quinta-feira, 24 de julho de 2025

O Charme Discreto da Burguesia (1972) de Luis Buñuel



por Estela Cosme
 
Lugar certo, dia errado. É um mal-entendido que inicia este filme sobre um grupo de amigos desencontrados e que o destino os impede de se sentarem juntos à mesa mais do que uma vez. Este grupo de burgueses tudo tenta para poder partilhar uma refeição, mas as forças do mundo absurdo e irónico de Buñuel são mais fortes. Mesmo quando o apetite é grande, o azar é maior.
 
O grupo é impedido de continuar com a sua refeição um total de sete vezes, nas quais não se reúnem as condições mínimas para um convívio agradável e ininterrupto (até a comida e a bebida falham). Certamente, à terceira seria de vez (ou à quarta ou quinta). Tudo parece ir contra os planos deste grupo, que parece remar contra uma corrente de péssimos timings e de sonhos inoportunos.
 
Esta é uma comédia filmada de forma muito direta e sem rodeios, nada do seu estilo nos parece indicar que estamos perante uma sátira mordaz até que vemos um morto a ser velado no restaurante onde os amigos tentam jantar. O falecido é o dono do estabelecimento e os choros são da viúva, agora rodeada dos empregados do marido, à espera que a funerária o coloque num caixão, como dita a tradição cristã. Como é lógico, perde-se o apetite (a causa da morte não é revelada, pelo que intoxicação alimentar não está fora de questão) e o jantar é adiado outra vez. Esta é a segunda tentativa falhada numa saga cheia de imprevistos e transtornos (quer hilariantes quer macabros) para este grupo de amigos.
 
Mas afinal quem são estas pessoas para além dos seus inconvenientes? O que as une em amizade ou, talvez, em mera proximidade? Os três homens são parceiros no negócio ilícito da droga, facilitado graças à mala diplomática do Embaixador da República de Miranda, também ele envolvido num caso amoroso com uma das mulheres do grupo, por sua vez casada com um dos sócios do embaixador. Ela também é irmã de uma das outras integrantes do grupo. A terceira mulher é casada com o outro sócio do Embaixador. É por isso um grupo de pessoas reunidas por conveniência e circunstância e, claro, estatuto social. No entanto, mais nada sabemos sobre a vida íntima destas pessoas que se sentam à mesa. Fora dos seus empregados e conhecidos, das suas casas opulentas e dos seus carros de luxo, nada sabemos sobre a sua família mais extensa ou sobre as suas ocupações profissionais. Poucos detalhes são dados sobre a sua personalidade ou sobre os seus interesses, para além da bebida que preferem à mesa. Nada sobre eles é profundo ou distinguível, e por isso o seu charme é meramente discreto, longe de ser notável.
 
Esta é então uma história de uma classe social insípida, cuja única preocupação são os seus deleites carnais e a sua agenda social. Os inconvenientes que lhes surgem são a coisa mais interessante sobre eles, sejam eles obras do acaso ou do inconsciente. Não é de estranhar que Buñuel prefira por vezes mostrar os sonhos das outras pessoas que nem sequer pertencem ao grupo, e que parecem entram nas vidas destas personagens para lhes trazer uma partilha desafiante, um catalisador para refletir e mudar.
 
Contudo, o comportamento do grupo permanece inalterado e focado no seu único objetivo: jantar. Como consequência, este torna-se mais difícil de alcançar e nem no reino dos sonhos ele é atingido. Aliás, neste filme tudo o que é real parece um sonho, e tudo o que é um sonho parece real. Não podemos ter certeza de nada, nem do final, nem mesmo quando este parece ser permanente (não o é).
 
A imagem mais marcante do filme é repetida várias vezes e, inclusive, repete-se na cena final: o grupo de amigos caminha por uma estrada no meio do nada. O destino parece ser o mesmo de sempre: uma sala de jantar. Mas suspeitamos que, uma vez mais, o desfecho será sempre o mesmo e a refeição ficará suspensa. Infelizmente para estes burgueses, a fome, ao contrário do charme, nunca é discreta. 
 
 

domingo, 20 de julho de 2025

408ª sessão: dia 22 de Julho (Terça-Feira), às 21h30


“O Charme Discreto da Burguesia” de Luis Buñuel, esta terça no Lucky Star – Cineclube de Braga

Em Julho, o Lucky Star - Cineclube de Braga promove a alegria e a boa disposição (muito riso), com critério (muito siso), com a segunda edição do ciclo “Muito Riso, Muito Siso”, que reúne filmes clássicos e contemporâneos de comédia. As sessões deste ciclo ocorrem, como habitualmente, às terças-feiras na biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30. 

Esta terça-feira, 22 de Julho, exibimos o filme O Charme Discreto da Burguesia (1972) de Buñuel. Neste filme, um grupo de amigos da alta burguesia tenta repetidamente reunir-se para jantar, mas é constantemente interrompido por situações absurdas, surreais ou inexplicáveis. À medida que os encontros fracassam, o filme mergulha em sonhos dentro de sonhos, desmontando com ironia feroz os rituais, hipocrisias e a falsa moral da classe dominante. Buñuel mistura comédia e crítica social num dos seus filmes mais emblemáticos e desconcertantes.

Luis Buñuel foi um dos mais influentes cineastas do século XX. Nascido em Espanha, em 1900, e falecido no México em 1983, construiu uma carreira que atravessou vários países (Espanha, França, México) e diversas fases estilísticas. A sua obra é marcada por uma crítica mordaz à religião institucionalizada, à hipocrisia da burguesia, à repressão do desejo, ao autoritarismo e ao vazio existencial. Elementos como o sonho, o acaso, o absurdo e o simbolismo são recorrentes nos seus filmes, que frequentemente rompem com a narrativa linear.

Entre os seus trabalhos mais emblemáticos contam-se Um Cão Andaluz (1929), em parceria com Salvador Dalí, Viridiana (1961), censurado na Espanha franquista, Belle de Jour (1967), com Catherine Deneuve, e O Charme Discreto da Burguesia (1972), vencedor do Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, tendo sido ainda nomeado para Melhor Argumento Original. Recebeu ainda o prémio de Melhor Filme da Sociedade Nacional de Críticos de Cinema dos EUA e foi nomeado para o BAFTA de Melhor Filme em Língua Não Inglesa. Foi exibido em festivais como Cannes, Berlim e Veneza. Com uma filmografia provocadora, Buñuel é uma referência incontornável no cinema moderno que inspirou várias gerações de cineastas.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até terça!


quarta-feira, 16 de julho de 2025

A Máquina de Matar Pessoas Más (1952) de Roberto Rosselini



por Alexandra Barros
 
A Máquina de Matar Pessoas Más arranca com uma belíssima cena em que vemos o cenário do filme a ser montado: “Eis o que precisamos: um dia e um mar calmos, com nuvens brancas no céu. Depois, uma montanha de cartão, deserta, muda e triste, que vou tapar com casas. Aqui, é a Câmara Municipal, com a sua fonte, e as belas casas, em que vivem os ricos. Agora que já expliquei a cena, irei apresentar as personagens: trapaceiros, intrujões e canalhas, inúteis, dissimulados, tolos, espezinhados e prepotentes, resmungões e descontentes. Sejam belos ou feios, todos se parecem um pouco connosco.” Com um passe de magia, a maquette de cartão é transformada no seu modelo real, Amalfi, uma pequena aldeia piscatória, situada aos pés de uma montanha íngreme, na costa sudoeste de Itália, não longe de Nápoles.
 
Suspeitamos que o dia calmo anunciado no prólogo não vai durar quando dois amigos americanos explicam às mulheres que os acompanham como planeiam ficar ricos, transformando o cemitério local num resort turístico. O cemitério é vendido aos americanos, secretamente, pelo próprio presidente da Câmara. “Meus senhores, isto é uma comédia.”, fora anunciado no prólogo deste filme, rodado entre 1948 e 1950. Em 2025, o presidente dos Estados Unidos anuncia, com orgulho e grande pompa, um plano para transformar Gaza na Riviera do Médio Oriente, e partilha nas redes sociais um vídeo criado com recurso a IA desta idealizada “estância balnear com hotéis, estátuas douradas, dinheiro a cair do céu, iates, bailarinas exóticas, Elon Musk a comer iguarias locais e Donald Trump e Netanyahu deitados numa espreguiçadeira a beber cocktails”[1]. A realidade supera sempre a ficção.
 
Alegando interesses públicos, o presidente da Câmara tenta apropriar-se também da herança de D. Amália, a usurária a quem toda a comunidade deve dinheiro. Essa tentativa coloca-o na lista negra de Celestino, o fotógrafo da aldeia, a quem um estranho forasteiro (que Celestino crê ser Santo André, o padroeiro de Amalfi) deu o poder de matar através da fotografia. Inicialmente reticente em usar tal poder, rapidamente este o inebria e pequenos ou grandes egoísmos, ganâncias e prepotências passam a ser castigados sem qualquer reflexão. A solução para os problemas do mundo vem a revelar-se mais complexa que a simples eliminação dos “maus”. A própria distinção entre “maus” e “bons” começa a ser difícil de efectuar. A máquina de matar pessoas será divina ou demoníaca?
 
O filme levanta várias questões morais e filosóficas. O bem e o mal são entidades absolutas e facilmente distinguíveis? A quem cabe decidir quem são os bons e os maus? Que consequências tem o fazer justiça pelas próprias mãos?
 
Por outro lado, o filme evoca o papel da fotografia como instrumento de poder e manipulação, ou o conceito de fotografia como arma letal, ideias exploradas por pensadores como Susan Sontag[2] e Roland Barthes[3], e realizadores como Michelangelo Antonioni[4] e Michael Powell[5], entre outros. Para o bem e para o mal, uma imagem tanto é capaz de expor como de distorcer a realidade, ao congelar um momento ou mostrando pessoas e acontecimentos a partir de perspectivas específicas. O fotojornalismo, através da denúncia de situações, pode determinar a mudança de percepção sobre acontecimentos e circunstâncias pouco visíveis ou distantes (como a fotografia da “menina do Napalm”). A exposição de fotografias privadas quer por paparazzi, quer por fugas de informação ou cyberbullying pode revelar mentiras e hipocrisias, destruir reputações, causar danos psicológicos e financeiros, por vezes em nome de causas nobres e boas intenções, outras assumidamente por lucro, vinganças pessoais, chantagem emocional, etc.
 
Rossellini não ficou satisfeito com este filme em que se afastou do neorrealismo engajado e crítico dos célebres Roma, Cidade Aberta (1945) ou Alemanha, Ano Zero (1948). No entanto, a combinação de comédia, sátira, fantasia e fábula moral, com elementos característicos do neorrealismo, como: cenários reais, cenas documentais e actores não profissionais, seria considerada ousada e inovadora, por parte da crítica. O filme é visto actualmente como uma obra significativa dentro do seu trajecto, um ponto de transição entre o Rossellini neorrealista e o Rossellini filosófico e espiritual. Apesar da aparente leveza do filme, ele prenuncia, através do microcosmo amalfitano, desenvolvimentos culturais e políticos globais (o poder das imagens; a desigualdade crescente no acesso e distribuição de riqueza; os excessos, bizarrias e non-sense de projectos turísticos; a tendência para o uso abusivo do poder mesmo pelos mais bem-intencionados, ...) e explora questões que têm hoje uma relevância acrescida, face a esses desenvolvimentos. 
 

[1] Fonte: https://www.dn.pt/internacional/dinheiro-a-cair-do-céu-e-luxo-trump-divulga-filme-de-faixa-de-gaza-transformada-em-destino-turístico

[2] Susan Sontag, Sobre a Fotografia (1977)

[3] Roland Barthes, A câmara clara (1980)

[4] Blow-Up, Michelangelo Antonioni (1966)

[5] Peeping Tom, Michael Powell (1960)
 
 
 
   
 

domingo, 13 de julho de 2025

407ª sessão: dia 15 de Julho (Terça-Feira), às 21h30


“A Máquina de Matar pessoas Más” de Roberto Rossellini, esta terça no Lucky Star – Cineclube de Braga

Em Julho, o Lucky Star- Cineclube de Braga promove a alegria e a boa disposição (muito riso), com critério (muito siso), com a segunda edição do ciclo “Muito Riso, Muito Siso”, que reúne filmes clássicos e contemporâneos de comédia. As sessões deste ciclo ocorrem, como habitualmente, às terças-feiras na biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30. 

Nesta terça-feira, 15 de Julho, exibimos o filme A Máquina de Matar Pessoas Más (1952), de Roberto Rossellini. Na pitoresca vila costeira de Amalfi, um modesto fotógrafo chamado Celestino leva uma vida pacata, eternizando turistas e moradores com sua antiga câmara. Um dia, um misterioso estrangeiro oferece-lhe um novo equipamento fotográfico que, segundo ele, revelará a verdadeira essência das pessoas. Ao testar o aparelho, Celestino descobre que aqueles que ele fotografa e julga como “maus” morrem misteriosamente pouco depois. Intrigado e aterrorizado, o fotógrafo sente-se o poder de julgar e de brincar de Deus. À medida que a vila se transforma sob o peso das mortes inexplicáveis, Celestino é forçado a confrontar os limites da moralidade e da justiça humana.

Roberto Rossellini foi um dos nomes centrais do neorrealismo italiano e uma figura incontornável do cinema europeu do século XX. Nascido em Roma em 1906, destacou-se por uma abordagem crua da realidade, procurando retratar a vida quotidiana com simplicidade e profundidade humana. A sua obra-prima Roma, Cidade Aberta (1945), filmada logo após a libertação de Itália, marcou o início do neorrealismo, ao lado de filmes como Paisà (1946) e Alemanha, Ano Zero (1948). A sua filmografia percorre fases distintas: do realismo pós-guerra à introspecção filosófica da fase com Ingrid Bergman, em títulos como Stromboli (1950) e Viagem a Itália (1954). Rossellini via o cinema como uma ferramenta de conhecimento e transformação social, rejeitando o artifício em favor da verdade. 
 
A Máquina de Matar Pessoas Más foi exibido fora de competição no Festival de Cannes de 1952 e suscitou reacções díspares entre os críticos que esperavam uma obra mais realista e os que aplaudiram a ousadia surreal e satírica da narrativa. A história foi parcialmente inspirada em reflexões filosóficas sobre o bem e o mal, que interessavam profundamente Rossellini na época, especialmente após a sua colaboração com Ingrid Bergman. O filme contou com um elenco maioritariamente amador e foi rodado em localidades reais da costa italiana, mantendo a estética simples do neorrealismo, mas aplicada a uma fábula moral. Apesar de não ter tido grande sucesso comercial, A Máquina de Matar Pessoas Más foi mais tarde reavaliado como uma obra singular e pioneira na filmografia de Rossellini, influenciando cineastas que explorariam o absurdo e o fantástico no cinema europeu.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até terça-feira!


quinta-feira, 10 de julho de 2025

O Sol do Futuro (2023) de Nanni Moretti



por António Cruz Mendes
 
A electricidade chegou, finalmente, a um bairro popular e, na sequência inicial do filme, os seus moradores reúnem-se, à espera de que, nas ruas e nas casas, as luzes se acendam. No centro dos festejos, dirigentes do PCI. A comunidade une-se em torno do partido a quem devem esse novo salto para a modernidade.
 
“O sol do futuro” é uma metáfora da utopia comunista. Como, “a nova aurora”, “os amanhãs que cantam” ou “o horizonte vermelho”. Num mundo de injustiças, de alienação, de pobreza, a vida será suportável sem o sonho de um novo mundo? E se ele se esvai depois dos acontecimentos que ensombraram a Hungria em 1956, esmagada a revolução democrática por aqueles que, até então, eram vistos como os arautos da libertação? A Ennio, dirigente do Partido Comunista de Itália, tantos anos dedicados a uma causa que agora vê traída, resta-lhe uma saída: o suicídio.
 
Este seria o tema do novo filme que Giovanni se propõe realizar. Giovanni é um alter ego de Nanni Moretti e as angústias e os dilemas do pós-comunismo tinham sido já tratadas por ele em Palombella Rosa e em A Coisa. É, portanto, um tema muito “morettiano”.
 
A acção passa-se em Itália, num município governado pelo Partido Comunista Italiano (PCI), onde a convite das autoridades locais, um circo húngaro monta o seu espectáculo... Porém, esse é apenas um filme dentro de outro filme, onde o protagonista é o próprio Giovanni e o seu tema são as dificuldades e as dúvidas que o assaltam durante a realização.
 
Todos nos lembramos de filmes que têm o próprio cinema e os seus bastidores como tema. , de Fellini, ou A Noite Americana, de Truffaut, por exemplo. Nanni Moretti retoma à sua maneira essa tradição. Ou seja, num registo habitualmente designado como comédia dramática.
 
A sua mulher e produtora quer separar-se dele, uma actriz improvisa e afasta-se do guião e até mesmo entre os animais selvagens do circo surgem incompatibilidades “nacionais”. O seu co-produtor faliu e não há dinheiro para prosseguir as filmagens. As demandas do mercado deixaram de ser compatíveis com a sua ideia de cinema. Tudo e todos parecem conspirar contra os propósitos de Giovanni. Mas, é impossível ver sem um sorriso a cena do jantar com o namorado da filha, a da entrevista com os potenciais financiadores da Netflix ou aquela onde ele intervém nas filmagens de um outro filme produzido pela sua mulher para discutir o lugar da violência no cinema.
 
As reflexões metalinguísticas estão, aliás, estão sempre presentes em O Sol do Futuro e remetem-nos para uma série de referências cinéfilas. Fala-se de Cassavetes, de S. Miguel tinha um Galo, dos Taviani, de Apoclipse Now, do Copolla... A dada altura a câmara filma uma plateia que observa, extasiada, a sequência final de La Dolce Vita. Mas, esse momento mágico, é logo interrompido pelo discurso crítico de um jovem que questiona a sua namorada acerca da natureza de classe dos seus protagonistas e da dimensão política do filme.
 
Os problemas pessoais, profissionais e artísticos de Giovanni confundem-se e tudo concorre para uma catástrofe. Mas, afinal, uma equipa de analistas ao serviço de produtores coreanos reconhece a excelência do argumento. Filmada em posição frontal, encarando os espectadores, uma jovem dá-nos o seu veredicto: “É um filme sobre a morte da arte e do comunismo. A morte do amor e da moral. É, sem dúvida, um filme sobre a morte de tudo”. “Certo”, reage Giovanni. Mas, deverá, terá de ser assim?
 
A cena final, a do suicídio de Ennio, é revista e, embora sem o timing que as regras da Netflix aconselhariam, pode dizer-se que o filme termina com um momento WTF, uma festiva manifestação onde a infidelidade à História é assumida, todos os anacronismos e inverosimilhanças são permitidos – mas a vida, a liberdade e a esperança triunfam. 
 
 

domingo, 6 de julho de 2025

406ª sessão: dia 8 de Julho (Terça-Feira), às 21h30


“O Sol do Futuro” de Nanni Moretti, esta terça no Lucky Star – Cineclube de Braga

Em Julho, o Lucky Star- Cineclube de Braga promove a alegria e a boa disposição (muito riso), com critério (muito siso), com a segunda edição do ciclo “Muito Riso, Muito Siso”, que reúne filmes clássicos e contemporâneos de comédia. As sessões deste ciclo ocorrem, como habitualmente, às terças-feiras na biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, às 21h30. 

Nesta terça-feira, 8 de Julho, o ciclo prossegue com o filme O Sol do Futuro (2023), de Nanni Moretti.
 
A narrativa do filme centra-se em Giovanni, um cineasta veterano e idealista, que está determinado a concluir o seu novo filme — uma obra sobre um grupo de comunistas italianos nos anos 1950 que luta pelos seus ideais, mas que se vê confrontado com contradições históricas e políticas. No entanto, enquanto tenta dar vida a essa narrativa utópica, sua própria vida pessoal começa a desmoronar. O seu casamento com Paola, sua produtora e parceira de longa data, entra em crise, e o próprio cinema que sempre amou parece estar em ruínas. Alternando entre a ficção do filme dentro do filme e os dilemas do presente, Giovanni confronta a difícil tarefa de conciliar a nostalgia política com as urgências do mundo atual. 

Estreado mundialmente, em 2023, no Festival de Cannes, O Sol do Futuro foi calorosamente aclamado pela crítica internacional, recebendo uma ovação ininterrupta durante 13 minutos na sua estreia oficial, a 24 de maio. O mais recente filme de Nanni Moretti — em competição pela prestigiada Palma de Ouro em 2023 — rapidamente se destacou entre os títulos europeus desse ano.

A obra foi nomeada para sete prémios David di Donatello, o equivalente italiano aos Óscares, e já arrecadou dois Nastri d'Argento: Melhor Atriz Coadjuvante para Barbora Bobuľová e o Prémio Guglielmo Biraghi, atribuído à jovem Valentina Romani. Uma confirmação do vigor criativo de Moretti, nome incontornável do cinema de autor.

O Sol do Futuro é uma comédia dramática, melancólica e autorreflexiva, em que Nanni Moretti revisita seu estilo inconfundível para questionar o passado, rir do presente e imaginar, com ternura e ironia, um futuro ainda possível.

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva às terças-feiras, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até terça!


quinta-feira, 3 de julho de 2025

Loucamente (2016) de Paolo Virzi



por Jessica Sérgio Ferreiro
 
Loucamente (La pazza gioia), realizado por Paolo Virzì, é um filme que se move entre a comédia dramática e o road movie. A narrativa acompanha duas mulheres, Beatrice (Valeria Bruni Tedeschi) e Donatella (Micaela Ramazzotti), internadas numa comunidade terapêutica e instituição psiquiátrica na Toscana. As duas escapam da clínica numa fuga à procura da felicidade e que rapidamente se transforma num percurso de autodescoberta.
 
Paolo Virzi constrói uma narrativa onde a linha entre loucura e normalidade é constantemente posta em causa. A escolha do realizador em não estigmatizar as personagens, mas antes em humanizá-las, dá ao filme uma dimensão crítica ao que comummente entendemos como “loucura” e “normalidade”. Beatrice, com a sua tagarelice aristocrática, delírios de grandeza e conexões políticas imaginárias, contrasta com a introspectiva, depressiva e melancólica Donatella, marcada por um passado traumático. Juntas, formam um duo improvável, cuja cumplicidade cresce à medida que os segredos de ambas vêm ao de cima.
 
Mais do que uma narrativa bem-humorada sobre a doença mental, Loucamente é uma ode à empatia e, acrescentaria, aponta para a necessidade de “políticas da vulnerabilidade”, como defendido pela filósofa Marie Garrau que vê a vulnerabilidade como uma condição comum (condição colectiva) que precisa de respostas políticas justas e inclusivas, rompendo com a ideia liberal do indivíduo (e da sua pretensa autossuficiência). É um filme que desafia preconceitos, sublinha a importância do afecto e propõe que, por vezes, é no desvio à norma que reside a lucidez.
 
Visualmente, o filme mescla as cores vivas das paisagens italianas com o realismo poético de uma aventura na estrada (road movie). A câmara de Virzi, ora agitada, ora contemplativa, parece dialogar com o próprio estado mental das protagonistas: o mundo visto por elas é simultaneamente vibrante e dissonante.
 
A clínica psiquiátrica, apesar de acolhedora em aparência, simboliza um sistema de controle. Virzi faz eco à crítica institucional patente no clássico One Flew Over the Cuckoo's Nest (1975), de Miloš Forman, e pode nos remeter para os trabalhos de Michel Foucault, tal como História da Loucura (1978 [1972]) e O Corpo Utópico, Heterotopias (2013 [1966]) e O Nascimento da Biopolítica (2023 [1979]). Nos quais a loucura é tida como construção sócio-histórica e problema social e não como defeito individual ou mácula biológica. A reforma psiquiátrica italiana de 2015 (contexto em que este filme surge) alinha-se à crítica de Foucault às heterotopias e ao poder institucional. Ao fechar as Unidades de Saúde Mental (OPGs) e substituí-las por comunidades terapêuticas, a reforma procurou desmantelar espaços fechados de exclusão e de controle (“prisões”), enfatizando a reabilitação e a dignidade humana.
 
Assim, o filme problematiza o tratamento psiquiátrico, os paradigmas epistemológicos e os preconceitos sociais que o regem, visto como mecanismo de gestão biopolítica, ou forma de controlo repressivo, que expulsa os “indesejáveis” da pólis e os confina nas margens da sociedade. Embora, Loucamente não critique diretamente a reforma psiquiátrica de 2015, aborda temas que apontam para os desafios da transição do atendimento institucional para modelos comunitários. O filme destaca as complexidades do atendimento em saúde mental, incluindo o estigma social e a necessidade de medidas de apoio que contemplem dimensões individuais, políticas e sociais, preocupações cruciais que deveriam ter sido consideradas no contexto da reforma em psiquiatria como a italiana.
 
O realizador, ao centrar a narrativa do filme em duas mulheres internadas por questões que envolvem não somente o sofrimento mental, mas também a rejeição social, toca ainda noutro ponto essencial: a “patologização” do comportamento feminino. Beatrice é “louca” porque fala demais, sonha alto, é desajustada. Donatella carrega a culpa de uma maternidade fracassada e é punida com o isolamento. Ambas encarnam figuras femininas que, em vez de serem compreendidas, foram “silenciadas” e afastadas da sociedade. O filme mostra como o diagnóstico pode ser um modo de censura e “encarceramento” do desvio ao normativo e/ou ao ideal. Assim, a “loucura”, tida como desvio, surge como o nome que se dá ao “excesso” feminino num mundo de convenções e normas patriarcais.
 
Em suma, é através da amizade improvável entre Beatrice e Donatella que o filme propõe outra cura: a empatia. Neste sentido, Loucamente afasta-se dos estigmas vulgares da loucura, construindo uma visão afectiva e política da saúde mental. Trata-se de um cinema humanista, que não nega o sofrimento, mas o inscreve dentro de uma estrutura social composta por desigualdades sociais.