, junto ao xerife, ouve-se a canção popular americana, “Cindy”, que se conhecia de Rio Bravo de Howard Hawks, realizado onze anos depois. O final do filme foi rodado nos Alabama Hills, na Califórnia, onde Boetticher rodaria mais tarde 7 Homens para Matar, The Tall T, Ride Lonesome e Comanche Station com Randolph Scott. Mas isso, como se costuma dizer, é uma história para outro dia. 
 
[1] Leia-se o livro fabuloso organizado por Todd McCarthy e Charles Flynn, «Kings of the Bs – Working within the Hollywood System», E. P. Dutton & Co., Inc., Nova Iorque, 1975. É a fonte de quase toda a informação recolhida para este texto sobre a organização da indústria norte-americana de cinema durante os anos trinta e quarenta. 
[2] «When in Disgrace», Neville Publishing Inc., Santa Barbara, Califórnia, 1989.



domingo, 17 de novembro de 2024

371ª sessão: dia 19 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


Esta terça-feira, o cineclube exibe filme rural de Budd Boetticher 
 
Em Novembro, o Lucky Star – Cineclube de Braga associa-se ao Cineclube Gardunha para trazer ao auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva um ciclo pensado pelo crítico e programador de cinema norte-americano Andy Rector. Com dois filmes de Phil Karlson e dois de Budd Boetticher, o novo ciclo intitula-se “Rural American Films - Filmes rurais americanos do período clássico”. 
 
Sobre o ciclo, Andy Rector escreveu que “a riqueza destes filmes está, obviamente, não apenas na estória dos seus Cavalos e da terra - não são filmes da natureza - mas na sociedade e nas culturas, na crueldade e nos amores, da humanidade em torno deles. Como Boetticher afirma abertamente em My Kingdom For, é “uma história visual dos nossos animais” e nós somos todos seus protegidos.” 

Esta terça à noite, será a vez de Budd Boetticher e de Black Midnight, filme produzido em 1949 pela Eagle Lion Films e com Roddy McDowall no papel de um jovem que assume como missão domar um cavalo selvagem, chamado “Black Midnight”, pelo qual oferece todas as suas poupanças. Foi rodado nos Alabama Hills, na Califórnia, onde Boetticher faria mais tarde 7 Homens para Matar, The Tall T, Ride Lonesome e Comanche Station com o actor e produtor Randolph Scott.
 
“Este é o primeiro filme de Boetticher rodado em Lone Pine, na Califórnia,” escreve Rector sobre Black Midnight, “uma paisagem que iria explorar ainda mais e imortalizar nos seus westerns Ranown com Rudolph Scott dos anos 50. O local, com as suas rochas salientes e batidas pelo vento (assemelhando-se geologicamente à Serra da Gardunha) e cenário do gigantesco Monte Whitney, comporta a simples estória de um rapaz órfão a amadurecer como jovem ajudante de fazenda (Roddy McDowell de O Vale Era Verde e Killer Shark de Boetticher) que está apaixonado pela vizinha e a tentar resgatar e domar um cavalo demasiado selvagem da eutanásia pelas mãos de um velho amigo da família que se corrompeu.” 
 
“O filme transborda das habituais cadências descontraídas e sem juízos de Boetticher,” continua. “Mesmo os seus homens maus são irmãos de boa índole –– permanecendo, em toda esta cordialidade, uma dura peça moral (para as personagens, não para nós, como numa fábula). Um filme doce sobre a vida comum (é impossível imaginar o assassínio, mesmo os cadáveres fora de quadro de Tall T aqui), Black Midnight deve ser um dos filmes a preto e branco mais verdes já feitos, certamente o mais verdejante em Lone Pine, com sequências empolgantes a céu aberto e puros voos a cavalo.” 
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. Durante o mês de Novembro a entrada é livre para todo o público.

Até Terça-Feira!

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Thunderhoof (1948) de Phil Karlson



por António Cruz Mendes

Thunderhoof é um western bastante atípico. Não vamos nele encontrar nenhuma referência à saga da “conquista do oeste”, a essa epopeia lendária onde se confrontam o bem e o mal, a lei e a desordem, a civilização e a selvajaria, que o cinema divulgou e ainda hoje informa o olhar dos EUA sobre o seu passado e explica algumas posturas presentes. 

Em vez disso, num território desolado, paisagens agrestes, terras áridas apenas percorridas pelo vento, onde condições mínimas de sobrevivência parecem permanentemente ameaçadas, desenrola-se um drama edipiano. 

Em cena, apenas três actores. Quatro, talvez, se considerarmos o protagonismo de Thunderhoof, um magnífico cavalo selvagem, um dos poucos que ainda percorrem aquelas terras de ninguém, figura de um simbolismo complexo que terá um papel determinante na trama da narrativa. 

Kid precisa de “matar o pai”, o velho Scotty que, há muitos anos, lhe salvou a vida quando o retirou das areias movediças onde se afundava. Uma história mais do que uma vez evocada, mas que é também uma alusão à pobreza e ao desamparo em que, presumivelmente, se encontrava the kid, “o miúdo”, quando Scotty o colocou sob a sua protecção. 

Mas, Scotty é ele próprio a areia movediça que impede Kid de se libertar e de se realizar como homem. A fuga é a sua primeira opção. Ela parece-lhe imperiosa, tanto mais que Scotty se encontra agora casado com Margarita, o seu amor de juventude. Contudo, essa saída está-lhe vedada. Scotty obriga-o a ficar, precisa dele para capturar Thunderhoof. 

Por ele, Scotty está disposto a arriscar a vida. Aquele cavalo que “meio México” tenta em vão capturar é a pedra basilar sobre a qual assentará o rancho onde vai construir um lar na companhia de Margarita. 

Margarita, também ela resgatada por Scotty de uma situação de pobreza, vê-se assim no centro de um triângulo amoroso. Não saberá Scotty da paixão de Kid? Com certeza que sim mas, em face disso, confiante no seu poder, adopta uma atitude sarcástica e desafiadora. O desejo do rapaz de nada vale ao lado da sua vontade. A tensão existente entre os dois rapidamente se exacerba, levando-os a confrontar-se numa luta travada à beira de um abismo. 

Numa cena ocorrida na casa abandonada, milagrosamente encontrada no meio de nenhures, equipada com tudo o que poderiam almejar, Kid, agora limpo e barbeado, toca guitarra e Margarita canta. Ambos fantasiam uma futura existência, longe de Scotty, de ranchos e de cavalos, numa idealizada Nova Orleães, cenário de festas e alegria. Scotty, no quarto ao lado, doente e com uma perna partida, ouve-os. Os seus sonhos e os de Kid só se poderão realizar com a morte de um deles. 

O final, muito deus ex machina, parece-nos forçado. Mas, em 1948, num filme produzido nos EUA, um desfecho menos conforme com a moral dominante teria que se confrontar com sérios obstáculos. Phil Karlson não soube ou, mais provavelmente, não quis travar essa luta. Ainda assim, deixou-nos a história magnífica de um “desejo selvagem” que, como os cascos de um cavalo que resiste a ser domesticado, ressoa “como um trovão” nas terras áridas e desertas do México.



sábado, 9 de novembro de 2024

370ª sessão: dia 12 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


Décima sétima longa-metragem de Karlson para ver na biblioteca 

Em Novembro, o Lucky Star – Cineclube de Braga associa-se ao Cineclube Gardunha para trazer ao auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva um ciclo pensado pelo crítico e programador de cinema norte-americano Andy Rector. Com dois filmes de Phil Karlson e dois de Budd Boetticher, o novo ciclo intitula-se “Rural American Films - Filmes rurais americanos do período clássico”. 
 
“Filmes rurais americanos sob o tema de 'For a Horse’ (“Por um Cavalo”) –– é um canto aparentemente pequeno do cinema mas com grandes implicações,” escreve Andy Rector sobre o ciclo, “representado nesta série por dois modestos realizadores americanos, Phil Karlson (1908-1982) e Budd Boetticher (1916-2001), que fizeram cada um vários filmes que lidavam de forma directa e reverente com as éguas e garanhões, potros e potrancas que inundaram o ecrã desde o nascimento do cinema.” 
 
Thunderhoof, do ano de 1948, é a próxima sessão deste ciclo, marcada para a próxima terça-feira à noite às 21h30. O filme centra-se numa caça a um cavalo selvagem através da fronteira pelo deserto mexicano e no triângulo amoroso que se forma durante a travessia entre o fazendeiro do Texas Scotty Mason, a sua esposa Margarita e o empregado, chamado “The Kid”. 
 
"Três personagens – um cowboy com uma certa idade, a sua jovem mulher e outro cowboy que o primeiro educou como se fosse o seu irmão mais novo – procuram o mítico Thunderhoof, um cavalo selvagem inabordável," conta-nos Jacques Lourcelles no seu Dictionnaire du Cinéma. "Acabam por encontrá-lo bastante rápido, capturam-no e, a partir daí, começam as suas dificuldades... Datando dos começos da carreira de Phil Karlson, esta odisseia minúscula é um western formalmente muito puro, um estudo de movimento em plena natureza, uma fuga para cinco cavalos e três humanos. Não sabemos se a aspereza dos locais, a beleza das paisagens e do animal cativo servem de contraponto aos problemas – um bocado fastidiosos pela sua complexidade – das personagens, ou se é o contrário. De qualquer das formas, parece que aos olhos de Karlson os cavalos são mais importantes, mais sábios e mais simples do que os homens; em todo o caso, aqui eles são mais numerosos, o que mesmo num western não é habitual!"
 
Discorrendo sobre os primeiros filmes de Karlson, o crítico espanhol Jesús Cortés escreveu que “dessas mais de vinte obras, por vezes de localização árdua e sempre com nula ou mesmo má fama, há as que têm grande interesse ou são prometedoras e não faltam as realmente valiosas e a ter em conta atrás das melhores da década seguinte. E depois há Thunderhoof." 
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. Durante o mês de Novembro a entrada é livre para todo o público.

Até Terça!

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Black Gold (1947) de Phil Karlson



por José Oliveira

Black Gold, o filme que hoje iremos vez, inaugura um ciclo programado em conjunto com o historiador e programador Andy Rector, idealmente concebido para se realizar em zonas rurais e preferencialmente ao ar livre. Filmes rurais americanos, assim chamamos aos quatro filmes do ciclo, realizados no período clássico do cinema por dois realizadores injustiçados porque ultra-talentosos: Phil Karlson e Budd Boetticher. 

Andy Rector define o ciclo assim, referindo-se somente a Karlson: «Ao fazer filmes no escalão económico mais baixo dos estúdios de Hollywood dos anos 30 e 40, com a Monogram Pictures e depois com a Allied Artists, Phil Karlson redescobre os chamados Great American Outdoor Film, numa certa linhagem com D.W. Griffith, Allan Dwan, Francis Ford e William S. Hart, filmando em locais reais e com um público rural em mente...» 

Para começar, fixemo-nos nesta jóia preciosa de 1947, que só precisa de ser mais vista para ser considerada um dos grandes filmes da história do cinema americano. 

A história: Charley Eagle, um nativo americano, adota um rapaz chinês logo depois dos brancos matarem o seu pai. Chegados ao rancho de Charley e da sua mulher, formam uma família. Pai e filho criam um cavalo, que se volve um grande cavalo de corrida, e a princípio são enganados pelos brancos. É então descoberto petróleo nas terras de Charley. Ele vende-as, fica aleijado num acidente industrial, fica rico e odeia ser rico. O rapaz chinês torna-se jóquei para que possam correr independentes. A partir daí, buscam uma redenção superior. 

Andy deixa-nos muitas dicas que permitem iluminar este filme tão simples e cristalino, abrindo ao mesmo tempo para toda uma complexidade e riqueza inomináveis: 
 
  • Trata-se de uma obra do chamado período progressista de Karlson, que inclui outros títulos complicados de ver, como The Big Cat ou Louisiana; o aspecto multicultural é sublime e em acordo com a vida; toda a história que acompanhamos é baseada no famoso cavalo de corridas dos anos 1920, chamado Black Gold e criado por Rosa M. Hoots, um membro da nação Osage, essa mesma que se tornou multimilionária depois da descoberta de petróleo nas suas terras, e que é a mesma nação (com a mesma história central do petróleo) do último filme de Martin Scorsese, Assassinos Da Lua Das Flores; Anthony Quinn, que por causa do petróleo fica aleijado, tem uma atuação lenta, com um falar estranho, «afetando um inglês estranho»; e Katherine DeMille, que faz de esposa deste, filha adotada de Cecil B. DeMille, entrega-nos uma atuação contida, como se estivesse a carregar a dor de uma vida, neste filme de órfãos errantes; e num período e num contexto em que os cineastas aceitavam muitos trabalho por dinheiro, indiferentes, Black Gold foi para Karlson um dos seus filmes mais pessoais, tendo filmado pelas diversas estações do ano, com interrupções para fazer outros seis filmes!, captando assim a mudança da paisagem e da natureza. E termina com um detalhe grandioso e fulcral: «um dos únicos filmes com crédito para um "Consultor Índio Americano": Nippo T. Strongheart.» 


Estamos perante um conto de bons sentimentos, onde se aprende muitas coisas, nomeadamente coisas práticas, e também a ver as coisas e os acontecimentos de diferentes perspetivas, de um ponto de vista outro que não o moldado pela cultura nefasta, apressada e argentária. Entre infinitas maravilhas, destaco: 

  • Charley Eagle, um ser selvagem, um puro índio, equiparável aos possantes cavalos e às forças intraváveis e intratáveis da natureza, desculpa-se assim à sua esposa, Sarah Eagle, por muitas vezes abandonar o lar comum: «as paredes encolhem e sinto necessidade das estrelas e do vento da noite.» 
  • Um ser puro que viu a família dizimada e que mesmo assim esqueceu a raiva, expurgou-a do seu coração; e que acredita que o seu país, os Estados Unidos da América, é grande e que nele podem viver brancos, índios, chineses... 
  • O mundo idílico no rancho que nos é apresentado logo após o índio Charley conhecer o chinês Davey, que também acabou de perder o pai e logo toda a família nuclear: os dois agacham-se para beber água puríssima de um charco luminoso, a esposa adivinha o regresso do marido muito tempo depois dele ter partido e tem a comida ao lume, os dois adultos percebem que adotaram um filho, e a mulher, na anuição final e uterina, confirma a decisão ao universo. 
  • Seguidamente o Pai ensina o Filho a perseguir o rasto dos animais e a reconhecê-los, faz-lhe saber da diferença entre formigas de montanha e formigas do pátio da escola, retirando uma moral primeira, mostra-lhe como funciona o exato relógio do sol, e transmite-lhe a importância fundadora das plantas; ensina-o ainda que o medo deve ser sempre olhado de frente. 
  • E, no seguimento disto, mostra-lhe um grande e esquecido segredo: a terra onde incontáveis índios foram dizimados e enterrados, fazendo-lhe ver que não há que sentir tristeza, num espaço que é tão sagrado como uma igreja, uma catedral. 
  • Charley é um inocente, um selvagem inocente, como Nicholas Ray percebeu ao ver este filme, chamando-o depois para a sua “obra homónima” (The Savage Innocents), alguém que consegue transformar o mal e a sua potência nefasta em bem, como no caso da ameaça do petróleo ou das falcatruas dos apostadores de cavalos, que facilmente o enganam. 
  • O caso da escola, da educação, e os procedimentos: a professora é tão boa, tão tolerante, tão disponível, que vai buscar Davey a casa, convence-o da necessidade da educação, do convívio e da fraternidade; tão boa que ama o magnata do petróleo que vai furar a quinta idílica de Charley, e que tal como o amado acredita que o dinheiro pode ser bom para essa família; e assim Phil Karlson, o realizador, não julga ninguém. 
  • Nesse encontro em casa está presente um juiz tão severo como compreensivo, muito parecido com esse interpretado por Spencer Tracy em Young America de Frank Borzage; e em Black Gold conheceremos imensos seres Borzageanos; juiz esse que esquece burocracias e constitui uma família que já o era e será para sempre, percebendo a total harmonia entre eles e o mundo harmónico em que se encontra. 
  • Inevitavelmente, o mal: o petróleo que suja as plantas selvagens e livres e as janelas do lar, e que só se torna aceitável para Charley por que lhe permitirá comprar outro cavalo, um puro-sangue, que permitirá perpetuar a têmpera de Black Hope. 
  • A nascença do potro redentor que permitirá a Charley vencer a “corrida das corridas”, não para contentamento seu, mas para redimir todos os nativos; e, nessa cena transcendente, com a morte de Hope, nasce e renasce outra esperança, Black Gold, e novamente o mal é transformado em bem. 
  • Cena que rima com a morte de Charley, no vislumbre e no sentimento da continuidade de todas as coisas, de uma inevitabilidade natural que tem de ser vista positivamente, em sereno estado de graça: outra morte sacra, enleada por cânticos além-túmulo, de todos os índios que passaram por aquela terra e dos que possivelmente passarão; morte vivida entre estrelas e ventos da noite. 
  • O efeito dos nomes dos cavalos em consonância com os acontecimentos, e em relação ao poder e ao mundo do dinheiro causado pelo petróleo: a esperança que é negra (Black Hope) e o ouro que é negro (Black Gold), e como tudo isso se interlaça, cruza, liga, religa, desfaz e refaz com os sucedidos e o significativo. Novamente, o nome a perdoar ao adjetivo, a qualidade a desculpar o facto, a reversibilidade que se gera conforme o olhar. Uma pedagogia da dialética.
  • A comicidade da grande festa em que Charley, a mulher e o filho são reis. A cumplicidade com a empregada indígena, os cinquenta anos que um homem tem de esperar para se habituar a sapatos de luxo, a vergonha e a dignidade tanto dos donos da casa como dos outrora rivais. 
  • A corrida final, em que de uma só vez se redime as muitas mortes dos protagonistas, dos seus povos, das diferentes raças, crenças, credos, unificando-se tudo na nação dos sentimentos elevados; e onde outra pessoa extraordinariamente boa, o treinador dos cavalos e amigo primário de Charley, diz ao miúdo que quando o animal estiver a ficar com medo, só tem de falar com ele, ternamente, com confiança. 
  • «Quero agradecer a todos os que estão aqui... ...e àquele que aqui não está.», é o discurso da esposa depois da vitória. Um mundo perfeito.



sábado, 2 de novembro de 2024

369ª sessão: dia 5 de Novembro (Terça-Feira), às 21h30


Phil Karlson e o seu filme rural esta semana no cineclube 
 
Em Novembro, o Lucky Star – Cineclube de Braga associa-se ao Cineclube Gardunha para trazer ao auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva um ciclo pensado pelo crítico e programador de cinema norte-americano Andy Rector. Com dois filmes de Phil Karlson e dois de Budd Boetticher, o novo ciclo intitula-se “Rural American Films - Filmes rurais americanos do período clássico”. 
 
Andy Rector descreve os filmes deste ciclo não como westerns, “mas filmes rurais, destinados a um público rural, filmes que re-descobriram as imagens em movimento dos “Grandes Exteriores Americanos" do início do cinema (numa certa linhagem com Griffith, Dwan, Walsh, Francis Ford, William S. Hart), sob a insígnia e os recursos duros do filme pequeno, o filme de série B nos cartazes.” 
 
Interpretado por Anthony Quinn, num dos seus primeiros papéis principais, e realizado por Phil Karlson em 1947, Black Gold será o primeiro filme do ciclo, a exibir na próxima terça-feira às 21h30. Também protagonizado por Katherine DeMille, filha adoptiva de Cecil B. DeMille, o filme foi rodado em exteriores ao longo de um ano para capturar a terra e as cores das estações com fidelidade. 
 
Sobre o filme e a produtora Monogram, Phil Karlson disse que “tive uma oportunidade para fazer lá um dos primeiros filmes, penso eu, em que se fazia uma afirmação social no ecrã. Eu nunca tinha conhecido este tipo e fui falar com ele. Nesses dias ele não era uma estrela, estava a interpretar papéis de índios, e era o Anthony Quinn. Então fui ter com o Tony Quinn e convenci-o a ele e à mulher a participar em Black Gold.” 
 
“Eu fiz uma afirmação tão forte que todas as nações índias a apanharam,” continuava Karlson. “Eles perceberam aquilo que estávamos ali a dizer. O indivíduo comum que ia ver uma longa-metragem naqueles dias ia para ver entretenimento. Nós não fazíamos afirmações, fazíamos polícias e ladrões e heróis e vilões. Mas olhar para algo e ver a verdade, para variar, era qualquer coisa de pouco habitual nesses dias.” 

Rector diz que Black Gold é “um dos poucos filmes com um crédito a um "consultor índio americano": Nippo T. Strongheart. Rodado em Cinecolor, um processo de cinema a cores mais barato que envelheceu de forma mais nobre que o Technicolor dominante, e não apenas por resistir ao desvanecimento.” 
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras às 21h30. Durante o mês de Novembro a entrada é livre para todo o público.

Até Terça-Feira!

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Em Novembro, no Lucky Star:




Juunt Pastaza Entsari (2022) de Inês Teixeira Alves



por António Cruz Mendes

Quando Inês T. Alves chegou à aldeia de Suwa, nas margens do rio Pastaza, ainda não sabia que ia realizar um filme. Não conhecia aquela comunidade. Aliás, era a primeira vez que visitava a Amazónia. Decidiu visitá-la porque, di-lo numa entrevista a Paulo Portugal, publicada no site Esquerda.net, “tinha vontade de estar só a viver e a aprender”. E assim foi durante o primeiro mês da sua estadia na aldeia Achuar, que se encontrava muito isolada, mas aberta a contactos com o exterior. Aí chegada, Inês, que já conhecia a sua professora primária, não teve dificuldade em relacionar-se com os seus habitantes e, sobretudo, com as suas crianças. 

Já havia feito um mestrado em cinema documental na University of Arts, em Londres, realizado algumas curtas-metragens, e trazia consigo uma câmara de filmar com um microfone incorporado. A dada altura, começou a registar imagens de tudo o que via. Impressionou-a sobretudo a autonomia dos mais novos, a liberdade com que viviam e a facilidade com que se relacionavam com a natureza. E foi das imagens que documentavam o seu quotidiano que acabou por nascer este filme. 

É claro que sabemos que os adultos estão na aldeia, mas eles surgem somente numa das últimas cenas do filme, talvez apenas para comprovar a sua presença. Todo o protagonismo cabe às crianças. Vemo-las livres, divertidas e amigas, a recolher frutos na floresta, a pescar, a cozinhar, a tomar banho no rio, a inventar os seus próprios brinquedos e jogos. 

Algumas das suas brincadeiras não serão muito diferentes das dos miúdos “ocidentais” e, desde logo, com eles, partilham do seu interesse pelos smartphones. Contudo, a electricidade e a internet chegaram há pouco tempo à aldeia e uma das questões que o filme pode levantar é a de saber que impacto poderá isso vir a ter no seu futuro. Por um lado, as novas tecnologias abrem-lhes outras possibilidades de contactar com um mundo exterior; por outro, todos sabemos que o telemóvel também pode ser um instrumento alienante. Para já, e segundo a realizadora, que voltou a visitar essa aldeia cinco anos depois de realizar Águas do Pastaza, e apesar de se conhecerem projectos de abertura de estradas de molde a facilitar o comércio dos madeireiros e da haver homens da aldeia a trabalhar fora do seu território, não parece que o seu quotidiano se tenha alterado substancialmente. 

Sabemos pelas imagens gravadas de uma conversa de Inês T. Alves com o público de uma projecção de Águas do Pastaza programada pelo Cineclube Vilafranquense, que, numa comunidade onde ainda não havia televisão, Inês T. Alves exibiu alguns filmes que trouxe consigo (documentários, filmes do Charlot e filmes de animação) e que isso despertou grande curiosidade e interesse, nomeadamente entre as crianças, que começaram logo, elas próprias, a gravar imagens com os seus smartphones. Inês permitiu-lhes mesmo experimentar a sua própria câmara, o que, mais tarde, passou a evitar por recomendação dos adultos, com medo de que as crianças a estragassem. 

A beleza da selva amazónica, do rio, das próprias crianças, transmite-nos uma ideia de harmonia, de paz e serenidade. Mas, não nos dará este filme uma visão algo idealizada da vida destas crianças? Nunca há, na sua vida, conflitos, zangas, momentos de tristeza, doenças, dor? Inês T. Alves, na entrevista já aqui referida, admite a hipótese duma visão algo romântica, utópica. Por outro lado, diz nunca ter sido seu objectivo fazer um documentário etnográfico. O filme nasceu do seu “breve encontro” com a vida dos miúdos que filmou e, de certa forma, também da maneira como elas reagiram ao facto de se verem filmadas: algumas das cenas de Águas de Pastaza foram sugeridas pelas próprias crianças que as protagonizaram. É, portanto, de todo merecida a galeria de retratos, dos seus rostos sorridentes, por vezes um pouco envergonhados, outras vezes inquisidores, com que termina o filme. 

A realizadora assume, tanto quanto possível, uma posição de observadora, deixando aos espectadores o cuidado de interpretarem o resultado das filmagens. No entanto, a citação de Agostinho da Silva que nos surge logo no início do filme (“As qualidades infantis deveriam conservar-se até à morte, como qualidades distintamente humanas – as da imaginação, em vez do saber, do jogo, em vez do trabalho, da totalidade, em vez da separação”) oferece-nos uma pista para uma possível leitura: Há características que geralmente se associam às crianças, mas que fazem parte da nossa essência como seres humanos. Algo que nas sociedades contemporâneas se poderá estar a perder, mas que importa saber resgatar.



quarta-feira, 30 de outubro de 2024

368ª sessão: dia 31 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Ciclo termina com longa-metragem de Inês T. Alves
  
Durante o mês de Outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe catorze filmes em parceria com os Encontros da Imagem, com sessões às terças e quintas-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. O ciclo adopta um termo cunhado pelo poeta e ensaísta Édouard Glissant, intitulando-se “Cinema Todo-Mundo - colonialismo e a memória do futuro”. 
 
Esta quinta-feira, às 19h, exibe-se Águas do Pastaza (2022), primeira longa-metragem da realizadora Inês T. Alves, que nos revela o dia-a-dia das crianças de uma aldeia que vive em simbiose com a natureza indomável da selva Amazónica. O filme faz-nos reflectir sobre o nosso modo de vida, numa perspectiva decolonial, e confronta-nos com os nossos preconceitos em relação à “alteridade”. 

Águas do Pastaza foi nomeado para os prémios Sophia de 2024, na categoria de longas de documentário. A realizadora estará presente na sessão para uma pequena conversa com o público.

Em entrevista ao site C7nema, relatando a génese do seu filme e a sua partida para a floresta da Amazónia, Inês T. Alves disse que "levei para lá material de cinema muito básico, até porque não sabia as condições que ia encontrar. Inicialmente, a minha intenção não era fazer o filme, mas depois de passar tanto tempo com as crianças, ficar fascinada com a vida lá e a forma como eles se relacionam com a floresta e recursos, o que captei começou a fazer sentido como um filme. 

"Tinha terminado o mestrado em cinema documental em Londres," continua a realizadora na mesma entrevista. "Fiquei um pouco farta da cidade, do meio urbano. Queria sair de lá e até da Europa, mas gostava de ir para algum lado onde pudesse aprender. Tinha o sonho da Amazónia e encontrei um casal que tinha começado um projeto educativo independente no local. Escrevi-lhes, eles explicaram-me como o projeto funcionava, o intuito dele, e como chegar lá. O mínimo de permanência nesta comunidade eram dois meses. (…) Fiz uma curta antes em Moçambique e foi muito intenso, por isso agora queria um sítio onde não tivesse de pensar em fazer um filme. Além disso, era um espaço desconhecido. Por isso, nem tinha uma ideia prévia de fazer qualquer projeto cinematográfico lá. Porém, depois de estar lá, do encontro com aquela comunidade, tive de o fazer."
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, esta quinta excepcionalmente às 19h. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Quinta!

Fordlandia Malaise (2019) de Susana de Sousa Dias



por Alexandra Barros

Fordlândia é uma cidade fundada por Henry Ford, no Pará (norte do Brasil), no final dos anos 1920, para os trabalhadores (agricultores, operários, engenheiros, ...) de um megalómano projecto agro-industrial da Ford Motor Company, cujo objectivo era produzir borracha, a partir do látex extraído de milhares de seringueiras. Cerca de um milhão de hectares da selva amazónica foi concedido pelo Estado Brasileiro à Ford. Centenas de hectares foram arrasados por fogos colossais, para o plantio massivo das árvores. A finalidade desta gigantesca operação era cortar os custos de produção dos novos automóveis Ford Modelo A. Ao tomar em mãos a produção da borracha necessária para o fabrico próprio de pneus, Ford contornava o monopólio que os ingleses e os holandeses tinham sobre essa matéria. Na época, a Grã-Bretanha e a Holanda dominavam o ciclo da borracha, a partir das suas colónias asiáticas, onde tinham vastas plantações de seringueiras, graças a dezenas de milhares de sementes que tinham sido retiradas furtivamente do Brasil (num tremendo caso de biopirataria, que viria a revelar-se extremamente ruinoso para a economia deste país). De acordo com Henry Ford, Fordlândia constituía uma missão civilizadora, um projecto que traria o progresso e um futuro melhor a um território remoto e aos seus habitantes, chegando a proclamar: “Não vamos para a América do Sul para ganhar dinheiro, mas sim para ajudar a desenvolver essa terra maravilhosa e fértil.”[1] A cidade foi dotada de boas infraestruturas e casas nos moldes das pequenas cidades dos Estados Unidos. Foi concebida para ser uma cidade-modelo (de uma sociedade estratificada), mas a população indígena não se adaptou: quer ao estilo de vida regrado que lhe tentaram impor (proibição de álcool, danças e outros costumes locais; vigilância omnipresente, ...); quer à comida enlatada enviada dos EUA, e servida dia após dia; quer à rotina de trabalho, sincronizada com os horários das fábricas dos EUA. Múltiplos choques culturais e biológicos (monocultura: “Plantaram as árvores muito próximas. Bastava uma ser atacada por parasitas, para a plantação toda ir por água abaixo, que foi o que aconteceu”[2]) conduziram o ambicioso projecto ao fracasso. 

A história de Fordlândia envolve algumas das grandes matérias de convulsão e reflexão dos séculos 20 e 21: colonização, lutas sociais, globalização, exploração do terceiro mundo pelo primeiro, ambientalismo, sustentabilidade, utopias que se transformam em distopias. O seu carácter extraordinário tem atraído, ao longo dos anos, a atenção de académicos, artistas[3] e um vasto público curioso. Por isso, é possível encontrar na web uma enorme quantidade de informação sobre o tema. De acordo com Susana de Sousa Dias, existem duas narrativas dominantes sobre o projecto: cidade utópica e cidade-fantasma. A realizadora foi tentar descobrir o que há para além destas narrativas, continuando a trabalhar as questões-chave das suas obras anteriores[4]: memórias fortes - as alimentadas pelo poder e fixadas em narrativas oficiais - versus memórias fracas - que tanto incluem as memórias das personagens consideradas “secundárias” ou “menores” (pertencentes, geralmente, às classes sociais mais desfavorecidas), como as narrativas incómodas, proibidas, polémicas. 

As primeiras imagens do filme são registos fotográficos dos primeiros tempos da cidade-modelo: os edifícios, as infraestruturas, fotos de grupo de colonizadores e colonizados, em poses canónicas. Estes registos foram realizados por fotógrafos ao serviço da Ford e fazem parte do respectivo arquivo. Inicialmente, cada imagem dá pausadamente lugar à seguinte. Ouvem-se trinados de pássaros e insectos florestais. Pouco a pouco, insinuam-se batucadas longínquas na banda sonora. Voltamos a ver as mesmas imagens, mas agora sucedem-se cada vez mais velozmente, em sincronia com a (agora tornada predominante) batucada brasileira. Quando o ritmo se acelera vertiginosamente, intercaladas com as imagens iniciais, entrevemos novas imagens: animais selvagens ameaçadores e hostis; rostos de indígenas, individualizados, em grande plano, em atitude desafiadora ou ganhando movimento (em câmara lenta); folhas de árvores salpicadas com as marcas de infecções letais; um veículo enterrado na lama; ... Uma encenação assombrosa da distopia latente na utopia de fachada. 

Seguem-se encantadoramente serenas imagens da cidade actual, vista do céu, produzidas por um drone que a sobrevoa. As imagens são acompanhadas de testemunhos orais de habitantes da cidade, que nunca vemos. Nestes testemunhos (recolhidos in loco), cruzam-se mitos ancestrais, lendas locais e histórias pessoais, que se vêm reivindicando como alternativas às narrativas dominantes. Para sublinhar a manipulação que sempre ocorre na construção da História oficial e “a natureza contraditória e enganadora do aparelho de poder”, Susana de Sousa Dias diz ter decidido “tirar partido do sentido de irrealidade do drone”, articulando “imagens que parecem fotografias mas afinal são imagens em movimento” com “imagens que parecem estar em movimento mas que afinal são fixas”[5].
 
Descemos então do céu para o cemitério. O cemitério de Fordlândia é uma imagem icónica das narrativas referentes à cidade-fantasma que prevalecem na web. Algumas dessas narrativas visuais são exemplos paradigmáticos do chamado “ruin porn”. Este termo designa um género de fotografia baseado no fascínio estético por ruínas. A fetichização de locais degradados, assente puramente na estética, ignora habitualmente o respectivo contexto e pouco ou nada revela dos motivos que conduziram à actual decadência, desvalorizando a história dos homens que os povoaram ou povoam. No caso de Fordlândia, as reportagens fotográficas contam sistematicamente uma meia-história, mesmo quando acompanhadas por uma (mais ou menos adequada) contextualização histórica. Atraídos pela fotogenia das ruínas de Fordlândia, são as imagens mais óbvias que os fotógrafos procuram, ignorando tudo o que é marginal à narrativa da cidade-fantasma. Nada nessa prevalecente representação de Fordlândia alude aos seus actuais 3000[6] habitantes. Para quem vê as imagens, sempre desprovidas de pessoas, é como se elas não existissem. No entanto, alguns trabalhadores da Ford decidiram permanecer após o colapso do projecto e os seus descendentes foram ficando. Foram-se-lhes juntando outras pessoas, de parcos recursos, vindas de localidades próximas, atraídas pelas casas abandonadas. Sobrevivem à custa de agricultura de subsistência, pesca e criação de animais. A economia local tem vindo, porém, a transformar-se, dado que nos terrenos da plantação falhada foram cultivadas grandes (e polémicas) áreas de soja, que se têm expandido desmesuradamente[7]. 

No final, o filme - até então a preto-e-branco - ganha cor. Uma criança dança num campo desportivo (a precisar de reparação) de Fordlândia, rodeado por campos verdejantes e árvores frondosas. A canção que se ouve é “Beija-Flor Verde”, de Marco Júnior Monteiro Brito, um dos habitantes da cidade, que tenta recuperar a abafada História e identidade cabocla. A canção integra os mitos e lendas escutados anteriormente. 

Prosseguindo o seu trabalho de confronto entre memórias fortes e memórias fracas, uma vez mais, a realizadora, deu palco às histórias que estão por contar, expondo os embaraços que a História construída pelos poderes dominantes sempre tenta ocultar.
 
[3] Fordlândia e Henry Ford foram inspiração para alguns elementos do futuro distópico descrito no livro Brave New World, de Aldous Huxley (1932). | O músico Jóhann Jóhannsson inspirou-se no projecto de Henry Ford, no álbum “Fordlandia” (2008, 4AD), que tem a ideia de utopia falhada como uma das suas principais linhas de criação. 
[4] Processo-Crime 141/53 – Enfermeiras no Estado Novo (2000); Natureza Morta: Visages d’une Dictature (2005), já exibido pelo Lucky Star; 48 (2010); Luz Obscura (2016). 
[5] Fordlandia Malaise: memórias fracas, contra-imagem e futurabilidade, Susana de Sousa Dias, Revista de Comunicação e Linguagens, 23/5/2020, https://rcl.fcsh.unl.pt/index.php/rcl/article/view/37 



Abrir Monte (2021) de Maria Rojas Arías



por Alexandra Barros

Em 1926, foi criado, na Colômbia, o Partido Revolucionario Socialista (PRS). O seu objectivo era começar a preparar uma revolução nacional para transferir o poder das mãos dos grandes proprietários de terras e meios de produção para o proletariado e camponeses, à semelhança do que se passara na União Soviética, em 1917. No início de 1929, os líderes do PRS acordaram que nesse verão tomariam o poder, actuando conjuntamente nas respectivas regiões. Numa povoação da região de Tolima, denominada Líbano, um grupo de revolucionários, auto-intitulado Los Bolcheviques del Líbano, em Tolima, prepara-se para participar no golpe. Por fim, o PRS decide que a revolução se iniciará no final de julho. Vem, no entanto, a saber que as autoridades nacionais estão ao corrente dos planos e a postos para neutralizar a insurreição; então, decide suspendê-la. O grupo de Líbano, Tolima é supostamente avisado, através de um telegrama, mas nunca chega a recebê-lo. Trezentos homens avançam para os principais postos do poder local, em 29 de julho, crendo que movimentos semelhantes estão a ocorrer em todo o país. Acto isolado, a rebelião não dura mais que um dia, logo vencida pelo poder vigente e dela “não reza a História”. Maria Rojas Arías fez este filme para resgatá-la do esquecimento e dar-lhe a relevância que acredita merecer. Foi a primeira guerrilla da América Latina de inspiração comunista, e além deste valor histórico, a realizadora considera que essa revolução seminal prossegue ainda o seu curso. 

Além de não haver um arquivo oficial sobre a insurreição, a população de Líbano, Tolima parece ter feito um pacto de silêncio sobre a mesma, na sequência do falhanço. Maria Rojas tenta descobrir os factos a partir de actas de reuniões do grupo de guerrilheiros e das memórias fragmentadas de quem viveu esses tempos. 
 
No filme, imagens de arquivo cruzam-se com imagens a preto e branco captadas pela realizadora em locais de alguma forma relacionados com o golpe. Mas ao transfigurar inusitadamente as imagens que captou - ora aplicando um intenso filtro vermelho (evocando as lanternas vermelhas usadas pelos revolucionários para se reconhecerem); ora introduzindo movimentos trepidantes ou giratórios; ora dando a ver apenas “pedaços” de imagens, descontextualizados; ora abstratizando as imagens (contraste de claros e escuros levados ao limite, por exemplo); ora recorrendo a enquadramentos tão fechados que deixam praticamente tudo fora de campo, ... - Maria Rojas constrói uma obra expressionista, em lugar de uma peregrinação guiada a lugares emblemáticos. Na impossibilidade de reconstituir de forma clara os acontecimentos, Maria Rojas criou uma colagem caótica de imagens obscuras que, na forma, reflecte as dificuldades da sua pesquisa e os resultados, necessariamente nublados, da sua investigação. Quando as imagens são acompanhadas por música, esta é áspera, dissonante, estranha, acentuando o carácter inquietante, fragmentário e impenetrável das composições visuais. A banda sonora é maioritariamente da responsabilidade de Sara Fernández, com contribuições de Lucrecia Dalt, duas artistas colombianas que fazem arte sonora e música experimental. 

As declarações que se ouvem em voz-off, foram escritas por Maria Rojas, entrelaçando testemunhos que recolheu in loco e dados recolhidos nas já referidas actas de reuniões. As palavras são ditas por vozes femininas para assinalar que as mulheres, geralmente omitidas das narrativas das revoluções, desempenham nelas imprescindíveis e meritórios papéis[1]. 

A simultaneidade de tempos que advém da forma como Maria Rojas mistura os seus diversos materiais (visuais, orais, auditivos, textuais, ...) é significativa. Através dela ressoa a convicção da realizadora: a revolução continua. Alexandra Barros 
 
[1] Fonte: entrevista a Maria Rojas Arias conduzida por Raquel Schefer, para DAFilms Conversations, 13/4/2023, https://www.youtube.com/watch?v=O2N2TyFsDrs



sábado, 26 de outubro de 2024

367ª sessão: dia 29 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


América do Sul em foco esta semana no cineclube 
 
Durante o mês de Outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe catorze filmes em parceria com os Encontros da Imagem, com sessões às terças e quintas-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. O ciclo adopta um termo cunhado pelo poeta e ensaísta Édouard Glissant, intitulando-se “Cinema Todo-Mundo - colonialismo e a memória do futuro”. 
 
Na próxima sessão desde ciclo, na terça-feira, exibem-se dois filmes, o primeiro Fordlandia Malaise de Susana Sousa Dias, cineasta que realizou vários documentários que exploram a temática da memória, tais como Viagem ao Sol, Luz Obscura, 48 e Natureza morta, este último exibido este ano pelo cineclube no âmbito do ciclo "50 Anos de Liberdade - Onde Estamos Nós no 25 de Abril". 
 
Fordlandia Malaise (2019) explora a decadência do empreendimento megalómano que a Empresa Ford implementou no Brasil em 1928, no seio da Amazónia, junto ao rio Tapajós. O plantio massivo de seringueiras e a construção de uma cidade obrigou à devastação da floresta, implantando-se um modo de vida e cultura hostil. Susana Sousa Dias explora a memória deste passado, recorrendo à imagem de arquivo e aos testemunhos dos habitantes actuais da cidade. 

"O filme tem uma história particular," disse Susana de Sousa Dias a Julia Fagioli em 2020, "porque foi um convite que me fizeram. Eu nunca tinha filmado fora de Portugal, e foi um coletivo artístico francês, o Suspended Spaces, que me convidou para ir com eles à Amazónia e, designadamente, a Fordlandia. Eles costumam trabalhar sobre o que chamam de espaços suspensos, espaços que foram edificados na modernidade e que não cumpriram propriamente os desígnios para os quais foram edificados e ficaram naquilo que eles designam por um estado de suspensão. Eu aceitei imediatamente o convite porque pareceu-me muito interessante o projeto, sobretudo porque no meu trabalho tenho me interrogado sobre aspectos ditatoriais ligados à ditadura portuguesa, mas também sempre na perspectiva de uma reflexão mais ampla, e aspectos do colonialismo. Nesse caso, estaríamos perante um empreendimento neocolonial, portanto isso interessou-me desde logo, trabalhar essa matéria. E depois, também, eu tenho – e esta é uma razão mais pessoal, mas eu tenho ascendentes na Amazónia, uma trisavó indígena, e precisamente daquela zona, ou seja, do triângulo Manaus-Belém-Fordlandia. Portanto, interessou-me muito, e foi a primeira vez que fui à Amazónia."
 
O segundo filme da sessão é uma curta-metragem de Maria Rojas, Abrir Monte, de 2021. O filme retrata a primeira guerrilha colombiana (1929), composta por um grupo de trabalhadores auto-nomeados “Los Bolcheviques del Líbano Tolima”, que se opôs ao governo conservador e à brutalidade policial, cuja violência espectral sombreia os planos de imagem em 16mm, narrados em voz-off pela anciã da vila e um grupo de mulheres no tempo presente, deixando transparecer que a luta não terminou. Esta sessão contará com a presença do produtor Ansgar Schaefer. 
  
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, esta terça às 21h30 e na quinta excepcionalmente às 19h. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Mandabi (1968) de Ousmane Sembène



por João Palhares

Percorrendo toda a história do cinema, se é que isso é possível, não se encontram muitos casos de realizadores cujos filmes tenham sido escritos por eles adaptando os seus próprios romances. Houve muitos romancistas que se tornaram argumentistas, houve muitos realizadores que escreveram os próprios argumentos, ainda há, mas a combinação romancista-argumentista-realizador é rara. Elia Kazan, com America, America e The Arrangement, adaptações dos seus livros homónimos dos anos sessenta, terá sido um dos primeiros, se descontarmos Marcel Pagnol e Jean Cocteau, que adaptaram algumas das suas peças ao cinema. Samuel Fuller escreveu e realizou os seus filmes, também escreveu romances, mas não realizou nenhuma adaptação de um romance seu, fez o contrário, novelizou uma obra que fez para a televisão (Morte na Rua Beethoven, editado pela Círculo de Leitores em 1989) e fez o mesmo com O Sargento da Força 1. Marguerite Duras é uma escritora muito conhecida, mas também realizou e adaptou para cinema várias das suas obras, como La Musica, Détruire, dit-elle, Jaune, Le Soleil ou India Song. Gordon Parks e Dalton Trumbo adaptaram The Learning Tree e Johnny Got His Gun, respectivamente, em 1969 e 1971, sendo o de Trumbo o único filme que realizou. E Catherine Breillat tem vindo a adaptar bastantes das suas obras para o cinema desde 1975, a última das quais em 2013, Abus de faiblesse

Nascido em 1923 em Ziguinchor, no sul do Senegal, Ousmane Sembène fez um pouco de tudo. Expulso da escola na sequência de uma disputa com o director, mudou-se para o Dakar aos dezasseis anos. Trabalhou como pescador, mecânico, pedreiro, foi mobilizado pelo exército francês e integrou os atiradores senegaleses, experiência traumática que incorporou num dos seus livros e que o tornou num anti-colonialista convicto. Foi estivador em Marselha durante dez anos e membro activo do partido comunista francês. Interessando-se pela escrita e pela literatura, começou a frequentar as bibliotecas da Confederação Geral do Trabalho e a seguir cursos oferecidos pelo partido comunista, publicando o primeiro romance, Le docker noir (“O Estivador Negro”), em 1956. “O partido comunista tinha muita força,” disse Sembène numa entrevista de 2004 a Michèle Levieux[1], “e o velho militante que há em mim deve dizer que foi o que me fez descobrir a literatura com os Cahiers du Sud, que se situavam em frente ao La Marseillaise[2]. Os meus primeiros textos foram editados pela Action poétique, que tinha publicado os poemas de Kateb Yacine e depois pela Présence africaine.” Da sua obra literária, foram publicados em Portugal Os pedaços de madeira de Deus, de 1960, pela Editorial Caminho em 1979, que foi reeditado pela Biblioteca Avante! em 2010, Xala, de 1974, pelas Edições 70 também em 1979, e O harmatão, de 1964, outra vez pela Caminho em 1983 

“Voltei a Dakar e viajei pela África,” contou Ousmane na mesma entrevista. “Queria conhecer o meu próprio continente. Fui a todo o lado ao encontro de povos, etnias e culturas. Tinha quarenta anos e vontade de fazer cinema. Queria dar outra impressão de África. Como a nossa cultura é oral, eu queria mostrar a realidade através das máscaras, das danças e da representação. A publicação de um livro escrito em francês chega apenas a uma minoria, enquanto que com um filme se pode fazer como Dziga Vertov, "Kino Pravda", cinema ambulante que permita discutir com as pessoas, debater ideias. Os melhores críticos são os do próprio povo.” Depois deste périplo africano, que durou um ano, Sembène foi ter com Georges Sadoul a Paris, conseguindo ingressar no Studio Gorki de Moscovo por intermédio de André Bazin. O cineasta soviético Mark Donskoi, conhecido pela trilogia de filmes que dedicou ao escritor Máximo Gorki, era o director da escola e foi também seu professor, junto a Serguei Guerassimov e Serguei Bondarchuk. Sarah Maldoror, realizadora do belíssimo Sambizanga, foi sua colega. “Todos me ensinaram que nada se consegue sem trabalho. Os melhores cineastas africanos, até hoje, foram formados na escola de cinema de Moscovo."

Mandabi é uma adaptação do romance do mesmo nome, também escrito por Ousmane Sembène. Descreve os muitos problemas que um vale postal de 25.000 francos enviado de França causa a Ibrahim Dieng, à família e à pequena comunidade que passa a depender do patriarca e a visitá-lo regularmente assim que sabe da notícia. Gradualmente, esse vale postal vai despertando a inveja e a mesquinhez de todos, facilitando muito a vida dos que menos escrúpulos têm em espezinhar os outros no processo, como os vários interesseiros que se oferecem para ajudar Ibrahim. Como disse Sembène noutra entrevista, “a corrupção não nasce com as pessoas. São as pessoas que cultivam a corrupção.”[3] O filme mostra-nos as consequências de um sistema burocrático herdado da França colonial, terrivelmente desenquadrado com as circunstâncias de vida de uma comunidade que se tem de endividar para comer todos os dias. O ritmo do filme, muito bem conseguido, permite-nos reparar em pequenos rituais como os cortes de cabelo na rua ainda no genérico inicial, as orações que todos proferem como vírgulas no seu discurso, mas que nenhum deus parece ouvir, os problemas que Ibrahim tem com a roupa que veste, ajeitando-a com as mãos a cada passo do caminho, ou os vários planos de pessoas com as mãos em colares de contas, subindo e descendo as pequenas esferas possivelmente para saber se o dinheiro vai chegar até ao final do dia. Um dos resultados de todo o processo é a encenação defensiva de um pequeno teatro das aparências, de se fingir que se é rico quando se é pobre, de “mentir para unir em vez de dizer a verdade para dividir,” de tirar um bocado aqui para pôr ali quando se tiver e esperar que ninguém repare no que quer que seja. E o vale postal revela-se mais caro do que aquilo que vale, levantá-lo equivale à penúria, portanto estamos com Ibrahim até ao fim e concordamos com ele quando diz que “vou deixar de ser decente. E também me vou converter num ladrão e num mentiroso.” Sobretudo depois de ver o engravatado mentir-lhe com todos os dentes quando ele está de joelhos a pedir-lhe o dinheiro que não lhe pertence. E, por fim, não resistimos a citar O harmatão, quando a páginas tantas se lembra que “(...) os ratos trabalham aos pares quando roem o pé da pessoa adormecida: um sopra e o outro rói. (…) O rato que sopra é a religião. O que rói é o imperialismo.”

[1] Publicada in «L'Humanité», 15 de Maio de 2004. 
[2] O Cahiers du Sud e o La Marsellaise são dois jornais de Marselha. O primeiro foi fundado pelo dramaturgo e cineasta Marcel Pagnol, com o nome de Fortunio, em 1914. 
[3] in «Rencontre avec Sembène Ousmane, écrivain-cinéaste sénégalais», publicado no Weekend, suplemento semanal do jornal senegalês Le Quotidien. Disponível no blog CinéAfrique.org: "https://archive.wikiwix.com/cache/index2.php?url=http%3A%2F%2Fblog.cineafrique.org%2F2009%2F08%2F27%2Frencontre-avec-sembene-ousmane-ecrivain-cineaste-senegalais%2F#federation=archive.wikiwix.com&tab=url" (consultado a 22 de Outubro de 2024).



quarta-feira, 23 de outubro de 2024

366ª sessão: dia 24 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Segunda longa-metragem de Ousmane Sembène para ver na biblioteca 
 
Durante o mês de Outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe catorze filmes em parceria com os Encontros da Imagem, com sessões às terças e quintas-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. O ciclo adopta um termo cunhado pelo poeta e ensaísta Édouard Glissant, intitulando-se “Cinema Todo-Mundo - colonialismo e a memória do futuro”. 
 
Na quinta-feira dia 24, às 21h30, exibe-se Mandabi de Ousmane Sembène, escritor e cineasta senegalês nascido em 1923 e falecido em 2007. A sessão será de entrada gratuita para todo o público e conta com o apoio da Alliance Française e do Institut Français du Cinéma. 

Em Mandabi, Sembène expõe a vida moderna do Senegal, abordando temas como o neocolonialismo e o capitalismo, as desigualdades sociais e a corrupção. Ibrahima Dieng vive no Dakar juntamente com as duas esposas e os 7 filhos. Desempregado e endividado, recebe uma ordem de pagamento emitida pelo sobrinho emigrado em Paris. 

Em 1968, em entrevista a Guy Hennebelle para a revista Jeune Cinéma, e face à pergunta sobre o que fazia antes do cinema e que idade tinha, Ousmane Sembène respondeu, "Oh, sou velho, muito velho. Nasci em 1923, em Ziguinchor, no Sénegal. Andei um bocado por todo o lado e exerci profissões muito variadas: pescador, pedreiro, mecânico. Fui estivador no porto de Marselha durante dez anos. Foi graças à União Soviética que me tornei cineasta. Passei um ano no Studio Gorki em Moscovo. Antes disso, tinha publicado vários livros a partir de 1956: Docker noir, Ô pays, mon beau peuple, Voltaïque, O harmatão. Em 1966, recebi o Primeiro prémio de romance no Festival des arts nègres em Dakar, por Vehi-Ciosane. Também foi nesse ano que a Présence africaine publicou Le Mandat do qual extraí a minha segunda longa-metragem."

"Nos países da África negra francófona (e noutros locais)," disse Sembène na mesma entrevista, "assiste-se actualmente ao nascimento de uma classe nova que não é tão composta por poderosos mas antes por intelectuais e quadros administrativos. É o surgimento dessa "nova classe africana" que eu denuncio. Já o tinha feito em Borom Sarret e La Noire de..., ainda que neste último filme estigmatize sobretudo o neo-colonialismo francês e o novo tráfico de escravos."
  
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, durante este ciclo às terças e quintas às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Quinta!

Moi, un noir (1958) de Jean Rouch



por João Palhares

Até há relativamente pouco tempo, não teria mais referências de Jean Rouch do que a memória de um professor que muitas vezes começava as frases com “Jean Rouch dizia...”, o que para um aluno talvez não seja a melhor das introduções a quem quer que seja, sobretudo se depois não se lembra das mensagens transmitidas. Mas a verdade é que o cineasta francês chegará muito provavelmente à maior parte das pessoas através dos conhecimentos que fez por esse mundo fora, das formações e ateliers que promovia um pouco por todo o lado e das relações que cimentou com museus, cineclubes e outros realizadores. Trabalhando sobretudo em África, influenciou Jean-Luc Godard, que disse que “Jean Rouch não roubou o título do seu cartão de visita: responsável de pesquisa no Museu do Homem. Existirá definição mais bela de um cineasta?” Trabalhou com Manoel de Oliveira nos anos noventa, o que resultou na curta-metragem En une poignée de mains amies, sobre a história do rio Douro e a relação dos dois homens com duas construções do arquitecto Gustave Eiffel. Já uns anos antes tinha apadrinhado presencialmente o doutoramento honoris causa do cineasta portuense na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, em 1989, na qualidade de presidente da Cinemateca Francesa, sendo ainda um dos primeiros divulgadores mundiais da obra de António Reis e Margarida Cordeiro, quando nos disse a todos, nos anos setenta, para deixarmos tudo e irmos ver Trás-os-Montes[1]. 
 
Através do seu trabalho etnográfico com equipamento portátil de 16mm no continente africano, inspirou centenas de criadores a fazer outro tanto em África, em França, em Portugal e inúmeros outros locais. O alcance do mais pequeno gesto deste homem que fez mais de cem filmes e amava acima de todas as outras as obras de Dziga Vertov e Robert Flaherty, é imenso. Depois do 25 de Abril de 1974, veio muitas vezes a Portugal através do Instituto Franco-Portugais, no Porto, dirigido pelo diplomata e adido cultural Jacques d'Arthuys, que também trabalhou com Rouch em Moçambique na realização de Makwayela, curta-metragem fabulosa de 1977 em que um grupo de trabalhadores fabris moçambicanos interpretam uma canção e uma dança sobre o trabalho nas minas da África do Sul durante a colonização portuguesa, e na produção de ateliers de filmagem em super 8, formato privilegiado encontrado por Rouch para o ensino da antropologia visual e que foi requisitado como programa de ensino do cinema pela FRELIMO a Rouch durante o Kuxa Kanema, como se pôde ver no documentário homónimo de Margarida Cardoso. Daí não ser estranho traçar uma linha imaginária por esse país fora, percorrê-la e ouvir alguém na Covilhã, no Porto, em Braga ou em Viana dizer num fim de tarde qualquer, “eu conheci o Jean Rouch”. 

Como se tinha visto em Les maîtres fous, Rouch costumava levar os seus filmes apenas com as captações das imagens e projectava-os em vários locais, improvisando uma narração durante a exibição, o que o permitiria ver também como melhorar o texto que depois usava na narração final, mediante as críticas ou os elogios que recebia. Esta liberdade de produção, também por si inspiradora, faz dos filmes matéria viva que se pode trabalhar em digressão e encontro com os outros, não sozinho numa mesa de montagem escura. Como é óbvio, não é a única forma de trabalhar. E terá também as suas contrariedades, pois a partir de certa altura as possibilidades e os caminhos podem ser tantos que se esquece o porquê de se ter começado. Mas lembra-nos aquele início do belo livro de Jerry Lewis sobre cinema, The Total Film-maker, que é sempre boa ideia transcrever e quase que apetece fazê-lo de ponta a ponta, portanto saiba-se: 

Onde começam? Não há tabuleiro de Monopólio. Nenhum "Comece. Não Passe pela Casa Partida". Eu acho que se começa por estar só lá, sendo curioso e ter a paixão por fazer filmes. 
Mais importante: façam filmes, rodem película, passem película. 
Façam qualquer coisa. 
Façam filmes. Filmem qualquer coisa. 
Não tem que ter som. 
Não tem que ter título. 
Não tem que ter cor. 
Não há "ter que". Fazer, só. 
E mostrem-no a alguém. Se é uma plateia de um, façam e mostrem, e depois tentem outra vez. 
Isto é o "como". 
Parece simples. 
Não é. E daí, talvez seja.” 

Terá sido talvez o rescaldo da longa produção e do longo lançamento de Les maîtres fous, com as suas tentativas e erros, com a sua recepção polarizada e inconsciente, com a sua montagem criativa, esclarecedora e estruturante, que impulsionou Rouch no sentido da antropologia partilhada e Moi, un noir parece ser um dos primeiros exemplos dessa corrente na sua obra[2]. Para começar, já não é só ele quem narra o filme, deixando-se aliás para muito segundo plano e cabendo a maior parte da voz-off a Oumarou Ganda, que também interpreta Robinson e começaria a realizar os seus próprios filmes a partir da década de 60. Depois, a própria criação do filme foi pensada em conjunto tendo como ponto de partida a imagem já montada de uma película 16mm Kodachrome sem banda de som, sendo a estória criada pelos próprios actores, desafiados por Rouch a dobrarem e comentarem os seus próprios actos no ecrã. As ideias e as acções que estão por trás deste método, no caso de Moi, un noir, parecem-nos bem mais sedutoras do que os resultados, que pelo menos num primeiro contacto, que pode não ser suficiente, não parecem conter as surpresas e os assombros imprevistos do melhor trabalho de Rouch. Mas a antropologia partilhada nasce outra vez da admiração do francês por Robert Flaherty, que na rodagem de Nanuk, o Esquimó quase perdeu o emprego e se viu confrontado com o mau material que tinha reunido em montagem. Perdera ainda parte das filmagens num incêndio. Decidiu voltar ao Quebec e, desta vez, ia mostrando o que filmava aos inuítes enquanto decorria a própria rodagem, levando para o efeito equipamento de revelação e de montagem. Jean Rouch elevou a parada, mostrando não apenas o material que filmava aos seus actores, mas tornando-os também colaboradores activos na pesquisa, nas traduções, na captação sonora, na escrita, na produção e na realização, esperando assim que as suas vozes fossem parte integrante dos seus filmes e que depois assinassem até os seus próprios trabalhos.

[1] “Allez voir, toutes affaires cessantes, Trás-os-Montes!”
[2] Não tivemos tempo para fazer um levantamento exaustivo da obra de Jean Rouch, portanto não sabemos se Baby Ghana, também narrado a dois, foi feito antes ou depois de Moi, un noir.



Les maîtres fous (1955) de Jean Rouch



por João Palhares

“Eu e os meus produtores concordámos que Les maîtres fous só devia ser mostrado em cinemas de arte e ensaio e em cineclubes,” disse Jean Rouch a Ousmane Sembène numa conversa de 1965 que se tornou histórica e importante por várias razões e foi publicada apenas dezassete anos mais tarde no no 34 da revista CinémAction[1]. “Eu não acho que filmes como esse devam ser mostrados a públicos grandes e desinformados sem qualquer tipo de introdução ou de explicação. Mas também acho que as pessoas em Les maîtres fous, com a sua cerimónia muito especial, nos oferecem um contributo primordial para a cultura global.” 

Segundo filho de Jules e Luce, Jean Rouch passou a infância e a adolescência entre o porto de Rochefort e Marrocos, de acordo com as incumbências do pai ao serviço da marinha francesa. Trabalha como estagiário na construção da ponte de Saint-Cloud, sobre o Sena, depois de um primeiro ano na École des Ponts et Chaussées. Em 1940, é mobilizado para a frente de guerra no leste de Paris, sendo desmobilizado no mesmo ano para acabar os estudos. De férias, no ano seguinte, toma a decisão de deixar a França com dois amigos, Pierre Ponty e Jean Sauvy. Engenheiro civil diplomado, tem as primeiras aulas de etnografia no Museu do Homem com Marcel Griaule e Michel Leiris. Parte para África ao serviço das Obras Públicas das Colónias, construindo estradas em Niamei, onde conhece o pescador sorko Damouré Zika, que o apresenta aos rituais do povo songai através da avó, Kalia, e se tornará seu colaborador em inúmeros filmes futuros. Realiza então as suas primeiras curtas-metragens, Au pays des mages noirs (1947), sobre um ritual de caça praticado por uma tribo sorko, Les magiciens de Wanzerbé (1948), centrado nas cerimónias colectivas praticadas por feiticeiros que protegem as aldeias no Níger, Initiation à la danse des possédés (1949), ambientado em Firgoun e descrevendo danças de possessão como meio de entrar em contacto com os deuses, Circoncision (1949), em que documenta a cerimónia iniciática da circuncisão entre os songai, Cimetières dans la falaise (1950), sobre os rituais fúnebres dos dogons em Mali, Bataille sur le grand fleuve (1951), descrição fabulosa, violenta, triste e doce da caça ao hipopótamo no rio Níger ao longo de seis meses e Yenendi – les hommes qui font la pluie (1951), documento da cerimónia anual em que os songai pedem água para as colheitas aos deuses do céu. 

Os irmãos Lumière mostraram os seus filmes no Egipto, na Líbia e na Tunísia menos de um ano depois da sessão inaugural do Salon indien du Grand Café, em 1895, enviando também Alexandre Promio para filmar Sousse. Marché aux charbons (avec chameaux) (1896), Rue Bab-Azoun (1896), Place du Gouvernement (1896), Descente de la grande pyramide (1897) ou Egypte, panorama des rives du Nil (1897), entre muitos outros panoramas e vistas de África. Segundo Jean Rouch[2], que dividiu o cinema africano em cinco tendências mais ou menos cronológicas (“A África Exótica”, “A África Etnográfica”, “A África em mudança”, “O verdadeiro cinema africano em embrião” e “O cinema africano por e para africanos”), houve um ilusionista que roubou um animatógrafo do teatro Alhambra, em Londres, e o usou para introduzir o cinema na África do Sul ainda no século XIX. Tanto o Egipto como a Tunísia veriam nascer grandes indústrias de cinema durante o século XX, mas nas colónias francesas os africanos eram proibidos de filmar pelo Decreto Laval de 1934, revogado apenas em 1960 quando as colónias se tornaram independentes. 

“Esta invenção maravilhosa que suscitou tamanho deslumbramento também me deixou ciente de inúmeras coisas,” escreveu um escritor egípcio anónimo sobre uma dessas sessões dos Lumière[3], “sendo a mais importante a de que apreendi o segredo do progresso dos estrangeiros. Descobri que nós não seríamos menos do que eles se tivéssemos os mesmos materiais, e se, como eles, relacionássemos o trabalho com a ciência e ligássemos o material ao imaterial.” E abaixo da linha do Saara? Até ao surgimento do cinema africano por africanos, na chamada África tropical, e cujas figuras de proa poderão ser Ousmane Sembène, do Senegal, e Souleymane Cissé, do Mali, o cinema africano era feito por europeus, melhor ou pior intencionados, com maior ou menor sucesso, e que quando tudo se conjugava conseguiam lançar um olhar desimpedido sobre o que se passava, sem ditames ou convenções coloniais. Segundo Jean Rouch, seria este o caso de O Cruzeiro Negro (1926) de Léon Poirier, um relato da expedição automóvel entre o norte e o sul do continente africano organizada por André Citroën em 1924-25, e Voyage au Congo (1928) de Marc Allégret, média-metragem documental resultante de uma viagem que o realizador francês fez em 1926 com André Gide, que escreveu também dois diários sobre o acontecido, Voyage au Congo e Retour du Tchad, publicados pelas Éditions Gallimard em 1927 e 1928, respectivamente.
 
Em 1937, foi inaugurado o Museu do Homem. Descendendo directamente do Museu de Etnografia do Trocadéro, fundado em 1828, é uma instituição dedicada à reunião de tudo o que define o ser humano em termos de evolução, unidade, diversidade e expressão cultural e social. Com a acessibilidade crescente de câmaras portáteis de 16mm (muito utilizadas pelos serviços de terreno do exército durante a 2ª Guerra Mundial, por exemplo), iniciou-se um movimento composto por jovens saídos das forças armadas da Resistência que se reuniu em torno do Museu e começou a registar músicas, rituais e cerimónias um pouco por todo o mundo. O século XX, justa ou injustamente, acelerou a evolução de todas as sociedades e de todas as coisas, tornando-se imperioso salvar manifestações culturais em vias de extinção, e o cinema era o meio privilegiado para o fazer. Daí a importância do trabalho que Marcel Griaule, Jean d'Esme, G. H. Blanchon, Luc de Heusch, Henry Brandt e o próprio Jean Rouch levaram a cabo no continente africano. No fundo, descobriram que todos temos a responsabilidade e sobretudo a oportunidade de fazer com que certas coisas não se esqueçam, e que o trabalho pode começar mesmo em casa, ao virar de uma esquina. Sobretudo neste novo século, mais propenso ainda ao esquecimento. 

O movimento Haouka é um movimento religioso que começou no Níger como forma de resistência ao regime colonial francês. Compõe-se de cerimónias em que os participantes mimetizavam os ocupantes do seu país, praticando coreografias militares e entrando num transe que permitia que os espíritos dos colonos se apoderassem por sua vez dos seus corpos. Segundo alguns antropólogos, as cerimónias serviriam para ridicularizar os colonos e para lhes roubar os poderes. Segundo outros, para os haouka conquistarem direitos e estatuto no interior da sociedade colonial e industrializada, para ganhar o respeito dos europeus. Entre as personagens da cerimónia, contam-se os espíritos de Capral Gardy, cabo da guarda, Samkaki, condutor das locomotivas, o capitão Malia, capitão do Mar Vermelho, a Sra. Lokotoro, mulher do médico, o tenente Malia, tenente do Mar Vermelho, o governador, a Sra. Salma, mulher do tenente Salman, um dos primeiros oficiais franceses a chegar ao Níger em finais do século XIX, o general, o soldado Tyemoko, o Secretário Geral, Maymota, o caminhoneiro e o comandante Mougou, o comandante mau. 

Les maîtres fous, filme de Jean Rouch sobre esta cerimónia, ganhou o primeiro prémio de filmes etnográficos, geográficos, turísticos e folclóricos do Festival Internacional de Veneza de 1957. Mas também foi banido pelo governo britânico, que além disso já tinha prendido haouka nos anos trinta por terem imitadohomens brancos. Elogiado por Jules Dassin, que disse que era “um filme apaixonante” e pelo antropólogo e realizador belga Luc de Heusch, a curta teve uma recepção desastrosa numa primeira apresentação no Museu do Homem, onde várias personalidades do mundo do cinema e da etnografia a consideraram racista (entre as quais o antigo professor e colaborador de Rouch, Marcel Griaule, e o cineasta senegalês Paulin Soumanou Vieyra). Nesta altura, Rouch improvisava uma narração sobre uma projecção muda, e aquilo que era dito não estava ainda devidamente transcrito nem traduzido. Contactado e apoiado pelo produtor Pierre Braunberger, o cineasta francês conseguiu que um dos participantes do filme, Moukalya, “o homem tranquilo”, lhe explicasse o que é que os haouka diziam. Mas as reacções extremadas ao filme continuariam ao longo das décadas. “As pessoas tinham-se enraivecido por razões opostas,” disse Jean Rouch em 1996, “os brancos não podiam admitir que a sua imagem fosse interpretada por africanos que os mostravam de forma deprimente e aterradora ao mesmo tempo, e os negros não suportavam, por seu lado, o final do filme em que as pessoas estavam cobertas de sangue. Para uns, era um filme sobre os selvagens, e para outros um filme insultuoso!” 

Talvez não seja surpreendente que um filme que tenha como objecto uma dupla possessão dos brancos pelos negros e dos negros pelos brancos, que seja fruto do olhar de um francês sobre África e que veja essas mesmas dicotomias e esses mesmos diálogos ilustrados e sintetizados num corte na estrada em que uma carrinha preta se transforma numa carrinha branca, além de conter nele actos bastante violentos que podem ferir bastantes susceptibilidades – como qualquer grande filme, apetece dizer –, permaneça controverso. Mas é o retrato sincero de uma encenação muito complexa e revoltada, que abriu a Jean Rouch um mundo novo no domínio da montagem (processo que, para este filme, durou três meses e contou com Suzanne Baron, montadora de Jacques Tati) e marcou um ponto de viragem na sua carreira, momento a partir do qual começou a pôr em causa as suas próprias narrações e o lugar dos homens e mulheres que escolheu como modelos, oferecendo-lhes desde então o cinema como meio de luta e de afirmação.

[1] Revista de cinema fundada por Guy Hennebelle e Monique Martineau em 1978.
[2] in «The Awakening African Cinema», The Unesco Courier, Março de 1962. 
[3] Citado in «Alexandria, Why? II. The Beginnings of the Cinema Industry in Alexandria», disponível no site «Alex Cinema»: https://www.bibalex.org/alexcinema/historical/beginnings.html (consultado a 13 de Novembro de 2024).