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edição de 2025 dos Encontros da Imagem, sob o tema Manifestação de Interesse, convida-nos a pensar o lugar das artes visuais no presente. Esta edição é o manifesto vivo da marca que o festival imprimiu na fotografia — em Portugal e além — propondo, assim, uma reflexão sobre o caminho percorrido. Nesta edição é possível contemplar as artes visuais nas suas múltiplas formas, contextos e usos; explorar as suas dissidências e acompanhar as transições, as mudanças e metamorfoses que o tempo lhes impôs, olhando para a história do festival como a própria história da fotografia e das demais artes visuais que dela derivam ou com ela se relacionam e comunicam.
Embora ancorado na fotografia, o programa expande-se a territórios vizinhos — cinema, performance e vídeo-arte — que alargam e desafiam os seus limites. Em 2025, entre setembro e o final de outubro, a programação desenha-se em três percursos — Dissidências, Argumentários e Transições. Cada um propõe uma abordagem singular ao tema anual, fomentando cruzamentos e cumplicidades. Do elogio à diversidade e à experimentação, à revisitação da memória e das noções de identidade, esta edição desemboca na descoberta de afinidades locais e narrativas plurais. Imerso neste espírito o Lucky Star – Cineclube de Braga propõe um ciclo de cinema que vai ao encontro da proposta dos Encontros da Imagem para 2025.
O ciclo desdobra-se em três movimentos, cada um composto por duas sessões de cinema. No primeiro apresentam-se obras recentes que fazem do cinema espaço de desvio e insurgência, tanto ao nível dos seus propósitos como das suas dimensões formais e narrativas. Inserido sob o título Dissidências, este momento reúne Lúa Vermella, do cineasta galego Lois Patiño, e A Savana e a Montanha, de Paulo Carneiro. Apesar da divergência estilística evidente, ambos os filmes partilham temas comuns e uma mesma conceção do cinema como dispositivo de enunciação crítica, articulando o sensível e o político numa relação de mútua implicação. Em ambos existe uma originalidade própria na forma como abordam problemáticas actuais. Os dois filmes envolveram, na sua produção, as comunidades das regiões onde decorre a ação — a Costa da Morte, na Galiza, e Covas do Barroso, no norte de Portugal — e centram-se, cada qual à sua maneira, nas tradições, na cultura local e no património paisagístico. Estes elementos funcionam como marca de continuidade, mas revelam-se igualmente vulneráveis à perda e à transformação, em permanente relação com o meio envolvente, ou seja, com a natureza (também ela em perigo), onde a morte se inscreve como ameaça constante ou como assombração.
Em Lúa Vermella, Lois Patiño esculpe o tempo na imagem até lhe sentirmos o peso (Deleuze,1985; Tarkovsky, 1986). A fotografia é evidente na imagem congelada, onde a suspensão temporal faz convergir passado e futuro, sugerindo uma perceção liminar do princípio e do fim do mundo. A inspiração na pintura também é notável, por exemplo, no plano de imagem de duas agricultoras que mimetiza a pintura L’Ángélus de Jean-François Millet (comparar com o still do filme desta folha de sala). O espectador é confrontado com grandes planos de paisagens que impõem uma atenção demorada em cada detalhe da imagem, até que dela se desprenda um possível significado. Nesse processo, emerge o peso da insignificância humana diante dos mistérios e da imponência do mundo natural, restando apenas a tradição oral galega — os seus mitos, lendas e crenças — como guia incerto para nos orientar e, por fim, para nos reconciliar com o naufrágio inevitável.
De acordo com o dossier de imprensa, o filme inspira-se na história verídica de Rubio de Camelle, “um mergulhador que resgatou mais de 40 corpos de náufragos perdidos no mar”. Contudo, na narrativa é Rubio que desaparece misteriosamente, presumivelmente levado pelas águas do mar, na Costa da Morte, evento que suspende a ação, apenas compreensível à luz da sabedoria popular antiga, entrelaçando-se, assim, o enigma com as criaturas que habitam o imaginário galego.
Esta atmosfera mítica criada por Lois Patiño evidencia não apenas a influência visual do pintor galego Urbano Lugrís, com as suas representações oníricas do mar e das suas criaturas, mas também a dimensão literária de Álvaro Cunqueiro, também ele galego. A célebre máxima do escritor: “O oceano é um animal que respira duas vezes por dia”, atravessa o filme como uma chave interpretativa, remetendo para a ideia do mar enquanto organismo vivo e insondável e, por conseguinte, para a própria natureza, sua imponência e força esmagadora sobre o ser humano (vida/morte). Esta dupla influência, plástica e literária, confere à obra uma densidade simbólica que aproxima o discurso cinematográfico de uma leitura cultural e estética profundamente enraizada no imaginário galego.
Os atores não profissionais (habitantes dos lugares onde a ação se desenrola) apresentam-se como “modelos”, no sentido “bressoniano” do termo (Robert Bresson): a figura humana é tratada como matéria plástica, à semelhança da luz, do som ou do espaço, inclusos num tempo lento, esmagador e mortífero. Esses modelos surgem imobilizados ou paralisados dentro dos planos, integrados numa composição cuidadosamente construída. Ao mesmo tempo, aparecem como seres da natureza, submetidos à sua força imponente e inelutável. São, portanto, dedutíveis, como se evidencia nos grandes planos das paisagens galegas. Estas figuras humanas, quase como “mortos-vivos”, parecem anunciar a morte: estaremos perante um mundo já passado, já consumado e consumido, irremediavelmente condenado à extinção?
Nesta dialética entre a desertificação, o desaparecimento de uma cultura e o esgotamento da própria natureza em prol do desenvolvimento híper-técnico-industrial, estabelece-se uma relação com a capacidade do cinema, à semelhança da fotografia, de mortificar o presente em “isso foi” de que falava Roland Barthes em A Câmara Clara.
Lúa Vermella constrói-se como uma elegia visual, onde o humano, a natureza e a cultura se fundem num mesmo horizonte de perda. Mais do que registar um tempo ou um lugar, o filme convoca o espectador a contemplar, a interpretar e a habitar a suspensão de um presente que já se anuncia passado.
Na próxima sessão, o filme A Savana e a Montanha retoma os mesmos temas, explorando diferentes géneros cinematográficos, como o western. Aqui, porém, a utopia ainda persiste no imaginário da população local e a luta permanece possível. A obra recorre ao cinema como manifesto e instrumento de protesto contra a exploração de lítio em Covas do Barroso, defendendo simultaneamente o património cultural (material e imaterial) e o meio ambiente.
Referências Bibliográficas:
Barthes, R. (1984). A câmara clara: Nota sobre a fotografia (J. C. Guimarães, Trad., 9ª ed.). Editora Nova Fronteira. (Obra original publicada em 1980)
Deleuze, G. (1985). A imagem-tempo. Editora Brasiliense
Tarkovsky, A. (1986). Sculpting in time: Reflections on the cinema (K. Hunter, Trad.). University of Texas Press.
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