Loucamente (La pazza gioia), realizado por Paolo Virzì, é um filme que se move entre a comédia dramática e o road movie. A narrativa acompanha duas mulheres, Beatrice (Valeria Bruni Tedeschi) e Donatella (Micaela Ramazzotti), internadas numa comunidade terapêutica e instituição psiquiátrica na Toscana. As duas escapam da clínica numa fuga à procura da felicidade e que rapidamente se transforma num percurso de autodescoberta.
Paolo Virzi constrói uma narrativa onde a linha entre loucura e normalidade é constantemente posta em causa. A escolha do realizador em não estigmatizar as personagens, mas antes em humanizá-las, dá ao filme uma dimensão crítica ao que comummente entendemos como “loucura” e “normalidade”. Beatrice, com a sua tagarelice aristocrática, delírios de grandeza e conexões políticas imaginárias, contrasta com a introspectiva, depressiva e melancólica Donatella, marcada por um passado traumático. Juntas, formam um duo improvável, cuja cumplicidade cresce à medida que os segredos de ambas vêm ao de cima.
Mais do que uma narrativa bem-humorada sobre a doença mental, Loucamente é uma ode à empatia e, acrescentaria, aponta para a necessidade de “políticas da vulnerabilidade”, como defendido pela filósofa Marie Garrau que vê a vulnerabilidade como uma condição comum (condição colectiva) que precisa de respostas políticas justas e inclusivas, rompendo com a ideia liberal do indivíduo (e da sua pretensa autossuficiência). É um filme que desafia preconceitos, sublinha a importância do afecto e propõe que, por vezes, é no desvio à norma que reside a lucidez.
Visualmente, o filme mescla as cores vivas das paisagens italianas com o realismo poético de uma aventura na estrada (road movie). A câmara de Virzi, ora agitada, ora contemplativa, parece dialogar com o próprio estado mental das protagonistas: o mundo visto por elas é simultaneamente vibrante e dissonante.
A clínica psiquiátrica, apesar de acolhedora em aparência, simboliza um sistema de controle. Virzi faz eco à crítica institucional patente no clássico One Flew Over the Cuckoo's Nest (1975), de Miloš Forman, e pode nos remeter para os trabalhos de Michel Foucault, tal como História da Loucura (1978 [1972]) e O Corpo Utópico, Heterotopias (2013 [1966]) e O Nascimento da Biopolítica (2023 [1979]). Nos quais a loucura é tida como construção sócio-histórica e problema social e não como defeito individual ou mácula biológica. A reforma psiquiátrica italiana de 2015 (contexto em que este filme surge) alinha-se à crítica de Foucault às heterotopias e ao poder institucional. Ao fechar as Unidades de Saúde Mental (OPGs) e substituí-las por comunidades terapêuticas, a reforma procurou desmantelar espaços fechados de exclusão e de controle (“prisões”), enfatizando a reabilitação e a dignidade humana.
Assim, o filme problematiza o tratamento psiquiátrico, os paradigmas epistemológicos e os preconceitos sociais que o regem, visto como mecanismo de gestão biopolítica, ou forma de controlo repressivo, que expulsa os “indesejáveis” da pólis e os confina nas margens da sociedade. Embora, Loucamente não critique diretamente a reforma psiquiátrica de 2015, aborda temas que apontam para os desafios da transição do atendimento institucional para modelos comunitários. O filme destaca as complexidades do atendimento em saúde mental, incluindo o estigma social e a necessidade de medidas de apoio que contemplem dimensões individuais, políticas e sociais, preocupações cruciais que deveriam ter sido consideradas no contexto da reforma em psiquiatria como a italiana.
O realizador, ao centrar a narrativa do filme em duas mulheres internadas por questões que envolvem não somente o sofrimento mental, mas também a rejeição social, toca ainda noutro ponto essencial: a “patologização” do comportamento feminino. Beatrice é “louca” porque fala demais, sonha alto, é desajustada. Donatella carrega a culpa de uma maternidade fracassada e é punida com o isolamento. Ambas encarnam figuras femininas que, em vez de serem compreendidas, foram “silenciadas” e afastadas da sociedade. O filme mostra como o diagnóstico pode ser um modo de censura e “encarceramento” do desvio ao normativo e/ou ao ideal. Assim, a “loucura”, tida como desvio, surge como o nome que se dá ao “excesso” feminino num mundo de convenções e normas patriarcais.
Em suma, é através da amizade improvável entre Beatrice e Donatella que o filme propõe outra cura: a empatia. Neste sentido, Loucamente afasta-se dos estigmas vulgares da loucura, construindo uma visão afectiva e política da saúde mental. Trata-se de um cinema humanista, que não nega o sofrimento, mas o inscreve dentro de uma estrutura social composta por desigualdades sociais.