quinta-feira, 7 de agosto de 2025

O Desejado ou As Montanhas da Lua (1987) de Paulo Rocha



por Alexandra Barros
 
O Desejado começa com uma morte anunciada e termina com um nascimento. No início do filme, João (a figura central do filme) é chamado à cabeceira do moribundo, Manuel, seu “padrinho”, para ser incumbido de uma missão na Índia, de contornos políticos. Esta missão colocará em marcha os acontecimentos que culminarão no nascimento que fecha o filme. O bebé, que João toma à sua guarda, é oficialmente fruto dos amores de Tiago e de Antónia. Tiago é possivelmente filho de João. João é possivelmente (mas não assumidamente) filho (bastardo) de Manuel. Manuel é assumidamente pai de Antónia. Antónia está no centro de um triângulo amoroso, formado por Tiago, João e ainda um misterioso terrorista italiano.
 
Entre a morte anunciada do talvez-pai e o nascimento do talvez-filho, João envolve-se em jogos amorosos e políticos, conquista mulheres e poder, é desejado por todas e todos, sem nunca dar totalmente o que esperam dele e sem nunca (se) entender completamente o que quer dos outros. Acende paixões e provoca expectativas, mas mantém-se aquém do que nele é projectado. As mulheres esperam dele um amor exclusivo e devotado, que nunca se cumpre. A classe política espera dele a salvação do país, mas as suas vitórias e glórias políticas são necessariamente efémeras. Como D. Sebastião, João tem uma corte de crentes que se agarram aos mais diversos desejos, embora, no fundo, possivelmente saibam que nunca serão realizados. Um desejo, mesmo que condenado à frustração, pode ainda assim ser preferível quer ao vazio deixado pela impossibilidade de regressar a um passado saudoso, quer à antevisão de um futuro sem brilho.
 
O Desejado é baseado numa obra-prima da literatura japonesa, Genji Monogatari[1], escrito há mil anos por Murasaki Shikibu. A adaptação deste clássico japonês foi o primeiro projecto que Paulo Rocha desejou realizar[2], ainda nos seus tempos de estudante de cinema. Embora tal ambição não seja surpreendente, dada a sua profunda admiração e conhecimento da cultura japonesa, é notável que tenha conseguido realizar o projecto mais de vinte anos depois, transformando a história de um “aristocrata” japonês do século XI num retrato de Portugal no pós-Revolução de Abril. Nas palavras de Paulo Rocha: "Durante os dez anos que passei no Japão, percebi que, aos poucos, os rostos de alguns dos meus amigos portugueses se sobrepunham às personagens do livro do príncipe Genji: os seus amores, as suas agonias, os seus suicídios e as suas ambições políticas tinham muito em comum com a história fantástica escrita há mil anos"[3]. Talvez esta sobreposição não seja assim tão singular ou assombrosa se considerarmos que as complexidades do amor e do desejo, a transitoriedade do sucesso e do poder e os ciclos de ascensão e queda são traços da natureza humana, ou das sociedades, que atravessam espaços, tempos e culturas.
 
O Desejado é ainda alicerçado num traço identitário português, desde logo sinalizado no título do filme. O sebastianismo, mito português com vertentes nacionalistas, utópicas e messiânicas permeia a sociedade portuguesa desde que o “Encoberto” desapareceu na Batalha de Alcácer Quibir, em 1578. Em tempos conturbados ou de crise, invoca-se recorrentemente um salvador da pátria: D. João IV (salvador da independência), o Marquês de Pombal (salvador reformista), Mouzinho de Albuquerque (salvador do império ultramarino), Salazar (salvador da soberania e da tradição), Álvaro Cunhal (salvador da revolução social), Mário Soares (salvador da democracia), Sá Carneiro (o salvador que foi sabotado), Passos Coelho (salvador do país endividado)... Até o primeiro-ministro actual se apresenta como alguém que salvará o país se o deixarmos trabalhar. Os traumas e sonhos do povo português, simbolizados ou evocados pelo sebastianismo, são talvez até mais visíveis agora do que nos anos que se seguiram ao 25 de abril. Veja-se quão elevada é a frequência das seguintes atitudes, tanto na classe política como às mesas dos cafés: a nostalgia de um Portugal idealizado; a glorificação do passado e a frustração com o presente; as desilusões sistemáticas e rapidamente suscitadas por cada novo governo; a crença em líderes supostamente capazes de resolver os problemas de forma “mágica”; as dificuldades em reconhecer e aceitar os erros do nosso passado imperial, colonial e ditatorial, sem querer apagá-los da história ou carregá-los eternamente na forma de culpa colectiva.
 
No final, Paulo Rocha acrescenta ao xadrez do filme tecido com linhas de vários passados e de vários presentes, umas ténues linhas de futuro. O filme termina com um nascimento, que poderá simbolizar crença no porvir, num recomeço. O bebé, que João toma nos seus braços, configura uma oportunidade de começar de novo, de fazer melhor. No entanto, o bebé vem marcado pela tragédia de um duplo suicídio e pelas dúvidas acerca da sua paternidade. A nebulosidade que envolve tanto a paternidade de Tiago (o pai oficial do bebé) como a paternidade de João (o putativo pai), estende-se sobre esta criança, que tanto pode ser filho de um como do outro. Estaremos perante um recomeço ou um novo ciclo marcado pelas mesmas dores e feridas do passado (infidelidade, perda, incerteza, fraqueza, fracasso, abandono, rejeição, solidão, …)? 
 

[1] O Romance de Genji

[1] “Desde os meus tempos do IDHEC que queria filmar O Romance de Gengi [...]  É o meu projecto mais antigo.”, in “Paulo Rocha No Cinema Português”, de Carlos Melo Ferreira, disponível em: https://cinema.fcsh.unl.pt/index.php/revista/article/view/86

[1] Citação transcrita do Catálogo do Festival Internacional de Cinema de Veneza de 1987 (evento em que o filme estreou) e disponível em: https://www.torinofilmfest.org/en/13-festival-internazionale-cinema-giovani/film/o-desejado/les-montagnes-de-la-lune/1761
 
 

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