O ciclo de cinema “Palestina Livre: O Cinema como Resistência” propõe um olhar sobre a vida, a memória e a resistência de um povo através das suas próprias imagens. Maioritariamente através do documentário, mas também da ficção, estes filmes revelam histórias de perda e de pertença, de quotidianos sob ocupação e de gestos que afirmam o direito a existir no seu próprio território. Propomos, assim, um ciclo plural (filmes de 1980 a 2024) de um território sob jugo colonial, onde o cinema se torna espaço de memória, expressão e sobrevivência.
Realizado em 1980, Fertile Memory é o primeiro filme integralmente rodado na Palestina e um dos marcos inaugurais do cinema palestiniano. O filme foi restaurado e digitalizado pela CINEMATEK da Bélgica em 2023, permitindo a exibição deste, décadas depois da sua estreia. Em Fertile Memory, Michel Khleifi mostra o quotidiano feminino como lugar de resistência. Através de duas histórias paralelas, o realizador compõe um retrato político de um país dividido e de uma identidade em exílio permanente. A partir do retrato de duas mulheres palestinianas de gerações e condições sociais distintas: Farah e Sahar, entrando em cena outras mulheres que fazem parte do espaço familiar destas personagens.
Farah, cuja família foi expropriada após a ocupação israelita, é uma viúva, já idosa, obrigada a trabalhar numa fábrica após a perda das suas terras. As suas memórias do passado e as lembranças da perda coexistem com a rotina, refortalecendo a sua obstinação em resistir às pressões israelitas para que “troque”, ou melhor, abandone a sua casa familiar. Sahar, por sua vez, é escritora e professora em Ramallah, confrontada com as limitações impostas pela ocupação e com as tensões próprias do seu tempo, onde tradição, moral e emancipação se entrecruzam em permanente conflito.
Estas duas personagens femininas (uma ancorada no passado, outra projetada no futuro), impelem-nos a reflectir sobre o tempo e o espaço, a memória e o corpo presente como territórios de resistência sob ocupação colonial, revelando, ainda, as tensões entre género, classe e identidade. Em suma, através destas duas figuras, Khleifi aborda simultaneamente a condição feminina e a experiência coletiva da ocupação. Ambas enfrentam opressões múltiplas: a violência externa do poder israelita, a rigidez patriarcal da sociedade e os conflitos interiores de quem procura resistir e existir com dignidade.
O realizador alterna entre o registo documental e a encenação, explorando o modo como o quotidiano (descascar legumes, apanhar o autocarro, cuidar da casa e dos mais novos, cantar) se transforma num acto cultural e de resistência. As imagens tornam-se, assim, um espaço de inscrição e preservação da memória. Através da imagem, o filme regista as práticas, a tradição oral e a cultura material de um povo, visíveis no quotidiano, nos espaços domésticos das personagens, nas arquitectura dos bairros, afirmando a existência da Palestina, da sua história e da sua cultura. Apesar da diversidade religiosa e social que o compõe, é na sua heterogeneidade e nas diversas práticas culturais que o povo palestiniano se reconhece e existe.
A narrativa é fragmentária, composta por planos longos, por gestos e silêncios. O filme avança entre o documental e o encenado, privilegiando a imagética. A câmara detém-se nos rostos, nas mãos, nos campos, nas casas; observa o quotidiano devagar para poder gravá-lo na memória. A ausência de narração imposta permite que as imagens falem por si, revelando um povo cuja vida continua, apesar do cerco e da violência. Cada gesto quotidiano, demarca a presença palestiniana, uma cultura. Em cada prática, a história de um povo, situado em legítimo território. Os objetos que decoram a casa, os retratos dos familiares (alguns desaparecidos, outros exilados), as hortas cultivadas, os pratos cozinhados em grupo, as relações de vizinhança, os instrumentos musicais que acompanham as canções tradicionais, a palavra escrita e declamada por Sahar, são as provas da presença palestiniana, em contraposição à “Lei dos Ausentes”, ditada e imposta pelo governo israelita, que legitima a expulsão dos palestinianos das suas casas e terras.
Mais do que provar a existência e legitimidade de um povo, Khleifi restitui humanidade e “normalidade” à Palestina, filmando-a de dentro, a partir dos espaços domésticos e seus quotidianos. As mulheres são personagens principais, tidas aqui como depositárias da memória e da terra. O título Fertile Memory (Memória Fértil) é tanto uma alusão à fertilidade agrícola quanto à capacidade do pensamento e da memória gerar um futuro. Como referido por Stoffel Debuysere[1], o próprio Khleifi disse que o filme foi feito “para as mulheres da Palestina, e através delas, para a Palestina”. Mais do que um retrato, é um gesto de restituição: dar corpo e voz àqueles que a História tende a marginalizar. Debuysere relembra, ainda, a dimensão ficcionada e utópica que Edward Said denotou ao analisar Fertile Memory: a imagem de Farah a pisar novamente a sua terra, com os braços abertos, é um momento de reconciliação imaginária entre o indivíduo e o território, uma ligação que a ocupação tenta apagar, mas que o cinema reinscreve. Ao centrar-se no olhar feminino e na terra como símbolos da identidade palestiniana, Khleifi inaugura uma nova fase do cinema do país: um cinema da diversidade e da experiência vivida, que rejeita a imagem homogénea e/ou convencionada da nação e expõe as suas contradições e conflitos internos.
A leitura do filme à luz da teoria da necropolítica de Achille Mbembe[2] permite compreender o modo como Khleifi traduz, em termos visuais, as políticas da vida e da morte que estruturam o quotidiano palestiniano. Mbembe define a necropolítica como o poder soberano de decidir quem pode viver e quem deve morrer, um poder que, no contexto colonial e de ocupação, se manifesta na gestão da violência, no confinamento e na precarização da vida através de biopolíticas que, algumas de forma mais subtil e outras de forma mais violenta, pretendem gerir as populações.
Em Fertile Memory, a ocupação não é mostrada através de combates ou confrontos, mas pela administração/gestão (biopolítica) da existência: perda de terra, ausência de mobilidade, o arame farpado que acompanha os checkpoints, a lenta erosão da liberdade. A necropolítica aparece aqui como uma força invisível que organiza, ou perturba, o quotidiano e molda o tempo das personagens. No entanto, Khleifi responde a essa política da morte com imagens de vida. O simples acto de cuidar, trabalhar ou lembrar adquire uma dimensão política. Através do cinema, Khleifi reivindica, através da imagem, o direito de existir e de ser visto fora da lógica da violência. Assim, Fertile Memory não é apenas um testemunho histórico, é uma contra-imagem à necropolítica: um filme que faz da sobrevivência um acto de resistência da memória uma forma de vida.
[1] www.avilafilm.be/en/film/fertile-memory
[2] Mbembe, Achille (2019 [2016]). Necropolitics. Duke University Press.

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