O Japão do pós-guerra traz inúmeras dificuldades a um país extremamente fragilizado, não só pelo combate, mas também pela derrota. A sociedade da década de 1950 não sai ilesa, aliás, a sua profunda reestruturação e agitação levam ao renascimento de um país e povo bastante distantes do passado. O filme de Tomu Uchida é testemunho desta transformação, cujas personagens encarnam o rebuliço da época, submergida numa modernização que leva à construção de um novo Japão, agora subjugado às circunstâncias de uma nova ordem mundial. Uma das personagens do filme resume-o de forma muito sucinta: “o Japão atual é essencialmente uma colónia americana.” Esta frase, proferida pela personagem mais amoral do filme, exemplifica o turbilhão de um país transformado, arrastando o seu povo para tempos modernos em cidades modernas com problemas modernos. Mas entre o barulho ensurdecedor das máquinas e dos aviões, do ruído do ferro e do betão, a verdadeira desgraça no filme de Uchida é o de uma família que não se consegue ouvir. E pior ainda, que não quer.
O filme trata sobre uma jovem de Tóquio à procura da sua independência chamada Tamiko [interpretada pela atriz Mie Kitahara, uma cara familiar antes vista pelos espectadores deste cineclube no filme A Lua Ascendeu de Kinuyo Tanaka]. Ela mora com o seu irmão acamado Junjiro e ambos ficaram à tutela da sua madrasta, Nobuko, depois da morte do sei pai [esta última é interpretada por Yumeji Tsukioka, cujo papel em Para Sempre Mulher de Tanaka arrebatou os nossos sócios no que foi um dos melhores filmes exibidos no ano passado]. Nobuko é uma viúva na casa dos quarenta, e os seus enteados aparentam ser recém-chegados à vida adulta, pelo que a diferença de idades não deve ultrapassar as duas décadas. No entanto, a diferença entre estas gerações relativamente próximas não podia ser mais vincada, e parece existir um fosso irreparável entre os membros desta família. Tamiko resiste a todas as tentativas da madrasta que a tenta convencer a casar, e Junjiro, embora confinado à sua cama, dedica o seu tempo ao jogo da bolsa de valores, amargurado pelo fim de uma relação amorosa.
Para complicar mais as coisas, um dos pretendentes de Tamiko, o deplorável, mas abastado Dr. Ihara, assume o seu interesse por Nobuko, embora faça questão de continuar a cortejar Tamiko, que por sua vez nutre sentimentos por Komatsu.
Esta situação familiar é ainda mais agravada por um mal simultaneamente antigo e moderno: o dinheiro. Quando Tamiko vende uma das últimas propriedades da família, Junjiro assume a responsabilidade do dinheiro da venda, impedindo a Nobuko acesso à sua parte. Ela ameaça os seus enteados em deixar a casa e regressar à sua terra, mas, num ato de frieza pela mulher que os criou, eles não cedem, e a família desmorona-se. Além disso, Tamiko não casa nem com o seu amante nem com o Dr. Ihara, deixando-a à mercê do irmão, que por sua vez perde não só o dinheiro das propriedades vendidas, como também a casa hipotecada, e mais tarde a sua própria vida. A total independência de Tamiko tem um custo demasiado elevado.
O filme não só critica a dissolução da família tradicional, mas também os valores modernos que a provocaram. Tamiko, resiste ferozmente ao casamento, e Nobuko, que o impinge, afasta de vez a enteada, e ambas acabam por não constituir família enquanto perdem a que tinham. Junjiro, que numa cena de terror rasteja até ao quarto da ex-mulher para a atacar, perde o seu único amor, a sua saúde e tudo o que o seu pai lhe deixou. Ihara que, por sua vez, tem um caso com Tamiko enquanto declara o seu interesse por Nobuko, mais tarde critica Tamiko pela sua promiscuidade (enquanto se senta num bordel rodeado de mulheres). Komatsu, que defende a honra de Tamiko, foge antes de assumir uma relação com ela.
Pelos erros das suas ambições, dos seus egoísmos e dos seus próprios orgulhos, esta família japonesa desintegra-se na fragilidade de tempos de rescaldo, e para estas personagens os efeitos da guerra podem durar uma vida, mas os efeitos dos seus familiares vão durar uma eternidade.
Sem comentários:
Enviar um comentário