quarta-feira, 3 de maio de 2017

Jackie Brown (1997) de Quentin Tarantino



por José Oliveira

No vídeo de apresentação desta sessão Sam The Kid, ao deter-se pormenorizadamente sobre a obra de Quentin Tarantino faz uma “ressalva” fundamental sobre Jackie Brown, o filme por ele escolhido para vermos hoje, ao lembrar que não se trata de um guião originalmente escrito mas sim baseado numa novela. E tal apontamento é mesmo especial e decisivo, neste filme tão especial e carinhoso dedicado a uma mulher e a uma só mulher, a uma sua (de Tarantino) deusa do cinema, Pam Grier chamada, anteriormente consagrada por uns happy few nos blaxploitation movies («um cinema que responde ao seu tempo, um gênero composto de filmes que tiram os negros dos papeis coadjuvantes serviçais e idealizam a figura do herói» na definição sintética de Heitor Augusto; mas também em alguns casos pleno de humanidade pela noção de comunidade criada, reverso da medalha de uma violência inaudita resultante da explosão da panela de pressão da raiva ou lei arrancada a ferros; além de ultra carnal, libidinoso, sensualista, até devasso) que estouraram sobretudo na década de setenta do século passado, feitos por duros e comovidos trabalhadores como Jack Hill ou Gordon Parks, Barry Shear ou Gerardo de León. Ao agarrar num livro e na escrita de Elmore Leonard – autor local e total recentemente falecido, decisivo para os géneros mas universal, fonte constante de inspiração cinematográfica – Tarantino, na altura pelos 34 anos, percebeu a importância de manter o essencial e igualmente o especial dessa escrita, dessa imaginação mas também da descrição detalhada dos ambientes e personagens, para encontrar o tom e o ritmo justos, deixando para segundo plano e para outros filmes que viriam, os truques narrativos e a manipulação fílmica em geral que o tornaram famoso com Cães Danados e Pulp Fiction – pedradas no charco dos anos 90 e na cena independente americana – e que atingiria o seu auge na saga de Kill Bill, onde da manga Japonesa a Sergio Leone tudo caberia, num pós-modernismo com carne e alma. E não é que Jackie Brown não seja narrativamente intrincado, sobretudo no seu clímax, mas tudo isso se torna praticamente invisível e natural face ao peso das riquíssimas personagens e atmosferas do meio onde decorre a acção. 

Para se perceber melhor do que trata o “estilo”, o lado, o drama e a geografia escolhida por Leonard, fica um excerto do prólogo que Felipe Vega escreveu para uma edição espanhola de “Rum Punch”, o título original da obra:

«Como em outros livros de Leonard, os personagens principais são compostos por uma extensa colecção de delinquentes de pouca monta, “chouriços” de favela (“chorizos de barriada” no original), valentões, assaltantes incompetentes, chulos, putas, arribistas e alguns polícias pouco inteligentes. Mas o importante na obra de Leonard não é tanto o argumento – que o tem – como a grande eficácia narrativa dos diálogos. Todos os personagens se definem a si mesmos mediante largas conversas, silêncios, em alguns casos monólogos, nos quais se expressa todo o jogo vital de cada indivíduo. Neste aspecto, Leonard é um autêntico mestre em desvelar intenções ocultas, ambições e grandes faltas dos seus, quase, seres de carne e osso, mediante a palavra.» 

Percebida uma parte de todo este universo riquíssimo e emocionante na maneira como o autor se entrega a ele – um pouco como o amor de David Goodis pelos fracos e marginais que ia conhecer e escolhia para as suas ficções de realidade ou duros contos-de-fadas; ou o John Fante da desilusão, aceitação e alegria no mesmo bolo – importa também dizer que das muitíssimas adaptações de Leonard ao cinema – lembramos alguns dos melhores, como 3:10 to Yuma de Delmer Daves em 1957, Hombre de Martin Ritt em 1967; não metendo ao barulho Mr. Majestyk (pois escrito para cinema) de Richard Fleischer em 1974 – esta foi surpreendentemente a sua favorita. E surpreendentemente pois nem Leonard nem quase toda a gente esperava que no pico da sua fama e com as suas “imagens de marca” prontas para render (e recebida a Palma de Ouro do Festival de Cannes e o Óscar de melhor argumento original), Tarantino pudesse ser tão atento e tão preciso no que descreve, no movimento que mete em jogo e como o filma, quase sempre em planos longos, fechados e demorados, olhando com uma ternura e paciência infinita para personagens tão aflitos, estando junto deles para o bem e para o mal, jamais metendo de lado o humor e as piadas intrínsecas, mas muito longe da caricatura. E mesmo assim continuando a inovar, por exemplo na questão dos pontos-de-vista da troca derradeira ou no split-screen (onde Tarantino substitui o extraordinário achado de Leonard para revelar a tensão de Jackie no apalpar dos músculos e nervos pelo extraordinário jogo de acender e apagar abat-Jours), para não desenvolver muito as subtis tangentes à pulp (definições: 1: Matéria macia, húmida, sem forma. / 2: Revista ou livro contendo literatura lúgubre, impressa de propósito em papel mal-acabado e rugoso; ou, colherada minha, cultura popular digerida aos avessos, cheia de refluxo verdoso e escarros volumosos), no tratamento do centro comercial, por exemplo, tudo ao serviço da eficácia e do essencial que são aqueles homens e mulheres em rodopio, apelando à salvação por todas as vias. Sobre as transposições favoritas, a palavra a Leonard:

«Eu diria Jackie Brown, feita por Tarantino. Acho que é a adaptação mais próxima do livro. Ele surpreendeu-me, eu pensei que ele iria divagar para todos os lados quando a decidiu fazer (…) ele ficou muito, muito perto do plot todo o caminho, e usa quase todo o diálogo.» 

Mas se não se pretende entrar na velha e gasta questão da fidelidade da adaptação como caução para um bom filme – para arrumar a batalha: Hollywood mais do que ninguém nos ensinou que pode transformar uma obra-prima da literatura num pastelão resquentado e rançoso (tantos Les Misérables tão bem nutridos) ou um romance de cordel baixo demais num ímpar monumento de cinema (tantos Hitchcocks sem “selo de qualidade”) – tudo isto será importante pois Tarantino vai buscar sobretudo a Leonard não o mimetismo entre as duas formas de expressão mas em primeiro lugar uma frescura, um desafio ao modo de contar institucionalizado, um gosto pelo ângulo inaudito para o caso a tratar; e, tão fundamental como, uma “verdade” e uma justiça sobre a Florida e mais concretamente Miami com os seus arredores onde tudo decorre no caso do escriba (com as Bahamas e essa fantasia em contracampo), e a Los Angeles com os seus territórios e bairros complicados como Compton ou Carson que Tarantino nunca abandonou (com o México sem muros e essa fantasia em contracampo); cada um conhece a sua terra, sombra e iluminação como as palmas das mãos e a acção só aí faria sentido, ambos tratando de palmilhar e fixar isso com o fascínio de um eterno curioso sedento de saber tudo e o risco e ética do mais empenhado dos etnógrafos. Etnografia que vai da luz do pôr-do-sol aos sacos da Billingsley, dos bikinis da época em questão aos escaparates e prateleiras das lojas de roupa último grito, das armas ao modo de fruir droga, colhendo furiosamente e fielmente o calão e as cifras nigga, gangsta e etc. Voltando a Felipe Vega e definindo livro e filme (assumo eu) em termos formais:

«Seca e cortante prosa como em Hemingway. Essa precisão, quase sarnenta (roñosa) no uso limitado dos adjectivos, cria a atmosfera necessária a todo o livro de género.» 

Mutatis mutandis, mesmo na escrita minimal de Leonard temos um calor imenso por Jackie, assim como na pancada terminal de Tarantino para com Pam Grier, corpo e aura, existe uma simplicidade que reforça o carinho genuíno, o mimo merecido. Dez ou meia dúzia são as personagens que passam realmente do livro para o filme, e eliminando a relação laboral de Robert de Niro para com Robert Forster, o ex-condenado para com o agente de fianças, quase tudo passa: Jackie Brown (a hospedeira que despoleta a trama e deixa muitos dos homens babados), Ordell Robbie (o rei dos bandidos, absolutamente cool), Max Cherry (o agente com medo que o tempo passe sem recurso nem caução), Melanie (a baby de Ordell, com a única ambição de estar no sofá ou na praia), Louis Gara (o assaltante incompetente, banana e nervoso que nem em violento sexo tira a cara-de-frete), os dois polícias e as restantes mulheres de Ordell; bem como o inesquecível Beaumont Livingston personificado por Chris Tucker numa interpretação como nunca mais teve igual, bebé marginal e futuro sacrificados à maquinação do crime e da esperteza de chico-esperto. 

Então, algumas passagens do livro que por um lado sintetizam a personalidade das personagens e por outro resguardam o segredo inconfessável, o mesmo para as situações. Passagens que terão todos os ecos, vénias e singularidades no filme:

- «Sabes qual é o teu problema, Louis? - tinha perguntado Ordell  – Sabes porque nunca o vais conseguir se não mudares?   
Louis permaneceu de pé, imóvel, como se fosse o seu Pai que falasse desde o carro.   
Achas que és um bom tipo e isso confunde-te.»   
(…) 
«Se eu decidisse dedicar-me aos bancos... pá, eu entrava neles e limpava o caralho do sitio de cima a baixo. (…) Quando se decide o que se tem a fazer há que investir com tudo, sem parar nem abandonar.»  

(Ordell tentando convencer Louis a participar no assalto por si planejado. Chantagem baixa e característica. E também a moral obscura, meio aleatória e perfeitamente clara dele, assim da ordem Nitzchiana dos super-homens: «eles é que se metem à frente das minhas intenções, e terão de pagar por isso.»)

- «Um olhar directo, nada tímido, acompanhado de um leve sorriso. Os seus olhos verdes despendiam ainda outro brilho. Max notou como ela tirava as sapatilhas e logo se apoiava na parede ajudada por uma cadeira para calçar os sapatos de tacão. Depois de se erguer e retirar o cabelo da cara com as pontas dos dedos, dedicou-lhe um olhar cansado e faz questão de encolher os ombros. Nenhum dos dois falou até que estivessem fora e ele perguntou se ela estava bem.» (…) «Não estou segura - respondeu Jackie, caminhando sem pressas até ao carro. Os restantes pareciam ansiosos por chegarem.»

(Descrição da saída de Jackie da pisão. Definição do estado de espírito dos dois, ditados pela vivência e experiência – sem pressas, mesmo bailando hipnoticamente no som da balada das baladas românticas (take me to the stars...). Mas também o derretido abrir do filme de Tarantino com a Deusa na sua passerelle ou céu que é o aeroporto e as suas pistas deslizantes, espécie de Olimpo Grego revisto pela pulp de maior centro comercial do mundo e pela musicalidade do “Across 110th Street” por Bobby Womack - sinfonia de divisórias, dependências e dignidades, como nos diz na mesma medida o fabuloso documentário irresolúvel de 1974 do citado Shear -  que terá o seu contraponto negro na segunda passerele ou purgatório para Jackie aquando do assalto, desta vez com “Street Life” por Randy Crawford - outra vez ruas e linhas e traçados proibidos.)

- «Aquele tranquilo tom de voz, olhando-o nos olhos na coquelateria a meia luz com aqueles olhos verdes incendiados...»

(Max a apaixonar-se cada vez mais. A cena literalmente avermelhada no filme, entre o pudor e o desejo carnívoro controlado à força sobre-humana; ruína encarnada e encardida; fogo contra o verde dela e das pulsões devoradoras dele ou deles.)

- «Vivemos na Florida, a capital das armas nos Estados Unidos. Aqui custa menos comprar um rifle de assalto do que obter o cartão da biblioteca.» 

(Definição da lei e da ordem onde tudo se passa. Florida ou Los Angeles = U.S.A)

- «Ordell é o clássico tipo que adora falar de si mesmo.» 

(Caracterização maravilhosa da personalidade de Ordell – que Tarantino captará momento a momento, gingão vaidoso e sem escrúpulos na sua terra do nunca.)

- «... levava dias sem fazer a barba e vestia uma camisa que dizia: “Deus abençoe a América”, uma legenda que se tornou bastante popular durante a guerra do Golfo. O tamanho da sua barriga deformava a palavra “América”.»  
«Não pá, não precisas de uma régua. Sabes quanto mede a tua pila, não sabes? Então sacas-la, metes a arma ao lado e calculas a diferença.» 

(típico humor de Leonard a que Tarantino chama um figo e transforma em pulp discreta e ainda mais esmagada, como as bandas-desenhadas escondidas nas bordas dos enquadramentos, os filmes-rasca de pedagogia das armas ou as camisas exóticas; Helmut Berger confundido com Rutger Hauer nas fitas magnéticas de série-z ou menos.)

- «E que tal, já que andava pelo bairro, passar outra vez pelo banco de Collins? “Isto é um assalto. Não se assuste...”. Pegou noutro guardanapo para escrever: “Nem aperte nenhum botão...”. Deu-se conta de que teria de escrever com letra muito mais pequena se quisesse que coubesse: “Ou vai-lhe voar a cabeça”, e algo mais sobre o dinheiro, só notas de cem e cinquenta dólares. Voltou a começar num guardanapo desdobrado e escreveu tudo o que iria dizer. Perfeito.» 

(Louis a preparar um assalto por conta própria – humor e inépcia, cena que Tarantino condensará na morte de Melanie.)

- «Dezanove anos entre perdedores, entre reincidentes que entravam e saiam do sistema. Louis era só mais um, outro que deslizava pela vida.» 

(Max e a consciência do que a sua vida foi até aí... rememoração dolorosa do fatalismo... até ao momento em que conheceu Jackie e um novo mundo se abriu, lembrando-se da hora e dos segundos.)

- «Tu sabes apreciar estas situações, Louis. Podes ficar rico, sim, mas para além disso achas graça à ideia não é? Tu vês coisas divertidas que outros não vêem. Sabes o que te digo? És o único branco que conheço que entende de que porra falo. A Melanie não. A Melanie diz coisas divertidas sem o saber. Mas quando acha que tem graça, aí está enganada. Como no outro dia no carro, quando voltávamos da casa do Gerald. Ouviste-a? Disse: “Vós os dois continuais a ser um par de cagões.” Estás a ver? Pensava que podia dizer isso por ter pregado um tiro a esse gajo. Como se pudesse gabar-se sem que eu dissesse nada.» 

(Ordell explicitando outra das dimensões cruciais e ambíguas do tipo de vida destas pessoas e que entra para a forma das obras: o gosto pelo risco; pessoal que se queima por estar na corda-bamba, só assim sendo feliz.)

- «O “dia do pagamento” é o que vai acontecer na sexta-feira. Gosta de usar nomes cifrados. O negócio com os Colombianos chama-se “Rum Punch”.» 

(Uma vez mais o sarcasmo e o risco e riso como uma e a mesma coisa, “Rum Punch”, também o nome do livro de Leonard, quer dizer, entre outras escandaleiras mais ou nada chocantes, “Cocktail Explosivo”.)

- «Noutra época acreditara que com o nome de Max Cherry estava obrigado a ser todo um personagem. Max, o lendário agente de fianças que contava histórias selvagens sobre pistas encontradas, e que entregava os delinquentes fugidos aos patrões do bar “Helen Wilkes”. Deste modo costumava contar uma história – a de como havia ido de carro até Van Horn, no Texas, para recolher um cliente que havia violado a condicional com uma fiança de quinhentos dólares - mas não o entendiam, não conseguiam apreciar o valor que esse tipo de dedicação tinha nas ruas. Decidiu ser um homem de palavra em vez de uma personagem, e talvez por isso agora estivesse ali.» 

(Leonard a divagar comovido sobre a grandeza e verticalidade que certos tipos, um pouco derrotados pelas circunstâncias e pelas escolhas que a um dado momento têm de fazer para seguirem em frente, mantêm mesmo na sombra; sobre o destino humano, o pathos, e todo este parágrafo está nos olhos do actor Robert Forster, tristíssimos e desencantados, mas com uma certa esperança quando descobre Jackie, e que Tarantino capta com todo o tempo do mundo, redenção e reconhecimento.)

- «A gente fala com Winston – explicou Max – É um tipo da rua, como eles, e confiam nele. Porque se os prendem, conhecem alguém que se pode encarregar da sua fiança.» 

(acerca de Winston, personagem com mais relevo no livro, mas que revela muito do código destes grupos, destes gangues, famílias, o código sagrado da rua, primeiro do que o código do crime. Cultura como a do hip-hop primitivo ou a dos metaleiros de Barroselas, basquetebol do bairro ou taxistas da ronda da noite, samurais anacrónicos ou Djs puros e duros com scratch no verbo – afastando dialeticamente a noção prepotente de “coutada”.) 


Pela pena de Leonard e pela câmara de Tarantino as nuances, revelações e mistérios não são certamente iguais, nem se dá o copianço, a cópia conforme; o que existe é uma compreensão e amor tanto pelos deuses como pela escória; escancarando-nos ainda a complexidade da separação da beleza ou do carinho da violência e do rasteiro; Jackie é tão bela como os autores a vêem mas também é bela assim pelo perigo onde está inserida, e, importa perceber, onde quer e faz questão de estar inserida. E se pode haver romantismo, uma pitada de romantismo, um poço de romantismo, por exemplo no genial e langoroso plano-sequência da morte de Beaumont (que corta inacreditavelmente para um strip aberrante, a mais acabada das milionésimas cartas ao blaxploitation), não é por fetiche, é porque também esse romantismo é parte plena e vital da vida deles. 

Diálogos do escritor que desvelam os não-ditos e os recônditos e que Tarantino mantém a par com o olhar estupefacto para com o genuíno disso. Tarantino a perceber a necessidade de estar à altura de quem sabia muito mais do que ele e mais do que ele viveu – Leonard. Um enredo que convoca linearmente um mosaico das necessidades humanas: todos precisam de dinheiro para mudarem de vida... para se libertarem... para se lavarem. Max sabe que pode estar a ser manipulado por Jackie mas não se interessa... está perdidamente apaixonado como nunca esteve e mudar de vida vale o risco. Jackie não tem a certeza se o manipula... gosta dele mas tem medo de se enganar novamente num homem. E até Louis, o bicho dos bichos das matas de betão e aço das cadeias Californianas, parece alterar-se emocionalmente depois de matar... todos menos Ordell, como deus do mal total dos pequenos e dos inconscientes. Repare-se que o momento decisivo da grande cena final das trocas dos sacos não advém de nenhum golpe de uma mente brilhante mas sim da burrice de Louis, depois de Tarantino a ter dado a entender deliciosamente na explicação das chaves do Mercedes a Louis por Ordell. Repare-se como Max é o pêndulo decisivo e desequilibrante pois é a sombra em andamento, alguém que decidiu apagar-se há muito e que com o peso diferente da esperança manteve ainda assim a condição invisível. O cheiro e o nada esperar de Max em guerra com a super-inteligência e a contundência de Ordell. Jackie Brown é sobre o envelhecimento e o confronto com o passado, as escolhas e as culpas. Quando todos esperavam o golpe de menino brilhante pós-Pulp Fiction – o cansaço, o desgaste, a velhice. 

Jackie Brown é então o mais inesperado e fulgurante gesto de amor do cinema dos anos 90. Há o Manoel de Oliveira de Vale Abraão ou As Pontes de Madison County de Clint Eastwood, mas se essas são obras de mestres a olharem para a eternidade e para a ausência de idade, Tarantino olha como uma criança para o terreno, o comum, o que convive connosco nos passeios com lixo, e transforma isso no sagrado do dia-a-dia. Jackie Brown é absolutamente uma obra-de-arte entregue a uma mulher, tal e qual como o francês Philippe Garrel se suicidava em tempos para filmar só o rosto de uma Jean Seberg ou de uma Nico, aparentando a película em fogo de um Les hautes solitudes às fitas de VHS coçadas, aos cabos-scart que criavam o videoclube caseiro e um novo universo hoje velho mas que assombrará para sempre o digital e o virtual, as patilhas de segurança mafiadas com fita-cola para a milionésima gravação, caixas arquivadoras de plástico preto, transparente ou vermelho conforme o grafismo e o resumo do argumento compradas nas promoções da Blockbuster ou nas dádivas da ciganada, capas da TV Guia para compor as caixas e tornar a empresa séria (como era possível uma dessas revistas oferecer uma estampa belíssima do espectacular Profissão: Duro de Rowdy Herrington, com um assombroso Ben Gazzara, um assombrado Patrick Swayze e a princesa arrancada ao esterco feita aparição Kelly Lynch, no meio dos apanhados e futurologia das novelas e da fofoca das comadres?) passando pelos vinis como supra-sumo analógico ainda melhores riscados, às k7s da feira ou à primeira coisa que se vê nesta fita - os pequeninos azulejos azuis e esverdeados gastos e igualmente analógicos, que inundam e são a matéria que se apalpa em Jackie Brown

Tanto no primeiro grande desfile como no segundo, ou em todas as vezes que aparece Pam Gier, a equação em milhentas possíveis pode ser assim: Garrel (ou outro qualquer Garrel da história do cinema, algum Godard, para não abandonarmos a França flipada com mulheres) + a iconografia da costa oeste dos Estados Unidos (o suor de Tupac Shakur, 24 horas se preciso for a vergar-a-mola como um mouro, ou uma dança de coca entre Travolta e Uma Thurman). E se o delírio é tanto é porque na escrita, na filmagem e no ritmo musical e corporal milhões de delírios são permitidos, porque o final de chorar discretamente e nas escuras é um voltar ao princípio: não só porque volta o “Across 110th Street”, mas porque o fantasma de Max desfocado ousa penetrar ainda assim no grande-plano para sempre dela, tendo o mesmo valor que o sexo na pulsão de Leonard. Há uma tristeza, há uma esperança, e uma certeza de união e encaixe, envoltos na presença tutelar dos The Delfonics, rastilho da paixão, a música só deles, namoradinhos certo dia. O mais ínfimo cruzamento e gesto que aconteceu entre os dois valeu todas as redenções e consumações possíveis. No centro de tanta abjecção, a mais delicada pureza. Um desfecho moral, mas inevitavelmente vacilante, como as inflamáveis fitas de VHS ou as vozes roucas do rum ou de tanto strip. Tarantino did it. Respect!

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