quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

O Som do Nevoeiro (1956) de Hiroshi Shimizu



Por Alexandra Barros
 
Que forças impelem as nossas ações? Como são determinados os nossos destinos? O Som do Nevoeiro tem como fio condutor a história de um amor condenado, mas estas questões existencialistas, a complexidade do comportamento humano e as dificuldades de compreendermos os outros e a nós mesmos tecem o subtexto do filme. Porque é que as personagens fazem o que fazem? Porque se sacrificam, porque hesitam, porque se conformam, porque agem de forma absurda, porque morrem? Agem compelidas pela paixão, pelo medo, pelo dever, pela cobardia, pela honra, por altruísmo, por egoísmo? Adivinhamos os seus conflitos interiores, a tensão entre sentimentos, mas nunca sabemos verdadeiramente o que acaba por determinar as suas escolhas. Possivelmente uma observação, umas palavras, um acaso, aparentemente inócuos, mas que se cravam com tal força na alma que a passam a dominar.
 
Neste filme, cada frase, cada expressão do rosto, cada gesto que se afigura significativo, tanto pode ser revelador como lançar dúvidas sobre o que demos, antes, por adquirido. As dissonâncias comportamentais, expressas ou lidas nas entrelinhas, ficam por explicar, enigmas abertos à interpretação pessoal. O grande cinema (ou melhor, de forma geral, a grande arte) é assim, convoca múltiplas leituras. Hiroshi Shimizu conjuga esta impossibilidade de ver uma pessoa na sua totalidade - os mistérios humanos - com belíssimas imagens de uma paisagem montanhosa, sempre em mutação. Raramente a montanha se dá a ver claramente. Ora vislumbramos apenas o pico, pairando sobre camadas densas de bruma, ora entrevemos pequenas áreas da encosta entre um manto irregular de nevoeiro, ora adivinhamos os traços montanhosos por trás de uma leve névoa.
 
Esta montanha é onde o professor de botânica Kazuhiko Onuma se refugiou do Japão tumultuoso do pós-guerra, dedicando-se ao estudo das plantas que aí vivem. Acompanha-o Tsuruko, a assistente, com quem tem uma relação extraconjugal. Na iminência de ser visitado pela mulher (Katsuyo), Onuma espera que a presença de Tsuruko instigue Katsuyo a dar o passo que o próprio evita dar. Apesar de ele assegurar a Tsuruko que o divórcio é inevitável, porque o casamento sempre foi de fachada, sem amor, e porque as divergências entre ambos são demasiado fortes, teme ser ridicularizado pela sociedade por se separar agora quando já tem uma filha. Tal como previsto, Katsuyo confronta-o com a traição, mas inesperadamente ele nega a relação, explicando que Tsuruku só ali está para fazer as compras e organizar a documentação. Tsuruko parte furtivamente, alegando (numa carta) que o faz para salvar o professor Q de um eventual destino trágico. Mas não terá sido a vacilação do professor, ou o “És uma indecente!” atirado por Katsuyo, o verdadeiro catalisador da partida? Os seres humanos procuram justificações tão mais enobrecedoras para os seus gestos quanto mais indizíveis são as suas reais motivações.
 
E que alegado destino trágico é aquele a que se refere? Será porventura o mesmo que Aiko (uma mulher num triângulo amoroso idêntico ao de Tsuruko) terá escolhido para si e para o amante, como fuga a um sufoco de idêntica irresolução? Aiko reprova a atitude passiva de Tsuruko e a sua submissão às (in)decisões do professor: “As mulheres devem construir a felicidade pelas suas próprias mãos”. Porém, também ela é incapaz de alcançar a felicidade que persegue. Aiko cruza-se com Onuma e Tsuruko, na cabana florestal onde estes habitam, porque procurou a montanha para deambular livremente com o seu amante. Imersos na tranquilidade e beleza da floresta aos pés da montanha, Onuma, Tsuruko e Aiko conseguem alhear-se, ainda que efemeramente, dos dilemas que os atormentam e desfrutar de fugidios momentos de felicidade. Tsuruko considera a floresta tão maravilhosa que julga ser o local ideal para morrer. Um paraíso. Ao escutar tais palavras, uma tristeza insólita assoma ao rosto de Aiko, mas a chegada do professor interrompe os seus pensamentos. Numa cena premonitória, o professor exibe dois peixes e explica que após pescar o primeiro, aquele que o acompanhava ficou triste e também se deixou pescar. Aiko exibe agora uma euforia, que não deixa de ser notada pelo professor, e que Tsuruko atribui ao facto de ela saber o que quer da vida. Essa invejada determinação e alegria é, no entanto, como se virá a revelar, um enganador canto do cisne.
 
Esta incoerência entre aquilo que as personagens exteriorizam e a sua vida interior, ou entre o que proclamam e o que fazem, emerge recorrentemente no filme. Onuma reprova a mulher por negligenciar a filha para se dedicar à política, mas vive na montanha, isolado da família, e dedicando-se exclusivamente aos seus interesses científicos. Assegura a Tsuruko que o seu casamento sem amor foi um fracasso em todos os sentidos, mas após a morte da mulher, lastima-se da falta que esta lhe faz: “Perder uma esposa é como se nos roubassem a nossa outra metade”. Em contrapartida, ao reencontrar Tsuruko, casada com outro homem, mostra-se conformado e até satisfeito com o que a vida lhes destinou. Crê que o amor que partilham é eterno por ser impossível, e que provavelmente não resistiria às dificuldades inerentes a uma vida a dois. Tsuruko não concorda. Onuma é um homem pacificado, mas para Tsuruko, a dor da perda persiste. Comprazer-se com as memórias, revisitando anualmente a montanha, é quanto basta a Onuma. Tsuruko não poderia viver noutro lugar, mesmo que, para se sustentar nesse lugar remoto, se tenha visto obrigada a trabalhar como geisha. Não lhe faltaram pretendentes, mas “as mulheres não têm emenda; quando elas já têm alguém que amam em mente, é lhes impossível formar família com outra pessoa”. Inexplicavelmente, umas horas depois de fazer esta confidência a uma amiga, Tsuruko cede à corte que, ao longo dos últimos meses, Gen, um veterinário local, aparentemente simplório, lhe tem vindo a fazer. Porque o faz? Talvez porque nessa tarde, ao ouvir a voz de Onuma (de visita à montanha), tenha evitado o encontro, receando o seu eventual julgamento moral e consequente rejeição. Terá então concluído e aceitado que o rumo ditado pela paixão devotada a Onuma, paradoxalmente, determinou a impossibilidade de por ele ser amada.
 
Gen, pelo seu lado, é incansável nos seus esforços para lhe agradar. Ama-a com a incondicionalidade, dedicação e entrega com que Tsuruko porventura terá desejado que Onuma a amasse. Talvez Tsuruko tenha sido seduzida por um lirismo recôndito que, apesar da rusticidade de Gen, a paixão terá feito emergir. Ou nele tenha reconhecido uma alma-gêmea, alguém capaz de uma afeição amorosa só equiparável à que ela dedicou a Onuma. É precisamente com desmedidos gestos de amor, de Tsuruko e de Gen, que este filme de emoções contidas se fecha.
 
Que som faz o nevoeiro? Aparentemente nenhum. Porém, tal como os sentimentos que mantemos secretos são inexistentes para os outros, o som do nevoeiro poderá ser apenas inaudível para os nossos ouvidos.
 
 

Sem comentários:

Enviar um comentário